CRIOULOS PRETOS: de propriedade dos outros a proprietários de si mesmos.

O presente artigo representa uma caminhada a fim de construir ou delinear o percurso da exclusão social desses “sub-cidadãos”, “infra-cidadãos”, ou até “não-cidadãos”, ou ainda qualquer outro neologismo que seja capaz de nos ajudar a conceituar a condição desses egressos de quase quatrocentos anos de escravidão, não sendo portanto suas especificidades discutidas, principalmente quanto aos espectros remanescentes de um passado onde o conflito entre negros e brancos era impraticável, juridicamente falando, mas com a transmutação da lei o conflito se consubstancia pelas verbalizações ressentidas de ambos os lados.

A busca de uma compreensão das mazelas sociais que vivemos hoje, através de um diálogo com o passado. Um passado que engendrou formas anômalas de existência, corporificadas nos guetos, nos cortiços, nas favelas e, que no presente estão a sufocar a “sociedade oficial”, por assim dizer, imputando-a o medo, num diálogo beligerante que se faz ouvir pelos projéteis que destroçam vidas e sonhos e empalham um sentimento xenofóbico deveras perigoso para a dissolução desse conflito cada vez mais audível, bem como e principalmente comprometedor para a continuidade dessa democracia muda e surda que cacareja ‘ordem e progresso’.

Os estudos desse caos social é deveras fascinante, uma vez que ele desafia o próprio darwinismo social de Herbert Spencer, cuja máxima prega a “sobrevivência do mais apto” , uma teoria que para nós parece facilmente refutável, uma vez que no Brasil parece ter-se desenvolvido uma “sociedade paralela” , ou “corpo sociocultural independente” como também trata Helena Catz . Composta de pessoas que teimam em existir em um modelo de nação que parece não ser deles e, que há muito tempo já os condenou à exclusão social e até à erradicação, pois seu projeto fora erigido à revelia desses autóctones, restando-lhes débeis símbolos pátrios flagrantemente forjados, artificializados num teatro onde a dor não precisa ser encenada.

Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos. Para a grande maioria dos fluminenses, o poder permanecia fora de alcance, do controle e mesmo da compreensão. Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante.

Dentre todas essas questões que nos propomos investigar, consideramos vital a exploração do “ethos”cultural de uma sociedade no limiar da República, mas que ainda respirava os ares monárquicos, como miméticos de uma tipológica fidalguia arruinada pela nova realidade do capitalismo liberal, em profunda crise no final do século XIX, acompanhado do fenômeno do imperialismo. Seus comportamentos indiferentes à nossa complexidade enquanto povo, resultou no atraso em dirimir pendências que comprometiam nossa unidade cultural identitária e respondem, ainda hoje, pelos bolsões de excluídos sociais que formam um mundo absolutamente paralelo, não-identificado com a ordem e que só se comunica com ela pelas vias do desejo, como o de ser admitido e reconhecido em sua suposta cidadania plena e/ou de não serem tratados como ‘banidos sociais’ , ‘excluídos sociais’ , como o são de maneira contumaz. Quase sempre sua imposição se vale de sua insistente presença, ou pelo fascínio de sua capacidade criadora que, indiferentemente, gera certa sedução aos herdeiros da cultura lusófona até hoje.

Trataremos daquilo que por muito tempo foi classificado erroneamente pela academia como “coisa”. Os “crioulos pretos”, foram desclassificados, considerados inaptos para o novo e dominante processo produtivo como mão-de-obra assalariada. Tratados como sub-raça, anomalia racial que fez um país amorfo, o nosso tecido social “multi-colorido” foi hierarquizado pelo tom da pele e pela posse. Segundo Darcy Ribeiro, ele havia sido um “possuído”, as dúvidas são: “enquanto escravo, enquanto mercadoria, no “ato da compra”, mas, uma vez em mãos do Sr. pairavam as dúvidas pela variedade de relações que surgiam.

Ainda hoje sofremos por não olharmos seriamente para a questão do nosso hibridismo imanente e preferimos nos apegar às utopias eufêmicas de que no Brasil há um amálgama racial e cultural. Mas até que ponto nos misturamos? E até que ponto coexistimos pacificamente, principalmente no período em questão? Até quando seremos reféns de nossas próprias abstrações e comportamentos?

Percebemos um estado de estagnação social no cotidiano desse contingente subalterno, preferencialmente se tratando dos “crioulos pretos”, oriundos de uma práxis escravista que é conduzida do Império para a República e, por isso, não permitiu a construção da cidadania para os ex-escravos. Os pretos são: “adj. Da cor do ébano; negro, s.m. indivíduo da raça negra; a cor negra” . São muito mais ligados aos componentes africanos enquanto que os crioulos são “os filhos de escravos; pretos nascidos na senzala; mestiços, mulatos” . Crioulo, que é derivado da palavra “crea”, como era escrita no Império à palavra “cria”, tratava-se de “pessoas criadas na terra”, ou seja, a pergunta que todos fazem é: Mas crioulo já não é preto?, não há no seu título um pleonasmo?, em absoluto, todos nós somos crioulos, gostemos ou não, pois somos cria dessa terra, mas nosso objeto de pesquisa se limita aos crioulos pretos, que são aqueles que de certa forma foram banidos para as sarjetas de nossa civilização. O problema era, então, de origem, como nos mostra brilhantemente Hebe Maria de Mattos:

[...] Por outro lado, como a historiografia já tem assinalado, os significantes ‘crioulo’ e ‘preto’ mostraram-se claramente reservados aos escravos e forros recentes. A designação ‘crioulo’ era exclusiva de escravos e forros nascidos no Brasil e o significante ‘preto’, até a primeira metade do século, era referido preferencialmente aos africanos. A designação de ‘negro’ era mais rara e, sem dúvida, guardava um componente racial, quando aparecia nos censos de época, qualificando a população livre .

