ANÁLISE SEMIÓTICA DA PARÁBOLA DO RICO E DO LÁZARO

ANÁLISE SEMIÓTICA DA PARÁBOLA DO RICO E DO LÁZARO

Arnaldo Pinheiro Mont’Alvão Júnior

O autor é aluno especial da disciplina Semiótica: Princípios e Historicidade, ministrada pelo professor Dr. José Genésio Fernandes, no curso de Mestrado em Estudos da Linguagem da UFMS.

RESUMO. Utilizando a teoria semiótica de Greimas e seus seguidores, este artigo visa analisar o texto “A parábola do rico e do Lázaro”, Lucas 16: 19-31, nos níveis fundamental e narrativo, e reconhecer algumas características das parábolas bíblicas.

PALAVRAS-CHAVE: semiótica; análise; narrativa bíblica.

1 – INTRODUÇÃO

Para analisar esta parábola no nível narrativo é necessário realizar uma breve explicação sobre a teoria semiótica francesa. A Semiótica é uma disciplina que estuda a significação de qualquer tipo de texto: verbal, visual, musical ou misto, este chamado de “sincrético” por relacionar diferentes tipos de linguagem.

A semiótica se preocupa em explicar o que o texto diz e como faz para dizer o que diz, ou seja, visa entender o processo de construção da significação no interior do texto. Para tanto, Greimas e seus seguidores conceberam o percurso gerativo de sentido, entendido como um modelo de inteligibilidade dos textos. O que significa isso? O que é esse percurso gerativo de sentido? Para entender o que significa isso, utilizo aqui um pequeno diálogo de sala de aula, “o aluno esperto e o professor”, material dado em aula, com finalidade didática. Ele serve para responder a essa pergunta e facilitar o entendimento dessa questão:

- Professor, então eu posso virar escritor, usando esse tal percurso gerativo de sentido?

- Não. O percurso gerativo de sentido não serve para isso. A função dele é ser um simulacro metodológico.

- Que bicho é esse, então?

- Vocês certamente já viram aquele robozinho caríssimo usado para desmontar bomba, não? Pois é. Ele parece que tem na cabeça um simulacro das estruturas das bombas. Com isso ele desembrulha a bomba, entra dentro dela, para conhecer e desmontar o modo de estruturação que a faz explodir. Claro que, às vezes, o simulacro de bombas que ele tem falha diante de algum aspecto de uma bomba nova, esperta e aí: buuuumm! Isso não invalida toda as capacidades do robozinho. Mas faz com que os peritos estejam sempre refazendo o simulacro de bombas da cabeça do robozinho. Assim é o percurso gerativo de sentido (simulacro metodológico, modelo de inteligibilidade dos textos): ele serve para você entrar dentro do objeto texto e conhecer o modo de sua estruturação para significar. E... como o simulacro de bomba do robozinho, esse simulacro dos textos pode, também, falhar, diante de algum aspecto de um texto inovador - e nesse caso tem de ser repensado, enriquecido teoricamente (mas não jogado todo fora). Por isso muita coisa foi acrescentada ao percurso gerativo de sentido dos anos 60 e 70. Por isso, tanto o simulacro de previsibilidade das bombas quanto o simulacro de previsibilidade dos textos (o percurso gerativo) nunca estão prontos, acabados. Não foi o que dissemos atrás?

- Dê um exemplo do que ficou fora nos anos 60 e 70 e que agora tá dentro, professor?

- Nos anos 60 e 70, a semiótica dedicou-se à análise do plano de conteúdo dos textos (seu caráter inteligível), mas o plano de expressão (seu caráter sensível) ficou sem a merecida atenção (veja o livro do Pietroforte: o que ele estuda lá é que tinha ficado fora - mas hoje tá dentro). Texto mimeografado, intitulado “notas para aula”, distribuído em aula, pelo professor José Genésio Fernandes, para ajudar os alunos na compreensão do assunto.

