O primeiro automóvel

Levei tempo para realizar o sonho que acalentei desde que conquistei a maioridade. Não a de Dom Pedro II, que foi proclamada aos 14, para que os reinóis suprissem a vaga do impetuoso Pedro I, que só queria saber da terrinha - além do colo da ardente marquesa.

Os anos eram produtivos, contudo. Estudava e lecionava ao longo de todas as horas úteis do dia. Nas inúteis, sonhava enquanto mal dormia. As finanças é que não acompanhavam aquele ritmo. E não é que fosse tão mau o salário, que além de cobrir os gastos da república, da alimentação e de alguma diversão, dava para ir formando um pecúlio modesto, mas sempre crescente.

O problema é que a mão não alcançava a espiga tão facilmente. Dali, comecei sondando as opções mais acessíveis, que incluíram um Gordini, um DKW e até um SIMCA. Com o Gordini, branquinho e rolicinho como ele só, houve a infelicidade do eventual vendedor quebrar a chave da ignição justamente no momento em que queria exibir-me as virtudes de sua máquina; com do DKW, que pertencia a um primo distante, falhou a aproximação quando, depois de me descrever motor, lataria e suspensão, e conveniência do preço, o primo, ao fechar a porta dianteira do veículo, viu, pra nosso comum desgosto, a traseira se abrir, sem nenhum comando; o SIMCA pertencia a um bancário, que nem chegou a me colocar em cheque, aparentemente duvidoso de minha liquidez, ou ainda confiante que o carro teria mais vida útil em suas próprias mãos.

Quando achei, finalmente, o escolhido, deparei-me com um Fusquinha 67, de um padre, colega de magistério. Só colega, aquele padre Pinto, pois, se amigo, teria refreado meu desejo possessório, pra não cair no purgatório.

Minhas economias - substanciadas por um adjutório providencial de papa - perfaziam o somatório de uma entrada, a que se acoplou um financiamento de cinco mil pratas pelo prazo de 24 meses.

Carro adquirido, plaquinha JG - 1953 foi a hora de me lembrar do detalhe da habilitação. Meses mais de ansiedade para pegar no volante dono de meu nariz e meu motriz, mas pelo menos a certeza de que não bateria.

Mal me peguei choferando - com alguns pequenos, mas custosos abalroamentos - foi a vez de enfrentar os efeitos iniciais do choque petrolífero. Geisel e seu ministro nipônico reajustaram os preço da gasolina na estratosfera. O que me limitou a rodagem do carrinho, somando-se aos seus renitentes problemas mecânicos.

A solução bateu à minha porta. Deu Bode. Era um comprador, o Geraldo Bode. Vê se pode...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 04/12/2014
Reeditado em 17/12/2020
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