Ao analisar a condição social dos “crioulos pretos” no final do Império e início da República, identificando as formas desenvolvidas por esses grupos para sobreviver em mundo que os rejeitava, percebemos que eles existiam em caráter de exclusão, pois, suas práticas eram incongruentes com o arquétipo de sociedade no limiar da República, como observa o Professor Eduardo Marques: “marginal é todo aquele que desobedece às normas de uma sociedade pela qual termina sendo abandonado, pois não se enquadra nas regras determinadas pelo grupo hegemônico” . Entendemos por marginalidade as formas “extralegais” de existência, devido à dificuldade de ingressar na vida produtiva e social assimilando formas culturais laterais, extensivas à moradia, ao trabalho e ao convívio com a lei.

Por tudo isso, não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e – também – um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais.

Buscamos no imaginário social, os construtos que permitiam a sobrevivência de práticas de segregação, que reafirmavam e delimitavam enfaticamente o campo existencial tanto da elite, quanto o da “arraia miúda”, uma disputa por espaços, ou uma territorialidade que permearia a transição do Império para a República, onde os atores de um espetáculo de riquezas e misérias, de progressos e de perenidades, pois, enquanto uns sonhavam com as conquistas republicanas vindouras, outros celebravam sua desesperança e imobilismo. Para os desclassificados da ordem imperial, principalmente para os “crioulos pretos” o tempo parecia não passar, viviam num ciclo vicioso onde reinava o monólogo e a surdez. Império ou República, não fazia diferença, que novidades trouxeram para os que se aglutinavam àqueles egressos de séculos de “chicote e pelourinho” ?

Acreditamos que essa práxis social urbana, no limiar de um novo modelo político, econômico e social, portava-se anacronicamente, como anomalias sistêmicas teimosamente reafirmadas. Mesmo diante de uma incompatibilidade legal, ou de um contra-senso axiomático, percebemos formas patentes e por vezes tácitas nas quais práticas coloniais coexistiam em um sistema republicano, em uma República à brasileira. Assim sendo, cremos que essa relutância das classes dirigentes em ceder às mudanças das relações de produção, bem como a relações sociais e políticas e à alheação das classes subordinadas, egressas do sistema escravista, respondem pelas raízes desse nosso mal crônico, perene nesses nossos mais de quinhentos anos. Logo, as razões de nossa desigualdade imanente não podem ser vistas apenas como reflexo da opressão dos dominadores, mas também da incapacidade dos dominados em resistir e exigir que se faça valer a República. Como bem diria Rousseau:

Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou.

Procederemos com a verificação dos erros ou desvios impetrados contra a própria concepção de República, uma deturpação aos princípios hermenêuticos e exegéticos de tudo aquilo que ela deveria significar , uma República erigida à revelia do povo ou bem próximo disto, como podemos verificar:

Sendo função social antes que direito, o voto era concedido àqueles a quem a sociedade julgava poder confiar sua preservação. No Império como na República, foram excluídos os pobres (seja pela renda, seja pela exigência da alfabetização), os mendigos, as mulheres, os menores de idade, as praças de pré, os membros de ordens religiosas. Ficava fora da sociedade política a grande maioria da população. [...] A exclusão de 80% da população do direito político já é um indicador do pouco que significou o novo regime em termos de ampliação da participação.

Portanto, muito mais ininteligível para ele, ex-escravo que, por conseguinte, geraria a incredulidade e o distanciamento do Estado, inviabilizando a transubstanciação de súditos do Império para cidadãos da República, compelindo os “crioulos pretos” a sobreviverem por vias subterrâneas, conferindo novos sentidos para a liberdade recém chegada .

Por isso mesmo José Murilo de Carvalho faz alusão à obra de Aluízio Azevedo, O Cortiço, que apresenta as extensões ínfimas, pueris, do ideário republicano como sendo a “República do cortiço” . Exprime o citado autor o circunscrito sentido de República que não ultrapassava os muros desse espaço sociocultural e demarcava bem até onde ia a identidade coletiva tão carente do Brasil republicano. São essas práticas que pretendemos observar.

O Estado em toda a sua prepotência preferiu dissolver esses nódulos sociais sem antes procurar integrá-los numa República maior. Essa atitude perpetuou o estrangeirismo, impedindo que o povo se perceba como um todo, tornando-o apenas espectador de um país feito por estrangeiros.

“[...] o povo que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistia tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar”.

Através de um mapeamento da formação da nação brasileira percebe-se, ao longo de nossa história, um Estado inventando uma nação e não o contrário. Até então essas instituições se perfizeram de maneira estranha, anômala, tornando-se organismos mal formados, com deformidades congênitas. A práxis de segregação política e social legais, “legítimas” na fase da Colônia e no Império, fez com que as desclassificações, com a aurora republicana, passassem a assumir formas inorgânicas que permeavam o imaginário e que são sonoras até hoje em nossa realidade sociocultural, criando flutuações sócio-sistêmicas.