O semioticista lida com os textos mais na pele de um mecânico do que de um motorista. O motorista deleita-se na direção e não tem interesse em saber que mecanismos fazem o carro arrancar, frear, etc. O mecânico já se interessa pelo conhecimento das engrenagens que causam tais e tais movimentos do carro. Ele abre o carro, entra em suas engrenagens e examina e procura conhecer os mecanismos de linguagem que produzem os efeitos de sentido do texto.

A semiótica defende a idéia, de dividir a estrutura do texto em dois planos: o “plano de expressão”, onde está a representação do texto, e o plano do significado chamado “plano de conteúdo”. Por muito tempo, a semiótica estudou o plano de conteúdo somente, usando o percurso gerativo de sentido, que dá a idéia de que o sentido vai sendo gerado, hierarquizado em três níveis: fundamental, narrativo e discursivo. Esta análise tratará da geração do sentido do texto somente nos níveis fundamental e narrativo do plano de conteúdo.

Analisar o nível narrativo é descrever a estrutura da história contada, determinar seus participantes e o papel que representam. Para tanto, esse nível tem duas concepções de narrativa: a primeira considera a existência de um sujeito agente sobre o mundo, buscando o objeto para ter acesso a valores, e com ele manter relações de junção. A semiótica é uma teoria de relação entre as unidades do texto, e essa relação determinará o valor de cada objeto.

Pode-se sintetizar a estrutura da narrativa por meio de uma integração de estados e transformações denominada como programa narrativo (PN). O programa narrativo é uma seqüência de enunciados de fazer e de estado, em que o enunciado de fazer rege outros enunciados de estados. Fiorin (2004, p. 227) afirma que “o que define o componente narrativo do texto é a mudança de situação, a transformação. Narrativa é, pois, uma mudança de estado operada pela ação de um sujeito ou personagem.” Dentro de uma história pode haver vários programas narrativos, tanto de base (também denominado como principal) quanto de uso (secundário). Vale ressaltar que um PN de base depende de muitos PNs de uso.

Importante: segundo Barros (1999, p. 22) “os dois sujeitos, do fazer e do estado, podem ser assumidos por um único ator ou por atores diferentes”. Isto implica dizer que, quando o sujeito age para transformar o seu próprio estado, cumprindo, pois, dois papéis, o de sujeito do fazer e o de sujeito de estado, realiza um PN reflexivo. E, quando o sujeito age para transformar o estado de outro, realiza um PN transitivo, pois, nesse caso, o sujeito do fazer desempenha apenas um papel, aparecendo outro ator para desempenhar o papel de sujeito de estado.

A segunda concepção de narrativa compreende estabelecimento e ruptura de contratos entre os sujeitos, no qual um age sobre outro, para influenciá-lo. Um sujeito só irá desejar um objeto depois de sofrer uma manipulação executada por outro, definido como destinador-manipulador. Através de uma manipulação, ele atribui os chamados objetos modais (dever, querer, poder, saber) a outro sujeito, induzindo-o a agir. Esta fase de manipulação compreende quatro grandes tipos: tentação, intimidação, sedução e provocação. Depois de realizada, o manipulador sanciona a perfórmance, interpretando a ação e premiando ou punindo o destinatário.

A semiótica denomina essas fases da história como esquema narrativo canônico: 1 – manipulação (sujeito doa ou atribui objetos modais a outro sujeito) que pode ser bem ou mal sucedida; 2 – aquisição de competências (sujeito decide se aceita ou não querer, dever, poder, saber); 3 – perfórmance (ação); 4 – sanção (cognitiva: interpretação da ação e dos objetos adquiridos; pragmática: premiação ou punição).

A seguir, apresenta-se na íntegra o texto, A parábola do rico e do Lázaro, objeto deste estudo, para o leitor acompanhar melhor essa análise : Esse texto foi copiado fielmente do Santo Evangelho Segundo S. Lucas 16: 19-31. Os números que iniciam cada período correspondem aos versículos; é nesse espaço que se encontra a parábola dentro do capítulo 16.

19 Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente.

