"A política é do diabo!?"

Volta e meia ouço gente, nas conversas entre corredores de igreja, no bate-papo cotidiano ou mesmo em pregações afirmando categoricamente e de forma enérgica e enfática que "a política é coisa do diabo", fazendo, por vezes, a interpretação equivocada de 1 João 05:19, onde "sabemos que o mundo é jaz no Maligno", e de Mateus 06:33 que diz, a saber: "Buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua justiça e as demais coisas vos serão acrescentadas."

Quando eu ouço isso, eu sinto um certo receio. Percebo, por vezes, um grau de escapismo ingênuo, voluntarista e, por vezes, inútil, sem algo a acrescer para outras pessoas que querem respostas aos seus problemas diários. Logo, ao perceber a afirmação desta máxima por grupos de fundamentalistas evangélicos - em grande parte neopentecostais e alguns pentecostais - e católicos, isto me faz lembrar, entre os séculos I a.C e I da era cristã, a respeito dos grupos essênios que, afastando-se da camarilha corrupta dos sacerdotes de Jerusalém, escondiam-se em cavernas ou locais bem ermos, como os desertos. Iam no intuito de buscar a Deus integralmente, separados da corrupção do aristocracia religiosa da capital judaica.

Se esse fato é por uma parte louvável, por outra reflete a imaturidade dessas pessoas em encararem o problema de frente. Dentre estes problemas, estão itens que influem a sociedade e que necessitam, diretamente, da participação dos cristãos, por meio dos seus valores. Um deles se encontra na participação política.

Quando eu digo o termo "participação política", não o faço na concepção convencional, na participação de uma pessoa em um partido político, no exercício de um cargo eletivo (isto é algo importante, mas não é tudo!). Falo sobre PARTICIPAÇÃO POLÍTICA como o EXERCÍCIO DA CIDADANIA, numa acepção plena.

E o que é ser cidadão?

Significa cuidar das coisas pertinentes à "cidade" ou, na prática, à sua sociedade, interferindo, até de forma bem simples, no dia-a-dia da sua comunidade, do seu bairro ou de uma entidade representativa que faça parte - ou poderia fazê-lo. A política, vindo de "polis", significa, em suma, cuidar ou zelar pelo bem público.

Existe uma frase de Maquiavel que pode apontar, aos cristãos fundamentalistas, uma máxima bem marcante, mas de fácil entendimento. Ele fala o seguinte: "Pobre daquele que não gosta de política, pois viverá o eterno infortúnio de ser governado por aqueles que gostam".

Tomás de Aquino, um grande teólogo medieval, afirma que a política é útil e eficiente quando existe a competência e a honestidade na forma de um governo dedicar-se ao bem-estar dos cidadãos. Como complemento à política, as leis jurídicas - diferente da lei eterna, criada por Deus para gerir o universo - servem ao homem inspirado por Deus para a prática do bem e o impedimento da prática do mal, visando o bem da comunidade. Desde que não haja contradições com a lei eterna, a lei humana - baseada na formação de arcabouços jurídicos e na própria existência do Estado - tem a utilidade para conferir um caráter educador ao homem e impedir, de forma persuativa (ou por meio de sanções), que façam o mal. Tem como objetivo maior a convivência pacífica entre os homens.

Pensemos, então...

Imagine um cristão fundamentalista, que odeia política e a considera como "coisa do diabo". Ele, como ser humano - e não como ser metafísico ou etéreo (e muita gente pensa assim) -, age em seu dia-a-dia. Ele trabalha e com o suor do seu labor, percebe a sua renda, como fruto do seu trabalho - regido pelas normas do sistema capitalista que vivemos. Com seu salário, ele consome produtos, feitos por empresas que pagam tributos (!?) e que geram empregos - diretos ou não -, e paga impostos, diretamente ao Poder Público ou pela aquisição dos produtos que compra, onde uma parte delas é fortemente tributada.