[...] Por outro lado, como a historiografia já tem assinalado, os significantes ‘crioulo’ e ‘preto’ mostraram-se claramente reservados aos escravos e forros recentes. A designação ‘crioulo’ era exclusiva de escravos e forros nascidos no Brasil e o significante ‘preto’, até a primeira metade do século, era referido preferencialmente aos africanos. A designação de ‘negro’ era mais rara e, sem dúvida, guardava um componente racial, quando aparecia nos censos de época, qualificando a população livre.

Os significados apreendidos ou desferidos pelas elites brancas aos “crioulos pretos” após a abolição, principalmente em se tratando do limiar de uma República, cujos efeitos débeis em relação à mudança de mentalidade poderia ser sentida inequivocamente no tratamento análogo que os ‘crioulos’ recebiam tanto no Império quanto na República, sua liberdade era circunscrita, consubstanciada apenas em caráter jurídico, pois dentro da idiossincrasia social recebiam um olhar vertical, os diálogos eram patentemente hierarquizados sendo o branco o tom de pele ‘superior’ e portanto aquele que ditava quem era e quem não era aceito em seu arranjo social.

Devido a isso percebemos um estado de estagnação social no cotidiano desse contingente subalterno, preferencialmente se tratando dos “crioulos pretos”, oriundos de uma práxis escravista que é conduzida do Império para a República e, por isso, não permitiu a construção da cidadania plena para os ex-escravos. O uso das expressões “pretos ou crioulos” e os significados dessas denominações passariam por mudanças semânticas que indubitavelmente revelariam os preconceitos, as resistências de uma sociedade escravista a uma sociedade democrática, capitalista, republicana e, por assim dizer, igualitária.

Logo, uma vez dissolvido o estigma jurídico, legal, formal, institucionalizado, forjou-se um novo estigma, que na verdade nem era novo, apenas ganhou mais importância devido ser o mais eficaz e por não infringir contundentemente as leis, apenas feria-se de maneira inorgânica, ou seja, a palavras ganham novos significados à medida que a sociedade atribui a elas suas novas representações, suas idiossincrasias metamorfoseadas por sua resistência em aceitar mudanças no arranjo psicossocial. É o que procuraremos mais a frente decifrar, pois, se em um dado momento à forma pela qual o branco se dirige aos negros durante o período escravista a palavra era “o escravo”, mais tarde já abolida a escravidão a elite branca opta pelos termos “preto/preta”, “crioulinho/crioulinha”, “pessoa de cor”, “preta velha/preto velho”, “negrinho/negrinha”.

Enfim, inúmeras são as modalidades verbalizadas que a sociedade erigiu para de uma forma inequívoca circunscrever o campo existencial dos negros, reafirmando e cerceando possíveis reajustes, fórmulas engendradas por uma territorialidade não mais pautada na lei, mas, que de maneira contumaz precisava demarcar os espaços de cada um, muros invisíveis que dividiam e/ou separavam os negros da gente de “sangue branco”.

[...] vários outros exemplos dos chamados “fósseis lingüísticos” poderiam ser mencionados. Daí poder afirmar-se que a língua tende a ser um dos característicos mais ricos em qualidades de permanência, havendo geralmente num povo grande relutância e lentidão em abandoná-la”.

Somos levados a inferir que cada sociedade escolhe, delibera, decide aqueles que podem conviver em seu seio, da mesma forma que determina que tratamento reserva àqueles que ela considera impróprios para o convívio, encontrando para tanto um substrato para essa exclusão, seja pela fé, pela ciência, ou pela lei. Inesgotáveis são as maneiras que ela utiliza para chancelar sua seleção, logo, o racismo emerge à medida que finda a escravidão, até porque antes da abolição o negro era tratado e legitimado como coisa, como posse, ao menos para a elite branca, sendo inverossímil uma comparação, acreditando cegamente naquilo que prefere a sociedade justifica-se por seus atos.

Assistimos as sociedades ao longo da História reinventando sua maneira de coabitar nesse mundo, os que antes eram inimigos, amanhã transformam-se em aliados, enfim, a humanidade carece ainda de auto conhecimento, seus mais subterrâneos sentimentos lhes são engendrados a partir de pressupostos forjados pelo tempo histórico, cujos imperativos são rebeldes a simplificações.

Tomamos a liberdade de separar alguns trechos das primeiras páginas dos jornais do período em questão que retratam a atmosfera ideológica de maio de 1888, onde uma abolição proclamada, alardeada por autoridades e populares, representaria a plena erradicação do trabalho servil, bem como das mutilações sociais resultantes dele, crendo ingenuamente outrossim, em uma igualdade que doravante faria parte de nossa pátria.

"Lei 3.353 de 13 de Maio de 1888 Declara Extinta A Escravidão no Brasil".

"Continuavam ontem com extraordinária animação os festejos populares. Ondas de povo percorriam a rua do Ouvidor e outras ruas e praças, em todas as direções, manifestando por explosões do mais vivo contentamento o seu entusiasmo pela promulgação da gloriosa lei que, extingüindo o elemento servil, assinalou o começo de uma nova era de grandeza, de paz e de prosperidade para o império brasileiro. (...) Em cada frase pronunciada acerca do faustoso acontecimento traduzia-se o mais alto sentimento patriótico, e parecia que vinham ela do coração, reverberações de luz.

