UM BISPO REBELDE
Faz pouco tempo que perdemos um bispo católico romano, pastor leal e amigo dos pobres, sem terra, quilombolas, índios e demais povos desta porção da América Latina. Figura ímpar e desses que passam pela terra de tempos em tempos deixando marcas indeléveis.
Dom Pedro Casaldáliga foi um pastor que se preocupou com seu rebanho em todos os sentidos. As causas que afligiam o povo de sua prelazia, na região de São Felix do Araguaia, eram também as suas. Jamais negociou ou transigiu nesta defesa, seja como ativista dos direitos humanos ou como bispo de uma igreja em saída, nos passos do papa Francisco.
Oriundo da Catalunha, região no nordeste da Espanha, dom Pedro chegou ao Brasil em fins da década de 1960 para residir em meio a ribeirinhos e indígenas do Araguaia. Enfrentou toda má sorte de investidas dos grandes da região, latifundiários e grileiros que massacravam trabalhadores com punições que iam da morte até incisar a orelha de quem se insurgisse contra a ordem estabelecida.
Viveu uma vida de profetismo, anunciando e denunciando e na mais pura radicalidade do Evangelho, despindo-se de todo poder temporal ou espiritual. Em sua ordenação episcopal recusou-se a usar a mitra, um dos símbolos de poder do novo bispo, chapéu que é usado como parte dos paramentos litúrgicos. Usou, então, um chapéu de palha, comum no meio dos ribeirinhos da região.
Não teve báculo, cajado ornado e dourado, desses que muitos dos nossos pastores diocesanos usam por aí a guiarem um rebanho morto de fome e sede ante as políticas perversas de governos autoritários e às quais esses bispos não têm coragem de denunciar mediante seu profetismo, como fizeram os antigos profetas da Bíblia, a exemplo de Amós, Isaías, Jeremias e outros tantos.
Dom Pedro foi um bispo admirado fora da Igreja e perseguido, criticado e combatido dentro dela. Foi tachado como subversivo perigoso, comunista e ferrenho opositor do papa. Foi dito sobre ele que era tenazmente contra a Igreja e sua doutrina.
Não se assemelhou a tantos de seus irmãos no episcopado, mais preocupados com belas túnicas e casulas góticas ou romanas, alfaias caras, com cálices dourados e impregnados de joias raras e cruzes peitorais reluzentes a indicarem um poder que se torna efêmero e desnecessário quando não é colocado como serviço aos mais pobres da terra.
Homem de muita coragem enfrentou com destemor os generais da cruel ditadura militar em tempos do famigerado presidente do Brasil, Emílio Médici. E por suas posições frente ao regime de exceção encarou alguns processos de expulsão do País. A voz do papa Paulo VI em sua defesa lhe foi de grande valia nesses tempos sombrios da vida nacional.
Seu pastoreio foi fecundo, além de uma trincheira para os desesperançados. Assinou a Carta ao Povo de Deus, documento recente de parte do episcopado brasileiro, quando mais de 150 bispos de todo o Brasil firmaram o compromisso com a profecia denunciando o genocídio e o atentado que se pratica diariamente contra os pobres, por meio das políticas do atual Governo.
Dom Pedro foi um bispo compromissado com o Evangelho na vivência da sua mais profunda radicalidade. É de uma safra de bispos que está em extinção, a exemplo de Hélder Câmara, Antonio Fragoso, Tiago Postman, Luciano Mendes, Vicente Távora, Francisco Mesquita, Samuel Ruiz, Oscar Romero, dom Moura, entre outros.
Seu zelo o torna um pastor que vivenciou o seu sacerdócio na mais pura acepção da palavra, como tantos que o antecederam, padre Antonio Ibiapina, nosso padre-mestre e o patriarca do Nordeste, padre Cícero.
Seu corpo repousa às margens de um rio numa cova simples de um cemitério onde estão enterrados trabalhadores sem nome e mulheres esquecidas e vilipendiadas no machismo que nos afeta cotidianamente.
Volta ao pó no seio da Mãe terra de sua São Félix. Apesar de ausente, é um pastor que vive na memória coletiva do povo de sua prelazia, animando e resistindo na caminhada.
Pedro Casaldáliga Plá. Bispo dos pobres e desvalidos, defensor da reforma agrária, voz dos sem voz. Um Homem que, mesmo morto, ainda mete medo.