20 Havia também um certo mendigo, cha¬mado Lázaro, que jazia cheio de chagas à por¬ta daquele;

21 E desejava alimentar-se com as miga¬lhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas.

22 E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado.

23 E no Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio

24 E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama.

25 Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora este é conso¬lado e tu atormentado.

26 E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderi¬am, nem tampouco os de lá passar para cá.

27 E disse ele: Rogo-te pois, ó pai, que o mandes a casa de meu pai

28 Pois tenho cinco irmãos, para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham também para este lugar de tormento.

29 Disse-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos.

30 E disse ele: Não, pai Abraão, mas se algum dos mortos fosse ter com eles arrepender-se-iam.

31 Porém Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite. Lucas 16: 19-31

Como este é nosso primeiro artigo, como estamos ainda na fase de domínio da tória e como visamos um leitor principiante no estudo de semiótica, vamos utilizar a linguagem simbólica que a semiótica usou nos livros de divulgação da tória. Isso nos ajuda no aprendizado, mas poderíamos não utiliza-la, se o desejássemos.

2 – ANÁLISE DO NÍVEL NARRATIVO

Nesta narrativa, temos os seguintes sujeitos: S¹ (homem rico), S² (Lázaro) e S³ (Deus, no decorrer da história denominado pai Abraão). O texto começa com a descrição da vida dos personagens S¹ e S² e, após a morte de ambos, temos o desenrolar da trajetória do homem rico tentando alcançar seu objetivo: as bênçãos eternas.

O texto tem início com a apresentação do estado de dois homens: o de um homem rico e o de um homem pobre e miserável. O rico vestia-se de púrpura e linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. O pobre era um mendigo chamado Lázaro. Ele jazia cheio de chagas à porta do homem rico. Jazer, segundo o dicionário Houaiss, entre outras acepções, é “estar ou parecer morto”. E Lázaro jazia porque tinha uma fome desmedida, desejando comer as migalhas que caíam da mesa do homem rico e não tendo força para espantar os cães que vinham lamber-lhe as chagas.

2.1. As perfórmances pressupostas

Mas o que está pressuposto, não narrado nessa parábola, e que é preciso recuperar na leitura? Está pressuposto um Programa narrativo ou perfórmance realizada pelo sujeito Deus (S³). Sabemos que o criador realizou o primeiro programa narrativo (PN1), de criação, concedendo o objeto de valor vida a S¹, e a S².

PN1 = [F(S³  (S¹ e S² U Ov)  (S¹ e S² ∩ Ov)] doação

F: ação de fazer.

: transformação

S³: sujeito do fazer, Deus.

S¹ e S²: sujeitos de estado, o rico e o pobre.

U e ∩: disjunção e conjunção, respectivamente.

Ov: objeto de valor: vida.

A semiótica possui um jargão próprio. Essas notações são aqui utilizadas para auxiliar a compreensão de um leitor que desconhece ou inicia o estudo da teoria, como é o meu caso; não tornando sua leitura uma jornada maçante.

Com esse PN, Deus cria, pois, essas duas criaturas. Doa-lhes a vida. Em seguida, está pressuposto que essas duas criaturas, o rico e o pobre, realizaram, cada um, o seu programa narrativo, ou seja, a perfórmance de viver. O rico mantém uma relação de conjunção com a vida, investindo nela o valor riqueza: viver para ele é conquistar riqueza, luxo, ganhos, prazeres. Ele realizou o (PN2) de viver todos os seus dias realizando a perfórmance de conquista de bens materiais.

PN2 = [F(S¹  (S¹ U Ov)  (S¹ ∩ Ov)] apropriação

S1: Homem rico, sujeito do fazer e, concomitantemente, sujeito de estado.

Ov: objeto de valor: bens materiais, riqueza.

Natural que, com essa perfórmance, o rico tenha se transformado em um homem exclusivamente rico, sem nenhum sentimento de solidariedade – e que o outro tenha sido espoliado, ficando imensamente pobre. Portanto, o PN2 do rico implica a realização, ao mesmo tempo de um PN3, de empobrecimento do outro. Segundo BARROS (1999, p. 23) “É fácil perceber que os programas narrativos projetam sempre um programa correlato, isto é, se um sujeito adquire um valor é porque outro sujeito foi dele privado ou dele se privou”.