Hoje como que nos sentimos em uma pátria nova, respirando um ambiente mais puro, lobrigando mais vastos horizontes. O futuro além se nos mostra risonho e como que nos acena para um abraço de grandezas. [...] Nós caminhávamos para a luz, através de uma sombra enorme e densa, projetada por essa assombrosa barreira colocada em meio da estrada que trilhávamos - a escravidão. Para que sobre nós se projetasse um pouco dessa luz interna, que se derrama pelas nações cultas, era preciso que essa barreira caísse. Devia ter sido assim tão grande, tão santa, tão bela, a alegria do povo hebreu quando para além das margens do Jordão, perdida nas névoas do caminho à terra do martírio, ele pôde dizer ao descansar da fuga:

- Enfim, estamos livres, e no seio de Abraham!

Tanto podem hoje dizer os ex-escravos do Brasil, que longe do cativeiro, encontram-se finalmente no seio de irmãos. Grande e santo dia esse em que se fez a liberdade da nossa pátria!

"Está extinta a escravidão no Brasil. Desde ontem, 13 de maio de 1888, entramos para a comunhão dos povos livres. Está apagada a nódoa da nossa pátria. Já não fazemos exceção no mundo. [...] Por uma série de circunstâncias felizes fizemos em uma semana uma lei que em outros países levaria nos. Fizemos sem demora e sem uma gota de sangue. [...] É inútil dizer que no rosto de toda gente transparecia a alegria franca, a boa alegria com que o patriota dá mais um passo para o progresso da sua pátria. Fora como dentro o povo agitava-se irrequieto, em ondas movediças, à espera do momento em que se declarasse que apenas faltava a assinatura da princesa regente para que o escravo tivesse desaparecido do Brasil. GRIFOS NOSSOS .

Logo, creditou-se à abolição o peso de ser uma panacéia para todos os males engendrados por quase quatro séculos em que a diferença foi diuturnamente reafirmada, chancelada pela lei dos homens e até de “Deus”, onde os corpos recebiam as marcas, as insígnias de propriedade até então inalienável. Os ‘pretos’ enquanto seres humanos receberam da civilização a recusa de uma participação igualitária, considerados anomalias apenas suportáveis dentro da esfera servil, como antinomia a eminência branca.

O corpo pregado ao pelourinho servia também à justiça, e de desculpa a todos os que desejavam humilhar o próximo, obter algum favor ou atestado de bom comportamento. O corpo mutilado, exposto em praça pública visava suscitar a piedade, mas também servia de apelo à caridade. É necessário lembrar que freqüentemente o ‘corpo ferido’, diferente demais, servia para divertir (os anões da corte de Pedro, o Grande). Não esqueçamos também os negros mutilados, os eunucos negros do serralho, que, como espelhos da feiúra, não só guardavam as mulheres do harém, mas, devido ao físico repugnante, exaltavam até o limite a imagem sublime, inigualável do sultão ou do grão-mongol.

Apesar das utopias remetidas pelos entusiastas do processo de abolição, sabemos que até hoje nos pesa e até nos sufoca a questão mal resolvida de nosso passado crioulo preto, nos assustamos quando nos noticiam a previsão de que até 2010 vinte e cinco por cento da população brasileira, cerca de 55 milhões de pessoas viverão em favelas, ou seja, ¼ do país estarão confinados nesse espaço destinado aos desclassificados dessa grande corrida capitalista pela sobrevivência , evidenciando a miopia política que nos tem impedido de caminhar rumo a um país mais justo.

A pós-escravidão trouxe a baila uma outra modalidade de praxe social urbana no Rio de Janeiro, onde o abandono e o desprezo pelos os ex-escravos e um grande número de imigrantes inviabilizava a inserção destes no mercado de trabalho capitalista e, concomitantemente privava-os dos meios legais para a consubstanciação da condição de cidadãos da República que de forma pleonástica era apregoado pelos seus ideólogos.

Extinta juridicamente a escravidão, precisava-se substituí-la pelo abandono, pelo desprezo e, principalmente pela desconfiança mútua, fomentando um alheamento do negro, uma espécie de separatio impetrado pela elite branca e consentida pelos negros, o que de uma maneira inexorável traria um enorme atraso sociocultural para o ex-escravo, compelindo-o a desenvolver praxes excêntricas, em dissonância com a cultura oficial.

O fazendeiro via o trabalhador através das lentes da ideologia de explorador. Não confiava nos negros enquanto homens livres, sem perceber, justamente pela deformação ideológica escravocrata, que os negros tampouco nenhuma confiança podiam ter naqueles que os exploraram impiedosamente como escravos. Para eles, liberdade também significava, se possível, livrar-se da fazenda.

O olhar “branco” sobre o “crioulo preto” após a abolição, é um olhar pejorativo, eminentemente racista, cujos substratos racionais foram construídos pela necessidade de legitimar a inferioridade do negro para além dos princípios hermenêuticos da lei, de uma lei que antes dizia categoricamente que aquele ser era sua propriedade e, agora ele é igual, mesmo de forma quase inaudível. Ou seja, era preciso reinventar a diferença, não importando se pelo insulto, pelo deboche, ou pelo desdenho.

Lilia M. Schwarcz situa o surgimento do racismo no Brasil no final do século XIX, associado a própria campanha abolicionista, conforme alegam Thomas Skidmore e outros autores. Enquanto houve escravidão, a própria condição legal do escravo oferecia justificativa suficiente e dispensaria argumentos racistas. Uma vez libertados e colocados em igualdade de condições legais com os brancos, a discriminação dos negros teria de apelar às doutrinas racistas. GRIFO NOSSO

A escravidão pôs ao negro um “estado de anomia” e impediu que adquirissem hábitos e qualificação de trabalho, ajustados às necessidades competitivas da ordem capistalista – escreveram Florestan Fernandes, Octavio Ianni e José de Souza Martins. Celso Furtado se excedeu nessa linha de raciocínio e falou em “retardamento mental” dos ex-escravos [...] Furtado confundiu retardamento mental com atraso cultural.

