A representação ficcional dos personagens nas telenovelas brasileiras

A representação ficcional dos personagens nas telenovelas brasileiras·

Ulisflávio Oliveira Evangelista*

RESUMO

O presente artigo visa explanar o processo da narrativa ficcional televisiva, através da representação dos personagens na história e o caminho realizado por esses personagens, aplicando também está função, no desenvolvimento da trama principal (Plot) e tramas secundárias (Multiplots). De modo mais específico, é investigado a utilização da representação ficcional (personagens) como ferramenta essencial para o desenvolvimento e/ou sucesso da obra. O estudo é baseado em elementos retirados da ficção seriada nacional.

Palavras-chave: representação; personagens; ficção seriada.

1. INTRODUÇÃO

A televisão brasileira foi inaugurada oficialmente no dia 18 de setembro de 1950, pela TV Tupi, em São Paulo com a transmissão de um programa humorístico chamado Show na taba. De inicio, a programação televisiva (a exemplo de outros países) era desenvolvida sempre “ao vivo”, dando margem ao erro e ao nervosismo para quem a produzia e, possibilitava a satisfação da imagem em movimento a quem assistia. Assim nasceu a televisão, cheia de improvisos, com muita expectativa em sua programação e com a missão de informar e entreter os seus telespectadores. Dentro deste universo televisivo ainda muito novo e em constante desenvolvimento (a exemplo da implantação do sinal digital) a caixa onírica formadora de imagens vem conquistando cada vez mais apreciadores, através da sua linguagem técnica, informativa, artística e cultural.

Vale ressaltar também, o prestígio que o próprio aparelho “televisão”, enquanto um eletrodoméstico, exerce na população. Esse prestígio pode ser considerado como uma espécie de soberania em sua fala, prova disso é comprovada pela autora Ondina Fachel Leal ao ilustrar por meio de fotografias a presença do aparelho de televisão como um “ente querido” dentro do espaço doméstico. A televisão é um aparelho social decorado com portas retratos em sua superfície. Nesse estudo, a autora realiza um recorte restrito na recepção da mensagem pelos telespectadores. Leal considera dois grupos de receptores, classificados por meio de aspectos culturais e econômicos e por ela denominados como classes populares e classes dominantes. A investigação realizada pela autora consistiu em determinar recepções distintas pelas classes (populares e dominantes) através de uma mesma mensagem (telenovela Sol de Verão ).

No que se refere à programação televisiva, a produção direcionada ao entretenimento sempre teve espaço nesse meio. A possibilidade de fazer rir, chorar, vivenciar e imaginar situações do cotidiano por meio de uma linguagem coloquial instigava ao público. Esses foram, sem dúvida alguma, ingredientes fundamentais para a consolidação da ficção seriada no Brasil.

Seriados, mini-séries e as telenovelas fazem parte do universo da ficção seriada. Neste estudo, o recorte será dado às telenovelas. O produto telenovela é desenvolvido através da construção de um enredo, de modo que essas histórias ficcionais se confundam com as histórias vivenciadas por quem as assistem, gerando desta forma, uma identificação bastante profunda no telespectador com o desenrolar dos capítulos da trama.

Uma outra identificação também é feita. Desta vez, cabe ao ator ou atriz que dão vida ao personagem servir de referencial ao telespectador. Tudo é pensado para conseguir essa identificação. Pequenos detalhes ganham destaque, a vestimenta pode virar moda, um estilo musical que embala o par romântico na trama pode estourar nas rádios, seu linguajar é copiado, jargões conquistam espaço na sociedade. As peripécias vivenciadas pelos personagens são também vivenciadas por seu público, cada vez mais cativante, mais misterioso, angustiado para saber o desenrolar da história. A dúvida gerada pelas tramas ganha as ruas. Nessas conversas é possível perceber as diferentes opiniões na busca de uma única resposta: qual e como será o final dessa história?

Mas nem tudo é maravilha, algumas representações podem ser construídas de maneira ineficiente, inacabada, distorcida e errônea. Quando isso acontece, ao invés de cativar o público, o enredo ou personagens podem chatear, provocando insatisfação e até mesmo a desaprovação da obra. Isso em televisão é sinônimo de prejuízo, tanto pela diminuição ou extinção de anunciantes (que se apresenta como o meio principal na obtenção de recursos financeiros), como também, pelo prestígio na identificação feita entre emissora e público.

Esse é o verdadeiro mistério que abarca a ficção seriada, é necessário muito mais do que criar uma história em seqüências, com um final previsível (ou não), é necessário acima de tudo, agradar ao público, ao anunciante, desbancar a concorrência , enfim, ser um produto de sucesso.

2. ORIGEM DO PROCESSO TECNOLÓGICO DA TELEVISÃO

O termo televisão vem da fusão do grego tele (longe) e do latim video, vindere (ver). A invenção da televisão não foi um acontecimento isolado ou uma série única de acontecimentos. Ela é, muito pelo contrário, o resultado de um longo processo de pesquisas e descobertas, de novas experiências e acréscimos originais a conhecimentos adquiridos.