O mesmo cristão que paga impostos e compra produtos - em uma visão alienante, fundamentalista e fanatizante por vezes -, reclama da elevação do custo de vida e do seu parco salário, achando que Deus, em um "ato sobrenatural" ou em "uma varinha de condão" - para atender seus caprichos egoísticos - vai, por si só, solucionar os problemas financeiros, quando eles são estruturais.

Para os leitores desavisados, eu não nego em nenhum momento o poder de Deus, mas nego convictamente o grau de passionalidade de gente que espera o Ente, quando deveriam agir na esfera que é para o indivíduo atuar, enquanto membro de sociedade.

Continuando, o mesmo indivíduo cristão, além de receber seu ganho, consumir produtos e pagar seus impostos, ele, formalmente como cidadão - de direito, mas não de fato, pois sequer exerce sua cidadania, desvirtuando a passagem de Filipenses 03:20 -, tem direito a votar pelos seus dirigentes ou para escolher, por referendo ou plebíscito, sobre determinado tema presente na sociedade. Mais ainda: não tem só o direito de votar, mas concorrer a cargos eletivos para poder, enfim, colocar alguns princípios cristãos na sua atuação política.

Continuando, o indivíduo cristão que falamos trabalha, recebe, compra, paga impostos, pode votar e ser votado. Ainda: ele também tem o direito - como todo o cidadão - de exercer uma profissão dentro da Administração Pública, por meio dos concursos públicos ou mesmo por cargos de livre nomeação e exoneração. Mais: o mesmo cristão se insere na sociedade ao cursar uma universidade pública - por meio do vestibular ou por outras formas de acesso - ou pela privada, reconhecida pelo Ministério da Educação.

E tudo isso depende de decisões políticas! Verbas e recursos a serem contingenciados, maior ou menor taxa de impostos, congelamento ou aumento qualitativo de salários, dentre outras questões que envolvem DIRETAMENTE o nosso dia-a-dia!

Se certos cristãos soubessem da força e dos espaço que podem ocupar, baseando-se na coerência dos princípios cristãos, talvez pensariam três, quatro ou dez vezes, antes de mencionar essa expressão tão infeliz e fruto da alienação; do voluntarismo ininteligível e insensato que permeia várias congregações evangélicas e católicas. Boa parte delas possui um forte conteúdo escatológico, frente ao relativismo e ao ceticismo pós-moderno e as faltas de perspectivas presentes no processo de globalização.

Esquecendo-se de Jeremias 29: 07, onde ordena que procuremos "a paz da cidade para onde vos fiz transportar; e orai por ela ao Senhor, porque, na sua paz, vós tereis paz", de 2 Tessalonicenses 03:10b, onde taxativamente afirma que "se alguém não quiser trabalhar, não coma também" e outras passagens correlatas, muitos vivem em uma postura escapista; espiritualizam os relacionamentos interpessoais, afetivos e até mesmo os aspectos institucionais, econômicos e políticos.

Vale ressaltar que, em certos momentos, Deus, ao conceder capacidade intelectual ao homem, deu-nos capacidade volitiva para exercer nossos posicionamentos, inclusive políticos, tendo em vista a glória de Deus, conforme 1 Coríntios 10:31.

Os nossos cristãos fundamentalistas, muitos em uma postura alienante e metafísica, esquecem-se que são homens, que possuem limitações, anseios e expectativas. Homens que precisam lutar pelos seus ideais e por uma vida mais condigna aqui - ainda que forasteiros. Que, sobretudo, mesmo sendo servos de Deus, SÃO CIDADÃOS E VIVEM EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, REGIDO POR LEIS QUE INFLUENCIAM TODOS OS SEGMENTOS SOCIAIS, INCLUSIVE OS SETORES CRISTÃOS.