Irrevogavelmente os negros ou “crioulos pretos” como preferimos denominá-los aqui, até porque tratamos de nossa “cria”, pois, foram gerados em solo pátrio, não tratamos do negro africano genuíno já há muito tempo desfigurado, solapado pelo transplante implacável, impiedoso, que não dissolveu totalmente a cultura africana, mas, a sincretizou o que por si só desfaz a ‘pureza’ de qualquer sistema cultural. Dizemos “crioulos pretos” porque existem os “crioulos brancos” que iludidos por suas invenções semânticas se auto classificam como apenas brancos.

A relação litigiosa travada entre brancos e negros pós-escravidão, inviabilizaria a ascensão desses ex-escravos como falamos a pouco, uma assimetria sistêmica entre a praxe social do negro com as necessidades do mercado capitalista.

O liberto viu-se, inesperadamente, "proprietário de si mesmo" .Passou de propriedade a proprietário numa ordem social diversa da originária, tendo que comandar seus destinos em busca de uma vida cidadã. O novo quadro ao qual se inseria, ao tornar-se liberto, exigia-lhe responsabilidades diferentes e novas.

Nessa condição, ele seria responsável por si e seus dependentes. Contudo, sem recursos materiais, e principalmente morais para lidar com quadros de uma sociedade que mudava vagarosa sua trajetória para um perfil econômico de competição [...]. grifo nosso

"Essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho escravo imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel" . A liberdade foi conferida ao ex-escravo sem qualquer planejamento quanto ao futuro desse ser, que por toda vida viveu em cativeiro, desmuniciado dos aparatos necessários à sobrevivência em um mundo extremamente complexo em cuja lógica competitiva não abarcava nem mesmos todos os brancos, principalmente aos brancos imigrantes que se amalgamavam às trincheiras de excluídos do Rio de Janeiro.

Ao negro, ou “crioulo preto” restava-lhe as ocupações residuais como diria Florestan Fernandes, pois, nossa pesquisa apoiada em jornais de época analisando com maior atenção os classificados de empregos, concomitantemente sobre critérios exigidos para a ocupação desses postos de trabalhos, mapeando, analisando anverso e avesso desses diálogos impregnados de racismos, reverberando ranços e ressentimentos para com os negros, pretensos iguais.

Dentre as várias ocupações delimitadas e deliberadamente reservadas aos negros citaremos as mais oferecidas, tais como: “carregador de caixas”, “cozinheiro”, “copeiro”, “caixeiro”, “costureiras”, “vendedores de bala”, “carregador de pão”, “lavadeira”, “mucama”, “saieiras”, “carregador de cestos”, “tiradores de goiabas”, “ajudante de alfaiate”, “charuteiro”, “official barbeiro”, “padeiro”, “forneiro”, “carpinteiro”, “ama seca”, “ama de leite”, “ajudante de cozinha”, lavador de pratos”e aparecendo de maneira esmagadora a função de “criada”. Vale ainda ressaltar que mesmo após a consumação da abolição ainda muito mais tarde permanecem a referência a cor sendo aquilo que chancela, tutela, credencia a ocupação desses postos e, nesses casos em que citamos acima onde as funções são as menos remuneradas e portanto as que exigem menos qualificação, por assim dizer, ou seja, são funções residuais, “inferiores” dentro da hierarquia ocupacional capitalista, como o são até hoje, é o caso da criada, nossa empregada doméstica, classe com os menores níveis salariais e que menos dispõe das garantias legais do trabalhador. Transcreveremos alguns textos desses jornais a fim de contextualizar nossas inferências.

“Precisa-se de uma criada de cor preta: rua Visconde de Sapucahy n. 169ª”; “Precisa-se de uma criada de cor preta, que cozinhe e lave; na rua Guarda velho n. 30.”; “precisa-se de uma negrinha para arranjos de casa e lidar com crianças, paga-se 15$; no Centro Ouvidor n. 20, 1ª andar.” . “precisa-se de uma preta de meia idade que saiba cozinhar, na rua da Ajuda n. 27, 1ºandar”; “Precisa-se de uma preta velha para cozinhar e lavar, que durma na casa; na rua general Polydoro n. 24.”; precisa-se de uma rapariga preta para ama seca; na rua Senador Eusébio n. 9, sobrado.” ; “Precisa-se de uma preto quitandeiro, que seja fiel e sem vícios, na rua Haddock Lobo n. 18F.”; “Precisa-se de uma crioulinha de 12 a 13 anos para andar com crianças de anno emeio; rua da Passagem n. 67, Botafogo.” “Precisa-se de uma senhora de idade ou de uma preta velha para serviços leves; na rua da rua da Ajuda nº 187, 2ºandar.”

Essas foram algumas demonstrações da atmosfera racial amalgamada aos requisitos impostos àqueles que desejam desempenhar as ocupações disponíveis aos negros, pretos, negrinhos, pretos velhos etc., enfim o estigma escravocrata insiste em sua vigência anacrônica, como nesse exemplo: “Precisa-se de uma senhora de idade ou de uma preta velha para serviços leves; na rua da rua da Ajuda nº 187, 2ºandar”. Notem que o empregador aqui estabelece claramente a dicotomia entre branco e preto, diferenciando de forma inequívoca que uma preta velha não é uma senhora de idade, ou seja, a preta velha seria algo menor, não poderia sequer ser chamada de senhora.

