Por que não gostamos do Dia da Consciência Negra

Mesmo o bêbado da esquina possui, ainda que embriagado, uma série de noções e princípios. Aquilo que ele acha certo e errado, aquilo que deveria ser o papel das autoridades, etc. Ele tem uma série de opiniões a respeito das leis e das punições e do valor ou desvalor das autoridades. O bêbado também é um animal político.

Este bêbado pode inclusive compartilhar com milhões de brasileiros as mesmas opiniões sobre aborto, corrupção, drogas,violência, ética e moralidade. Este bêbado vota de 2 em 2 anos, assiste Jornal Nacional e ajuda a engrossar o coro contra este ou aquele político. Fazemos política, ainda que bêbados e sem exercer cargo político.

Quando grupos que se identificam como negros e representantes de interesses próprios aos negros resolvem se organizar com um projeto e pauta própria, entendemos que há mais um ator político em disputa.

Nós e os bêbados percebemos que há uma nova agenda em disputa como legítima e talvez prioritária em relação a outras agendas. Nossa agenda é rejeitada ou se torna antagônica não representamos mais seus interesses. Agora disputam com a gente a pauta e a agenda política.

Isto significa que uma pauta considerada negra e para os negros entra em disputa contra uma agenda que de alguma forma pretendia abarcar seus problemas e demandas: quem acharia bonito a discriminação e o racismo? Quem quer ver isto?

Mas não é assim de fato. Toleramos a desigualdade racial de renda, assim como os números assustadores de desigualdade em relação a homicídios e encarceramentos. Nosso discurso e humanitarismo não foram suficientes para aqueles negros mais atentos e logo resolveram ter uma luta própria que não se diluísse num humanismo omissivo politicamente correto.

A questão é: estamos preparados para ver novos atores e agendas políticas concorrendo com nós brancos e homens? Tornando ainda mais clara a questão: estamos dispostos a ver negros e mulheres lutando por interesses que não são necessariamente os nossos?

Vou dar um exemplo. Uma feminista chamada Nádia Lapa numa destas discussões virtuais jogou na cara de muitos homens, que realmente se preocupavam com a violência contra a mulher: "os homens querem dizer como as mulheres devem lutar?". Foi algo exagerado da parte dela e creio que pouco estratégico, visto que o interesse dos homens pela causa não significa querer dominar a luta pela causa.

Vi a alguns dias, algo parecido com "os brancos querem dar pitaco na luta dos negros". Respondi evocando o artigo 5 da constituição sobre liberdade de expressão e de consciência e o direito de me importar com pessoas que gosto e com a justiça independente de cor ou gênero.

Fiquei incomodado com isto. E pensei se estamos dispostos ao exercício democrático de conviver com diferenças e disputas ideológicas ou tudo aquilo que não soma queremos destruir?

Tenho sérias dúvidas sobre a firmeza dos fundamentos sociais para a democracia num país como o nosso. A democracia exige tolerar divergências, exige buscar o consenso e reproduzir a cada dia a difícil tarefa de harmonizar as diferenças. Isto para que nossa individualidade nem seja ameaçada e nem seja uma ameaça para os demais.

Aceitar o feminismo e o movimento negro, mesmo não sendo concordantes ou abarcados em uma agenda mais ampla exige uma cultura democrática da qual creio estarmos muito mal preparados e iniciados.

Devemos nos perguntar ao nos dizermos democratas, se toleramos divergências ideológicas, se acreditamos que a liberdade de expressão deva ser relativizada diante de pautas morais particulares. Devemos nos perguntar se estamos preparados para dialogar com quem por direito se opõe às nossas pautas e projetos, aqueles que tem um projeto próprio que querem caminhar sozinhos.

Se voltarmos ao bêbado e perguntamos a ele sobre isto, ele defenderá aos berros suas convicções e não aceitará divergências, pois se considera amparado no Certo, no seu Dever e nas leis de Deus. Este bêbado não precisa estar embriagado para pensar assim, o seu vizinho cuja religião não permite a bebida pensa como ele.

O cara que passa em uma caminhonete branca ano 2016 pensa do mesmo jeito que o indivíduo trabalhador de fábrica que espera seu ônibus já atrasado. Ambos desconhecem os fundamentos básicos da democracia, ambos se incomodam com este negócio de feminismo e também com esta coisa de Dia da Consciência Negra.

O bêbado não é tão diferente deles, somente menos polido e indiferente ao que alguém venha a pensar.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 20/11/2017
Reeditado em 22/11/2017
Código do texto: T6177582
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