PN3 = [F(S¹  (S² U Ov)] espoliação

S¹: Homem rico, sujeito do fazer.

S²: Sujeito de estado, o homem pobre.

Ov: objeto de valor: bens materiais, riqueza.

Assim é que S² aparece na história, como pobre e miserável, pois o outro conquista tudo. Resultado: o sujeito pobre é um mendigo chamado Lázaro, e está conjunto com a miséria, com doenças e com a fome. Vive junto com os cães e deseja comer as sobras da mesa do homem rico. Ele perdeu a vida de prazeres e de posses.

Assim é que, no início da narrativa, os dois sujeitos, S¹ e S² aparecem em situações bem opostas. Enquanto S¹ acumulou riquezas e prazeres; S² ficou sem nada. Através das relações existentes entre estes dois sujeitos, também podemos perceber a determinação dos diferentes valores investidos no mesmo objeto, a vida.

2.2. As perfórmances narradas

Conforme o versículo 22: “E aconteceu que o mendigo morreu (...); e morreu também o rico (...)”. Temos, portanto, de maneira sumária, a narração da perfórmance do sujeito Deus, o destinador da vida. Ele, para colocar um fim à existência dos sujeitos, realiza o PN4 de morte ou de retomada da vida das duas criaturas.

PN4 = [F(S³  (S¹ e S² ∩ Ov)  (S¹ e S² U Ov)] espoliação

S³: Deus criador.

S¹ e S²: o rico e o pobre.

Ov: objeto de valor = a vida.

Deus deu-lhes a vida e, depois de cada um viver ao seu modo, ele retirou-a deles. Mas por que seguem destinos diferentes após a morte? Neste momento inicia-se a fase de sanção cognitiva, na qual Deus assume outro papel dentro da narrativa, o de destinador julgador: Julga os dois sujeitos; avalia o que eles fizeram durante a vida. Essa fase consiste na interpretação, a partir de uma ideologia, de um sistema de valores partilhado entre o destinador S³ e os destinatários S¹ e S².

Depois de avaliar as perfórmances dos sujeitos, S¹ e S², o destinador exerce a sanção pragmática através do PN5 de premiação dos destinatários.

PN5=[F(S³  (S² U Ov)  (S² ∩ Ov)] doação

S³: destinador-julgador, Deus.

S²: o pobre.

Ov: objeto de valor: a salvação, o céu.

Deus considera que Lázaro teve uma vida de tormentos e agora merece ser consolado. Então, S² é levado pelos anjos (elementos adjuvantes de S³) ao seio de Abraão. Seu prêmio será viver eternamente no céu, gozando das bênçãos celestiais.

Enquanto isso, o homem rico não tem a mesma sorte e recebe – não o prêmio – mas o castigo. Deus o condena a uma eternidade de tormentos. Logo, ele segue para o inferno (Hades), conforme o PN6 apresentado a seguir:

PN6 = [F(S³  (S¹ U Ov)  (S¹ ∩ Ov)] doação

S³: destinador-julgador, Deus.

S¹: o rico.

Ov: objeto de valor: a condenação, o inferno.

Deus age conforme seus valores, expressos em outras partes da bíblia: “porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?”

Esses são os principais programas narrativos realizados por S³, pois determinam o futuro de S¹ e S². Neste momento da narrativa, verifica-se a mudança de posição dos dois sujeitos, dada a perfórmance realizada por Deus sobre eles. Lázaro, que no início da narrativa estava conjunto com a miséria, fome e doenças, caracterizando uma vida de sofrimentos, torna-se disjunto destes objetos de valor e entra em conjunção com o descanso eterno. Porém, o homem rico passa de um estado de conjunção com a riqueza, onde tem uma vida tranqüila, para outro de disjunção com ela, atormentado por toda a eternidade. O que estava em baixo sobe para as alturas celestiais e o que estava em cima é rebaixado às profundezas de Satanás. O destinador-sancionador inverte, portanto, a posição espacial dos sujeitos.