[...]"...com os antigos libertos, e ex-escravos ocorria que tinha de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semi-ocupados da economia de subsistência do lugar ou de outra região".[...] “Eliminados para setores residuais daquele sistema, o negro ficou à margem do processo, retirando dela proveitos personalizados, secundários e ocasionais [...]”.

As modestas modalidades oferecidas ao negro não permita a ele reverter seu quadro de exclusão, de anomia social, pois suas alocações eram análogas ao período escravista, o que insistia em internalizar na idiossincrasia social o gênero subjacente do negro, como podemos ver nas figuras 1 e 2 de nosso anexo. Aqueles ex-escravos que não se sujeitavam a essa imposição discriminatória do mercado, eram compelidos a forjar maneiras não convencionais de subsistência, devido a isso eram severamente punidos e estereotipados como vagabundos, vadios, enfim, “corpo maldito” e, portanto deviam ser “confinados longe do mundo” . “Enfim toda marginalidade será necessariamente considerada vil, rejeitada ao nível mais baixo da hierarquia de valores pelos que a determinam?”.

O liberto defrontou-se com a competição do imigrante europeu, que não temia a degradação pelo confronto com o negro e absorveu, assim as melhores oportunidades de trabalho livre e independente (mesmo as mais modestas, como a de engraxar sapatos, vender jornais e verduras, transportar peixe ou outras utilidades, explorar o comercio de quinquilharias, etc.). [...] eliminado para setores residuais daquele sistema, o negro ficou à margem do processo, retirando dele proveitos personalizados, secundários e ocasionais[...]. Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo. GRIFO NOSSO

Logo, os “crioulos pretos” se aglomeravam nos cortiços em toda a sua insalubridade e ali constituíam seus laços sociais e celebravam seu imobilismo e fracasso, tendo alívio em muitos casos na aguardente, proporcionando “episódios deprimentes” e “espetáculos chocantes” , bebendo para talvez esquecer, infelizmente agravava a sua já tão difícil situação, confluindo para intensificação do estereótipo negativo em relação às “pessoas de cor”.

Assim, o “crioulo preto” convivia com seus grilhões inorgânicos, intrínsecos a praxe social urbana no Rio de Janeiro, era de maneira contumaz relembrado quanto a sua “insignificância”, seu passado escravo era, por assim dizer, reprisado diante dos seus olhos todo tempo, a cor de sua pele impedia-no de vislumbrar um presente e um futuro menos obscuro, logo, sua liberdade, sua condição jurídica igual, pouco importava diante de um mundo capitalista cujas roseiras assentavam-se sobre os estercos de um escravismo duradouro, que teimava em vociferar e calar os suspiros de justiça que há séculos vinham sendo suprimidos no peito de cada homem e mulher de “cor”

Reaprender a viver com certeza não seria fácil e não o foi, tanto que temos amostras inequívocas do malogro de grande parte dos “crioulos pretos”, que ainda hoje vêem a distância uma realidade mais justa e, portanto, mais humana. Estabeleceram uma República e concomitantemente a isonomia, ou seja, tornaram os desiguais em iguais, de uma noite para o dia, em meio a discursos eloqüentes, impregnados de sentimentalidades, fechando entretanto, os olhos para as raízes do problema, condenando doravante os ex-cativos a uma existência no mínimo esdrúxula. Como diria Jean-Claude Schmith: “Portanto, existe em todas as épocas uma linha divisória, que decide seja a integração, seja a exclusão dos marginais, e onde se estabelece o critério de “utilidade” social [...]”.

Os escravos teriam de aprender que o trabalho livre significava “medo da fome” em vez de “medo de chicote”; era isso que arquitetos da emancipação queriam dizer com “transição das dificuldades brutais para as racionais.

Por ironia ou não, é comumente tema de pesquisa a questão do negro, sua dor, sua situação malograda, enfim, não há abordagens tão apaixonadas sobre o branco, esse se porta na história, principalmente na História dos marginais como antagonista, como numa espécie de teoria da conspiração, o opressor, o mal corporificado, como a raça auto-eleita, acostumamo-nos a ver o negro e/ou “crioulo preto” pela via da piedade, o vemos em toda a sua languidez, o que nos ajuda a esconder o caráter sádico, ou qualquer outro nome que seja capaz de definir as flutuações simbiônicas intrínsecas às práticas sociais, impregnada nas leis de nossa sociedade que infelizmente se assemelha a um sistema de esgoto.

Onde os vasos sanitários são postos em um local bem distante do reservatório e ali são armazenados os dejetos, os excrementos, o odor insuportável, as impurezas, enfim, tudo aquilo que abominamos e, portanto queremos longe de nós, como por exemplo as pessoas direcionadas ás favelas, aos presídios, ou qualquer outro espaço geográfico devidamente projetado e deliberadamente arranjado para “preservar a ordem e o bem estar”, só que esses dejetos não são biodegradáveis como muitos gostariam, ao contrário vão se acumulando a ponto de todos esses resíduos retornarem pelos canos chegando aos sanitários e banheiros revestidos de granito impregnados aromatizantes e desinfetantes.

