SIMÕES DOS REIS, UM BIBLIÓGRAFO

Quem toma a empreitada de escrever uma biografia, até que esta se complete não descansará. O biógrafo tem de ser "furão", vasculhará arquivos, jornais velhos, coleções antigas, cartórios, igrejas. Irá a todos os lugares onde pode, ou julga poder conseguir um documento, às vezes uma única ligeira indicação imprecisa. E é indispensável escrever muitas cartas, algumas das quais ficarão sem resposta. E é necessário procurar escritores, bibliotecas, bibliotecários, bibliófilos, bibliógrafos... É o que temos feito, durante já seis meses, na intenção de compor a biografia de um dos maiores poetas brasileiros. Quantas vezes, pela rua, sem que ninguém o perceba, seguimos a figura esguia de Raimundo Correia. Na Paulicéia ou em Vassouras. Estudante ou juiz. Juntos vamos à casa de Valentím Magalhães, ali na rua do Lavradio... Horas há, no entanto, em que o perdemos de vista. Forma-se um hiato em sua vtda. É como seguir um rastro que esteja interrompido em muitos lugares. Necessário se torna, então, avivar as pegadas quase perdidas. Para compor a vida toda, numa contínua sucessão de fatos. E é ai que se vai apelar para todos os conhecidos. Para todos os bibliógrafos. Para Deus e o mundo.

Foi assim que, por indicação de Manuel Bandeira, esse mestre e amigo de nossa geração, fomos à procura do maior bibliógrafo brasileiro: António Simões dos Reis. Encontramo-lo em seu gabinete de editor, no terceiro andar de um edifício da rua do México. Rodeado de estantes repletas de livros. Na pequena sala, várias mesas se atulham. E a mesa do escritor é uma babel de livros e papéis, originais e provas, cadernos de notas e livros de contabilidade. A seu lado, o poeta Oswaldino Marques, com um sorriso perene nos lábios.

A figura de Antônio Simões dos Reis logo nos atrai, pondo-nos à vontade, como se estivéssemos junto a um velho amigo. E dele nos vem uma torrente de palavras, por vezes suaves, por vezes agressivas, quase sempre cheias da mais legítima verve.

Simões dos Reis é um "causeur" admirável. Desfila, diante de nós, uma sucessão de casos verídicos, como ele acontecidos durante sua vida de livreiro. Literatos respeitáveis surgem em mangas de camisa, sem grvata, sem os adornos falsos, trazendo à mostra seus pequenos defeitos. O bibliógrafo comenta sobre a literatura brasileira, mostrando como andam esquecidos muitos dos nossos escritores.

Simões dos Reis quis, com uma obra gigantesca, fazer renascer os nossos poetas. Durante trinta anos colheu vasto material para sua obra: "Poetas do Brasil". Escreveu quarenta volumes de informação bibliográfica, indicando tudo o que se disse no Brasil sobre cada poeta. Uma obra de valor inestimável para os que focalizam a vida de nossos poetas. Mas a obra ficou quase totalmente inédita, tendo saído apenas dois volumes. Daí, vendo um esforço de trinta anos como que perdido pela impossibilidade de pu¬blicação, veio-lhe um desencanto pela bibliografia. Encaixotou os cadernos de notas, as dezenas de milhares de fichas. Não sabe – diz ele com um sorriso – se fará com aquilo uma fogueira ou se lançará tudo ao mar. E depois, sério, escondendo uma ponta de amargura: –Talvez pegue dos caixotes e os enderece para a Universidade de Columbia. Acho que lá eles ficarão bem guardados.

Com mais de cinqüenta anos, Antônio Simões dos Reis tem o entusiasmo de um jovem de vinte. Dedica-se hoje, de corpo e alma, à sua editora, a conhecida "Organização Simões". Seu idealismo é muitas vezes maior que o seu interesse comercial. Faz erdadeiras "loucuras" no campo editorial, em benefício das letras brasileiras. Mas está, de certo modo, desencantado com a falta de compradores de livros... Assim mesmo, não pára de arquitetar planos. Mostra-nos o espelho de um jornal que lançará para distribuição com os leitores, jornal que trará as últimas informações bibliográficas, cuidando também das últimas notas políticas. À folha, deu o nome e o feitio de um velho jornal de Artur Azevedo: a "Gazetinha".

Depois de quase duas horas de conversa, nos despedimos desse homem amável, que fala com entusiasmo sobre seus planos. E o bibliógrafo que escreveu "Poetas do Brasil", "Bibliografia das bibliografias brasileiras", "Narcisa Amália", "Pseudônimos brasileiros" e tantos outros livros, promete-nos rebuscar seus caixotes, fornecendo-nos o que possui sobre Raimundo Correia. O que será, sem dúvida, um auxílio magnífico para quem vai recompondo, traço a traço, uma figura que se apaga no passado.

Publicado em "A Gazeta", Vitória,ES, 9.7.1953

Waldir Ribeiro do Val
Enviado por Waldir Ribeiro do Val em 20/05/2007
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