Em seguida, temos a segunda parte da história. Ao avistar Lázaro salvo, desfrutando de suas bênçãos no céu, o homem rico e condenado, atormentado e não suportando as chamas do inferno, pretende realizar um PN em proveito próprio: aliviar seus tormentos. Esse pode ser expresso no PN7 como segue:

PN7 = [F(S¹  (S¹ ∩ Ov) (S¹ U Ov)] renúncia

S¹: o rico.

Ov: objeto de valor: a condenação, o inferno, tormentos.

Como não pode fazer isso por si mesmo, tenta realizar um programa de manipulação de Deus – Pai Abraão – para que realize uma ação em seu proveito. Trata-se de um fazer-fazer, ou seja, fazer com que Abraão faça uma ação para aliviar seus tormentos. E essa ação de Abraão consistiria em um outro fazer-fazer, ou seja, fazer Lázaro fazer, aliviar os tormentos das chamas. Ele suplica ao Pai Abraão por um alívio de seu tormento. Dá-se início ao processo de tentativa de manipulação: ele pede para Deus enviar Lázaro para socorrê-lo, lá embaixo.

Pode-se, nesta análise, afirmar que S¹ tenta realizar este programa narrativo de manipulação por sedução sobre S³, que tem o poder de tirá-lo daquela situação ou aliviar seu tormento. O objetivo é fazer Abraão querer-fazer o que ele pede, o alívio (PN8).

PN8 = [F(S¹  (S³ U Om) (S³ ∩ Om)] doação

S¹: o rico.

S³: Pai Abraão.

Om: objeto modal: querer-fazer.

O ato de pedir a Abraão que delegue um outro sujeito para fazer o que pede já constitui uma manipulação por sedução, na medida em que ele reconhece o Pai Abraão como a realeza máxima detentora de todo poder-fazer e a quem não se deve tomar como subordinado ou serviçal. Porém, este PN é mal sucedido. O sujeito S¹ não consegue convencer Abraão, pois seu discurso é insuficiente aos olhos de S³; assim como afirma GREIMAS (1978):

A adesão do destinatário, por seu turno, só pode ser conquistada se ela corresponde à sua expectativa: isso significa que a construção do simulacro de verdade é fortemente condicionada, não diretamente pelo universo axiológico do destinador, mas pela representação que dele faz o destinador, que permanece definitivamente senhor da obra, responsável pelo sucesso ou pelo fracasso do seu discurso.

O pai Abraão, S³, não aceita a manipulação, mostrando ao rico, S1, que as premiações recebidas pelos dois sujeitos foram diferentes devido à diferença existente entre os dois durante a vida. S¹ recebeu bens e vivia tranqüilamente, e o Lázaro, S², sofria com os males de sua vida miserável. Eles merecem ser recompensados. Lázaro é consolado e o homem rico atormentado.

Também existe outro empecilho para ajudá-lo: existe um grande abismo entre os dois, que separa o céu do inferno. E é impossível de atravessá-lo, não permitindo o acesso de Lázaro até ele. O que Abraão alega é que falta um poder-fazer para que uma alma do bem realize perfórmances no terreno do mal. Portanto, Deus o mantém no inferno e sem nenhum alívio.

Não satisfeito, S¹ insiste, tenta realizar outro PN de salvação (PN9), agora a de seus irmãos, como segue:

PN9 = [F(S¹  (S4 U Ov) (S4 ∩ Ov)] doação

S¹: o rico.

S4: irmãos do rico.

Ov: objeto de valor: salvação.

Como não pode fazer isso por si, tenta manipular novamente o Pai Abraão, visando à salvação de seus irmãos. Utilizando o vocativo “pai” e o verbo “rogar”, aqui assumindo uma carga significativa equivalente a um pedido humilde e intenso, ele faz uma imagem grandiosa, afetuosa e respeitosa de Deus, caracterizando uma manipulação por sedução. Agora ele pede para Abraão enviar Lázaro à casa de seu pai avisar seus cinco irmãos sobre seu estado; pois não quer que eles tenham o mesmo destino de sofrimento eterno.