A sociedade hoje se vê diante de sua própria criação, seu Frankenstein e se assusta com ele, tememos aquilo que é engendrado por nós mesmos, estamos surpresos diante do barbarismo que fere nossos corpos, saqueiam nossos lares, infernizam nossas cidades. Longe de nós imprimir aqui uma linguagem eufêmica visando mascarar uma lógica vil que permeia discretamente o apartheid, ou o separatio à brasileira, chancelado pelos mais eminentes substratos ideológicos e políticos e até científicos, perpetuando-nos mesmo após quase cento e vinte anos, como um país mal resolvido, ou melhor, como uma nação mal resolvida.

No Brasil, os libertos na foram dadas nem esmolas, nem terras, nem emprego. Passada a euforia da libertação, muitos ex-escravos regressavam a suas fazendas, ou a fazendas vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salário. Dezenas de anos após a abolição, os descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de seus antepassados escravos. Outros dirigiam às cidades, como o Rio de Janeiro, onde foram engrossar a grande parcela da população sem emprego fixo. [...] Lá, os ex-escravos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos e mais mal pagos.[...] As conseqüências disso foram duradouras para a população negra. Até hoje essa população ocupa posição inferior em todos os indicadores de qualidade de vida. É a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados, os menores salários, os piores índices de ascensão social. [...] A população negra teve de enfrentar sozinha o desafio da ascensão social, e freqüentemente precisou fazê-lo por rotas originais, como o esporte, a música e a dança. [...] A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos. GRIFO NOSSO

As afirmações de José Murilo de Carvalho acima mencionadas corroboradas pelas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Quadros nº 01 e 02. Os “crioulos pretos” foram irrevogavelmente relegados, alijados, e a fórceps confinados nos cortiços, favelas e guetos e porque não dizer “fossas sociais”, perdoe o termo hiperbólico.

Por nossa hábil capacidade de nos enganar, a miopia sistêmica que anuvia nossa sordidez em conviver com o diferente. Por isso rotulamos e convencionamos o que é e o que não é aceitável. A hipocrisia social e sua capilaridade excludente não reserva lugares para todos, logo, aqueles que não possuem os apanágios imprescindíveis para fazer parte dos “eleitos”, recebem o mesmo tratamento dispensado aos nossos excrementos, são diluídos e dirigidos aos mais subterrâneos sumidouros a fim de não incomodarem.

Trata-se de um jogo sádico, covarde, principalmente quando não somos capazes ainda, felizmente, de exterminar, erradicar, de uma vez por todas esses “resíduos” ou “criaturas residuais”, somos demasiadamente hipócritas para isso, somos “humanistas”, “filantropos”, “humanos”, para simplesmente deixar cair uma bomba atômica em nossas favelas, única solução aparente para esse nosso caos, para essa nossa chaga social que até o momento nos encontramos desenganados.

Mas nos incomoda tratar desses assuntos, porque são nossos tabus, nossos silêncios, assim como Maria Luiza Tucci Carneiro brilhantemente nos conceitua no prefácio da obra Os tabus da História de Marc Ferro:

“Quebrar tabus” exige ousadia para dizer o não dito; da mesma forma como requer prudência e coragem para mostrar a verdade a o olho desarmado. E tudo que é ousado, por si só, está fora de lugar, pois implica desacato e atrevimento. Atrevimento para expor aquilo que, por uma questão moral, jurídica ou política, não deveria ser dito. Daí a quebra de tabus revelar silêncios propositais da História que, por si só, também são história. E a nossa História – por descuidos de alguns ou negligencia de muitos – se faz lapidada por tabus, caracterizando uma certa inércia por parte dos historiadores. Não está em questão advogar a favor dos excluídos, e sim questionar os conformismos inerentes a todas as sociedades. Grifo nosso.

Logo, estamos em busca desses silêncios, interditos, desses monólogos que se fazem passar por diálogos, obviamente com as devidas precauções e com a devida modéstia nesse incipiente ensaio, que tem por fulcro o compromisso com princípios da investigação e alteridade historiográfica, sem entretanto, perder de vista o desejo indelével de contribuir mesmo que de forma infinitesimal, mas ainda assim contribuir para a história dos marginais e, mais precisamente para depurar o olhar lançado sobre o “crioulo preto” nosso objeto de estudo.

“A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática” . Por isso sofremos de um patriotismo letárgico, uma vez nos debruçando sobre os resquícios psicossociais da pós-escravidão, pois quando consumada a abolição em 13 maio de 1888, onde uma igualdade proclamada fora emudecida pelo imobilismo conservador, que engessou as articulações da transformação, entregando o ex-escravo a desesperança, bem parecido ao caso de uma mãe que abandona seu filho recém nascido em uma lata de lixo, ou seja, as chances desse bebê sobreviver são mínimas, no caso do negro não é muito diferente, ele até sobreviveu, mas com inanição e carece ainda hoje de uma pseudo caridade, de favores impregnados de uma piedade contraproducente, uma vez que perpetua a imagem do negro na idiossincrasia social como sendo inferior, débil e pueril, até porque “liberdade sem oportunidades é um presente diabólico, e a negação dessas oportunidades, um crime”.

Notas:

Spencer alegava ser evolucionário o desenvolvimento de todas as espécies, inclusive do caráter humano e das instituições sociais, em conformidade com o princípio da sobrevivência do mais apto (expressão cunhada por ele). A idéia de Spencer era que somente com a sobrevivência dos melhores a sociedade atingiria a perfeição. SCHULTZ, Duane P.. História da psicologia moderna.(tradução de Suely Sonoe Murai Cuccio). São Paulo: Thomson, 2005, p. 153.