Ela é derivada de um conjunto de inovações e desenvolvimentos da eletricidade, telegrafia, fotografia, cinematografia, entre outros. Na longa pré-história”da televisão aparece em primeiro lugar e em destaque as pesquisas realizadas em torno da eletricidade, que entre os séculos XVIII e XIX transformaram-se de filosóficas para tecnológicas (pára-raios, geradores). Em segundo lugar, não se pode esquecer o desenvolvimento da telegrafia, que a explosão ferroviária da metade do século XIX faz com que se afaste dos sistemas primitivos de sinalização com bandeiras e sinaleiros rumo a adoção intensiva da invenção de Morse, para finalmente chegar, por volta de 1870, a um sistema de telegrafia elétrica, enquanto o telefone se desenvolvia como invenção nova e diferente.

Ligado à televisão, aparece outro fato digno de nota: o desenvolvimento da fotografia, que partiu da idéia da “escrita da luz”, passando pela solução técnica da impressão de imagens, conseguida inicialmente por Niepce (1816), até chegar à “explosão” da fotografia por volta da metade do século, favorecida pela época das grandes migrações (quem partia deseja deixar o testemunho da própria imagem com a família).

Enquanto isso a idéia da cinematografia também estava crescendo: se a lanterna mágica (projeção de placas) era conhecida desde o século XVIII, o simples movimento de uma placa sobre a outra foi conseguido em 1736, é por volta de 1825-26 que se assiste a um desenvolvimento dos aparelhos mecânicos cinematográficos, para finalmente chegar, mais ou menos no final do século, os trabalhos de Friese-Greene e dos irmãos Lumière a respeito das técnicas de filmagem e projeção, precursoras dos primeiros espetáculos cinematográficos públicos.

A idéia de televisão – transmissão de imagens a distância – conforme foi dito, estava implícita em muitas destas manifestações, e é realmente difícil separá-las, e antes ainda, é necessário falar do selênio (elemento químico de número atômico 34) e de sua propriedade fotoelétrica.

Em 1817, o sueco Jons Jakob Berzelius descobriu um novo elemento químico. A cor deste metal lembrava o brilho da Lua e, por isso, Berzelius denominou-o selênio, já que o satélite terrestre (Lua), em grego, chama-se “selene”. Bem mais tarde, em 1873, um simples operador telegráfico, M. May observou que o selênio apresentava uma propriedade incomum, jamais encontrada em qualquer outro material. Sua resistência à passagem da corrente elétrica se alterava em função da intensidade da luz que sobre ele incidisse. Descobriu-se então que, sua resistência à passagem elétrica aumenta quando colocado no escuro e quando iluminado sua resistência diminui, ou seja, sua resistência não é uma constante. A luz tem então, o poder de alterá-la, como conseqüência, por meio do selênio é possível transformar um sinal luminoso em um sinal elétrico. Pois bem. O que é uma imagem que vemos, senão o fruto da reflexão da luz? Mergulhando-se em uma sala de absoluta escuridão, nada pode ser visto por quem está lá dentro, abrindo-se uma janela (incidência de luz) ou ligando-se uma lâmpada por meio da energia elétrica, os objetos e as pessoas que nela se encontram passam a ser visíveis, certo. Por que? Simplesmente porque começam a refletir luz, e refletem-na com cor e brilho. O que se vê dentro da sala é, portanto, o resultado de um conjunto quase infinito de pontos, mais ou menos, luminosos; mais ou menos, refletores de luz.

Partindo deste princípio e aproveitando a propriedade fotoelétrica do selênio, o inglês G.R. Carey imaginou construir, na segunda metade do século XIX, um sistema de televisão. Em uma placa seria afixado grande número de elementos de selênio, cada qual ligado por um fio a uma lâmpada. Todas as lâmpadas, cuja quantidade deveria ser obviamente igual à dos elementos de selênio, seriam reunidas em uma outra placa e distribuídas na mesma ordem em que situavam os elementos de selênio na primeira placa. Qual a idéia? Colocando-se diante da primeira placa um desenho bastante iluminado, os seus pontos mais escuros, por refletirem pouca luz, sensibilizariam pouco as células de selênio situadas à sua frente, enquanto os mais claros, mais refletores de luz, sensibilizariam muito as células que lhe eram correspondentes. Os elementos de selênio converteriam, assim, os sinais luminosos em sinais elétricos mais intensos, ou menos intensos, de acordo com a quantidade de luz.

Esses sinais elétricos transmitidos pelos fios chegariam às lâmpadas, fazendo com que umas brilhassem mais, e outras, menos, ainda conforme a intensidade da luz. Desse modo, uma lâmpada correspondente a uma célula de selênio bastante iluminada acenderia fortemente; e a correspondente a uma mal iluminada, acenderia fracamente, ou mesmo nem ascenderia. O objetivo era reconstituir na segunda placa, por meio das lâmpadas, os sinais luminosos dos quais se compunha o desenho colocado diante da placa que continha as células de selênio. O resultado jamais poderia passar de um pobre borrão luminoso, pois, para dar melhor definição à imagem, seriam necessários centenas de milhares de circuitos selênio-lâmpada.