Surge uma questão nesta análise da manipulação: essa tentativa assume um caráter de negociação? Ora, não ter o mesmo destino terrível de passar a eternidade no inferno significa que seu desejo é encaminhar seus irmãos para o céu. Logo, ele também apela para uma manipulação por tentação, ofertando ao pai Abraão um objeto de valor: as almas tementes de seus cinco irmãos. Salvando-os, Deus terá estas cinco almas para si.

Entretanto, o PN de S¹ é mal sucedido, mais uma vez. “A característica básica da narratividade é uma mudança de situação, uma alteração de estado” (FIORIN, 2004, p. 269). Abraão, S³, é um sujeito do poder, mas não do querer. O rico condenado, S¹, não consegue mudar o estado modal de S³, dotá-lo do quere-fazer, não foi capaz de convencê-lo a salvar seus irmãos; sendo assim, o estado modal de S³ não é alterado e o programa narrativo de manipulação não alcança êxito. Deus declara que na terra já existem seus adjuvantes, Moisés e os profetas, para a salvação dos homens, com seus ensinamentos. Os irmãos do homem rico têm a oportunidade de se salvar por esses ensinamentos.

Finalmente, S¹ ainda tenta argumentar dizendo que se um dos mortos, como Lázaro, fosse ao encontro de seus irmãos, certamente eles se arrependeriam e, pelo arrependimento, seus pecados seriam perdoados e os cinco conseguiriam alcançar a salvação. Mas outra vez Deus responde contrariando as expectativas de S¹. Se seus irmãos não têm fé suficiente para acreditar nas palavras de seus adjuvantes na pregação do bom caminho, tampouco acreditarão na ressurreição de um morto. E, por fim, Deus o mantém no inferno, cumprindo-se assim o que outro texto bíblico diz: “Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus (...) é mais fácil passar um camelo pelo fundo duma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”.

3 – ANÁLISE DO NÍVEL FUNDAMENTAL

No nível fundamental de “A parábola do rico e do Lázaro”, podemos encontrar uma oposição semântica: riqueza x pobreza. É possível dividir esta narrativa em dois momentos.

No primeiro, a riqueza é vista como eufórica (relacionada com valores positivos), pois traz uma vida esplêndida ao homem. O homem, em conjunção com valores relacionados à riqueza, sente-se relaxado e vive as paixões ou estados de alma da felicidade. A pobreza é sentida como disfórica (valores negativos), levando Lázaro a viver desgraçadamente. Sente-se, então, tenso. Isso mostra que ele sofre por sua vivência miserável, padece muito por estar em conjunção com valores relacionados à pobreza, vivendo as paixões da angústia. Temos então a riqueza vinculada aos prazeres e a pobreza ao sofrimento.

Notamos que o enunciador relaciona assim esses valores, não porque seja essa a sua intenção, mas porque joga com os valores do leitor ou ouvinte da palavra, para depois demonstrar a sua posição.

Assim, no segundo momento da narrativa, isso se inverte: a riqueza é vista como disfórica, pois leva o homem rico ao inferno e, conseqüentemente, à tensão. Agora os valores relacionados à riqueza são outros e, em conjunção com eles, o homem rico é condenado a sofrer pela eternidade, vivendo o estado de alma da angústia e do remorso (revelado pela tentativa de salvar seus irmãos). A pobreza também tem seus valores alterados, e assume o caráter eufórico. Lázaro viverá relaxado por todo o sempre, experimentando a paixão da felicidade na paz de sua salvação. “Numa narrativa, o sujeito segue um percurso, ou seja, ocupa diferentes posições passionais, saltando de estados de tensão e de disforia para estados de relaxamento e de euforia e vice-versa” (BARROS, 1999, p.47). Em suma: a riqueza passa a ser disfórica, pois trouxe sofrimento e condenação, e a pobreza agora é eufórica, trazendo paz e salvação. Conforme S. Mateus, 16: 25 e 26:

“Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?”