José, Moisés, Josué, Débora, Samuel, Davi, Salomão, Daniel, Neemias, Ester, Judas Macabeu, dentre outros exemplos, tiveram ações e práticas políticas. Foram grandes lideranças políticas e estadistas, cada um em seu tempo específico, enfrentando, por vezes, problemas de grande ordem. Foram grandes servos de Deus. Mas confiaram na política como mola de transformação social e econômica, colocando os valores cristãos a serviço da sociedade, zelando pelo bem-estar. Poderiam evadir-se dos seus problemas e, em uma postura ingênua e infantil, esconder-se atrás de Deus. No entanto, de forma firme, arrojada e corajosa, confiante em Deus, usaram os seus princípios para mudar a sorte do povo sob a sua batuta, por meio da eqüidade, da justiça e na defesa do bem-comum.

Uso, de forma oportuna, a frase de um grande líder do movimento negro norte-americano e um dos grandes expoentes políticos, o líder batista e pastor Martin Luther King. Ele fecha, em uma forma magnífica, com a seguinte frase: "O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons." A partir desta frase, o que sinto é que os ditos "bons" - dentro dos seus bancos de igrejas, em quatro paredes -, ao invés de mudar a sociedade, interferindo na escolha de governantes e na participação nos movimentos sociais na reivindicação de seus direitos (sindicatos, organizações estudantis, associação de moradores, grupos de interesse, partidos políticos, clubes, etc), preferem se omitir em uma postura covarde e confortável, em seus templos. Não gritam contra a injustiça, a maldade, a corrupção dos agentes públicos e o tráfico de influência de pessoas que não querem servir ao seu país, mas aos interesses corporativos e/ou pessoais.

A igreja de hoje, infelizmente reflete a lógica neoliberalizante e pós-moderna. Querem as bençãos de Deus, em sua vida emocional, espiritual, sentimental e financeira, de forma egoística, esquecendo-se do socialismo e do solidarismo cristão tão presente na igreja primitiva, conforme Atos 02:42-47 que assim diz:

"E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor, e muitos prodígios e sinais eram feitos pelos apóstolos. Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um. E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E cada dia acrescentava-lhes o Senhor os que iam sendo salvos".

Se os mesmos irmãos que dizem que "a política é do diabo" pudessem agir e torná-la como a de Deus, com certeza as mazelas e as desigualdades sociais diminuiriam muito, uma vez que nós temos, como Paulo diz sabiamente em 2 Coríntios 02:16, a mente de Cristo.

Para mim, a atuação política do cristão deve se ater basicamente a dois itens - primeiro, basear a sua atuação política na defesa pelo AMOR AO PRÓXIMO, com atuações que dignifiquem o ser humano como tal. A segunda e última consiste na LUTA CONTRA AS INJUSTIÇAS - em especial, a sócio-econômica, mas que também abrange à dignidade do homem e o direito à vida.

Cabe a nós, cristãos, esse desafio. Sem qualquer escapismo; contudo, com maturidade e com vontade de transformar a nossa sociedade, tendo o nosso exercício político por meio da plena cidadania. Até chegarmos ao céu, em Miquéias 02:10b menciona que aqui não será o nosso descanso. E por não termos descanso e lutarmos contra as obras do Maligno, é que nós, como servos de Deus, fazendo a Sua obra, temos que ser a "luz do mundo". E uma das áreas onde podemos influenciar diretamente, "ao buscar o Reino de Deus e a Sua justiça" por meio das práticas e princípios cristãos, reside na política - no cuidado pelo bem-comum, onde eu e você estamos inseridos.

É preciso enfrentá-los! Neste ponto, Deus usa os Seus para a obra! Dentre eles, eu e você!

Influenciemos o mundo, com os valores cristãos, atráves da transformação pela razão do nosso entendimento, conforme Romanos 12:02. Como servos de Deus, sejamos agentes transformadores da nossa sociedade, contra as injustiças, em defesa do próximo.

Não cabe agora mais palavras! Urge fazer!