SILVA, Eduardo M. Sociedade paralela: a ordem do diferente. In: Revista Archetypon, Rio de Janeiro: UCAM, 1996, passim.

CATZ. Helena. In: NOVAES, Adauto. O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, passim.

FORRESTER, Viviane. O horror econômico. (Trad. Álvaro Lorencini). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, passim.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: Rio de janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia da Letras, 1987, p. 40.

FORRESTER, Viviane, Op. Cit., Passim.

. Ibid., passim.

BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: FAE, 1986, p. 904.

Ibid., p. 312.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p 30.

SILVA, Eduardo M. Op. cit., p.40, passim .

SOTTO, Hernando de. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2003, passim.

DAMATTA, Roberto. Op cit., p. 103

SILVA, Eduardo M. Op. cit., p. 25.

ROUSSEAU, Jean-jacques. Os Pensadores. (tradução de Lourdes Santos Machado). São Paulo: Abril Cultural, 1973., p. 55.

CARVALHO, op. cit., p. 44-85.

Idem, ibidem, p. 39.

Idem, ibidem, p. 9.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p 30.

O “preto” aparecia na cena social como substituto e o equivalente humano do “escravo”, do “liberto”, do “cria da casa”, devendo, portanto, ser encarado e tratado como tal [...] A cor servia como ferrete, que identificava o “preto” e, atrás dele, aquela parte da “gentinha” procedente do eito e da senzala – ou seja, da subordinação infamante e sem limites do estado servil. Dentro desse contexto psicossocial e cultural, o “escravo” e o “liberto” não desapareceram: subsistiam no “preto” como categoria a um tempo racial e social [...] O termo “preto” permitia selecionar a cor como marca racial para distinguir, a um tempo, um estoque racial e uma categoria social em situação societária ambígua, para não dizer francamente marginal [...] Desse ângulo, a conversão do “escravo” e do “liberto” no “preto” respondeu à necessidade social de limitar-se a democratização dos direitos e garantias sociais universais do cidadão na esfera racial. Portanto, não foi à imagem negativa e restritiva do “preto” que criou a discriminação e os preconceitos raciais. Porém, o inverso. A existência e persistência de ambos é que conduziram à formação de tal imagem, que iria servir como catalisador dos processos que impediriam a rápida absorção de “negro” pela estrutura da sociedade de classes em expansão. [...] a “cor” tornou-se, a um tempo, marca racial e símbolo indisfarçável de uma posição social. A intolerância diante do “preto” no contexto histórico-social que descrevemos, não visava os indivíduos por pertencerem à determinada raça. FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Ótica, 1978, p. 277- 280 - 316 - 319. . Ver também em MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2000, p.17. “Em muitas áreas e períodos, “preto” foi sinônimo de africano, e os índios escravizados eram chamados “negros da terra”. “Pardo” foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência européia de alguns deles, Mas ampliou sua significação quando se teve que dar conta de uma crescente população para a qual não mais era cabível a classificação de “preto” ou de “crioulo”, na medida em que estas tendiam a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo”. E ainda em BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: FAE, 1986, p. 904. Pretos são: “adj. Da cor do ébano; negro, s.m. indivíduo da raça negra; a cor negra”. crioulos são “os filhos de escravos; pretos nascidos na senzala; mestiços, mulatos”. Crioulo é derivado da palavra “crea”, como era escrita no Império a palavra “cria”, tratava-se de “pessoas criadas na terra”. Ibid., p. 312.

FREYRE, Gilberto. Problemas Brasileiros De Antropologia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 15.

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“De fato utopia é a negação de um presente medíocre e sufocante, é o espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso a perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo. [...]De qualquer maneira, a imaginação utópica é um produto da História que nega a História [...] A utopia é nostálgica, busca a harmonia edênica, é portanto um mito projetado no futuro.” FRANCO JUNIOR, H., As Utopias Medievais.São Paulo: brasiliense,1992, p. 12,13.

Jornal Nacional 16 de junho de 2006.

Tratamento dispensado aos leprosos na idade média que promovia sua separação do mundo por uma espécie de ritual litúrgico, onde a fé e a voz de “Deus” falava em consonância com os interesses e critérios de seleção daquilo que é e do que não é aceitável. SCHMITH, Jean-Claude – História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques – História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 368.

GORENDER , Jacob. A escravidão reabilitada. Rio de Janeiro: Ática, 1990, p. 193.

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FERNANDES, Florestan -- Op. Cit., passim.

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FERNANDES, Florestan -- Op. Cit. p. 17-29.

SCHMITH, Jean-Claude – História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques – História Nova.São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.375.

SCHMITH, Jean-Claude – História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques – História Nova.São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 367.

Id. Ibidem. p. 356.

FERNANDES, Florestan -- Op. Cit., p. 19-20.

Id. Ibidem. P. 166.

SCHMITH, Jean-Claude – História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques – História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 386.

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“Para sociedade dominante, os marginais se definem negativamente: não têm “domicilio fixo”, “moram em qualquer lugar”, “gente sem senhor”, “inúteis ao mundo””. SCHMITH, Jean-Claude – História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques – História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 378

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RICARDO CORRÊA PEIXOTO
Enviado por RICARDO CORRÊA PEIXOTO em 17/09/2007
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