4 – CONCLUSÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NARRATIVAS BÍBLICAS

Por meio deste estudo, chegamos a algumas conclusões. A primeira diz respeito ao ponto de vista da semiótica; a significação se dá por meio de relações tecidas na trama da narrativa. O texto é um mundo de relações.

Segundo, nossa análise demonstrou que há na parábola uma série de PNs pressupostos e que é preciso recuperar para dar conta do sentido do texto. Isso se dá porque esse tipo de narrativa funciona como um exemplo. Assim a narrativa começa no ponto que interessa aos propósitos do enunciador. Por isso ela começa em utimas res, ou seja, pelo final, quando o estado dos dois sujeitos da fábula é de riqueza e de pobreza e eles morrem.

Por fim, é preciso dizer que o enunciador assim procede para manipular o enunciatário para aceitar os seus valores da doutrina que representa. A fortuna (representada pelo dinheiro, ouro, prata e vestidos, objetos que, segundo várias passagens da bíblia, se deterioram com o tempo) desperta paixões negativas, se acaba. Nesta “parábola do rico e do Lázaro”, observa-se que os valores investidos sobre riqueza e pobreza estão diretamente relacionados, respectivamente, à condenação ou à salvação. Conforme os versos 25 e 26 do capítulo 16 do Santo Evangelho Segundo S. Mateus:

“Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?”

Numa outra narrativa bíblica intitulada “O mancebo de qualidade” Mateus 19: 16-30, um rapaz pergunta a Jesus o que lhe faltava para herdar a vida eterna. Este, por sua vez, responde falando para o mancebo vender tudo o que tinha e dar todo o dinheiro aos pobres, podendo segui-lo e herdar um tesouro no céu. Mas o rapaz desiste e retira-se triste porque tinha muitos bens. Em seguida, conforme os versículos 23, 24, 25 e 26 desse capítulo, Jesus mostra a ganância do rapaz como um anti-sujeito que o impedirá de alcançar a salvação:

23 Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus.

24 E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo duma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.

25 Os seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, dizendo: Quem poderá, pois salvar-se?

26 E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível.

Jó, outro personagem bíblico, era servo de Deus. Homem sincero desviava-se do mal, servia a Deus com prazer e devoção, vivendo tranqüila e fartamente. Ele também precisou passar por todas as provações possíveis. Certo dia, Satanás tentou a Deus, dizendo que Jó blasfemaria se sofresse em vida. Deus então tirou-lhe tudo, inclusive família, filhos e saúde. Porém, mesmo vivendo desgraçadamente, Jó continuou fiel. Deus então lhe restituiu tudo em dobro.

Logo, pode-se concluir que, para esse enunciador do discurso religioso cristão, no caminho da salvação da alma, é imprescindível a existência do sofrimento, as aflições e as angústias em vida, para a conquista da salvação. O ter é condenado. A partilha dos bens é valorizada e a aquisição exclusiva de riqueza, condenada. A visão de mundo pregada difere, portanto, da de outros enunciadores de outros credos, para quem a vida não deve ser um padecer e o ter não é sinal de pecado e condenação.

REFERÊNCIAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. 1999. Teoria semiótica do texto. São Paulo, Ática.

BÍBLIA SAGRADA. O Livro de Jó; O Santo Evangelho Segundo S. Lucas; O Santo Evangelho Segundo S. Mateus. Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.

DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro, Objetiva: 2001.

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2005. Edição revista e ampliada.

FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2004.

GREIMAS, Algirdas Julien. O contrato de veridicção. Acta semiótica et lingüística. São Paulo: Humanitas, 1978.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique : dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris : Hachette, 1993. v. 1.

LOPES, Ivã; HERNANDES, Nilton. Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005.

Arnaldo Pinheiro Mont Alvão Júnior
Enviado por Arnaldo Pinheiro Mont Alvão Júnior em 22/08/2007
Código do texto: T619414
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