3. TELEVISÃO E SUA REPRESENTAÇÃO

Diante de nós temos a televisão e sua representação. A intenção é a de perceber essa representação através dos signos empregados, compreendendo sua linguagem e, finalmente, decifrando a mensagem . Umberto Eco destaca a mensagem televisional enquanto sistema de signos:

Como acontece com todos os sistemas de signos, os signos e suas correlações são encarados em relação ao remetente e a um receptor; fixados a um código que se supõe comum a ambos; inseridos num contexto comunicacional [...] um sistema de signos não é apenas um sistema de significantes mas também de significados (ECO, 2001, p. 366).

Eco alerta também que uma pesquisa sobre a mensagem TV, considerando-a como um sistema de signos, não visa unicamente enfocar aspectos formais dos processos de comunicação. Por trás de toda essa representação, a mensagem chega aos lares fortalecendo essa comunicação de massa. E a respeito da influência do crescimento dos veículos de comunicação de massa, Lúcia Santaella (1996, p. 31), destaca que a “multiplicação das mídias [televisão] tende a acelerar a dinâmica dos intercâmbios entre formas eruditas e populares, eruditas e de massa, populares e de massa, tradicionais e modernas”, favorecendo assim a transmissão da telenovela, que é um produto popular, ou seja, de massa.

O receptor enquanto público se dispõe no entendimento dessa informação. Porém, esse entendimento – enquanto processo – possui fatores que merecem destaques. Joan Ferrés aponta o caráter da mensagem televisiva através de comunicações despercebidas, enquanto signo, e nestas condições, o emocional (inconsciente) ganha força sobre o racional (consciente). “A televisão é o fenômeno social e cultural mais impressionante da história da humanidade. É o maior instrumento de socialização que jamais existiu” (FERRÉS, 1998, p. 15).

Nestas condições, a força da televisão enquanto meio se expande. O processo ora enxergado por uma interferência racional e consciente se altera. O foco está no inconsciente, na força emotiva, na sedução da mensagem imagética. A dualidade considerada (racional e emocional) atinge ao público que percebe o estímulo, porém responde apenas de modo racional (informação). Em contrapartida, os estímulos provocados de modo inconsciente e emocional não são percebidos (FERRÉS, 1998).

A televisão enquanto mass media utiliza-se de ferramentas na construção de sua linguagem. Para Décio Pignatari (s.d.:, p. 14) “as formas audiovisuais e suas articulações no espaço e no tempo montam a sintaxe da linguagem televisual”, assim, se numa tomada fechada (close) da parte da asa de um avião, a imagem (mensagem) pode subtender-se como uma viagem esperada (lazer, negócios) ou como um trabalho cotidiano (piloto, comissários) o significado não é o mesmo para todas as pessoas ou grupos humanos. Este fator determinador de significados é o repertório do receptor, que é formado por experiências, cultura vivida e recebida (que depende de outros fatores como faixa sócio-econômica), ideologias entre outros. Desta forma, uma mesma mensagem (signos) poderá ser interpretada de maneiras diferentes pelos seus receptores.

Isto se supõe que a mensagem visual – código icônico – e sonora – código sonoro – enquanto linguagem pode influenciar nas crenças e nos comportamentos de quem as recebem, incidindo indistintamente sobre sua razão ou sobre suas emoções, e que estas, por sua vez, estão condicionadas tanto por fatores cognitivos como emotivos. Nessas condições, a comunicação é vista como “aquele mecanismo por meio do qual se exerce poder sobre outro” (LÓPEZ-YARTO, 1988 apud FERRÉS, 1998, p. 38).

Esse poder pode ser manifestado através de seu potencial socializador na utilização de mecanismos de sedução na mensagem. Esse poder não trabalha com a argumentação e com a obrigatoriedade do convencimento, mas, sim, com o fascínio e a capacidade de seduzir, explorando as barreiras do inconsciente emotivo.

Pode-se dizer que a sedução representa o triunfo da metonímia, no sentido de que consiste em conseguir a adesão total para uma pessoa ou coisa a partir da adesão de apenas uma parte dela. Joan Ferrés aponta o caráter soporífero da sedução:

A força da sedução está, principalmente, numa hipertrofia da emoção, e se sabe que as emoções intensas ofuscam, até o ponto de adormecer toda a capacidade reflexiva, analítica e crítica [...], talvez por este caráter soporífero o termo seduzir aparece em todos os dicionários vinculados a conceitos tão negativos [...], seduzir supõe levar o outro a um certo grau de perturbação, de loucura e alienação (FÉRRES, 1998, p. 66).

A televisão utiliza-se com grande freqüência do recurso da sedução. Por meio de uma linguagem própria e dinâmica, percebe-se o movimento das imagens através de algumas técnicas, podemos citar, por exemplo: os planos e movimentos de câmera, a velocidade ou lentidão na transição das imagens, na mistura das cores e formas, nas trilhas sonoras que embalam as falas, no cenário (real ou virtual ), no figurino, na iluminação, no diálogo, no enredo, enfim, na obra. A telenovela, assim como outros gêneros televisivos, também está inserida nessa linguagem sedutora, sua narrativa que é construída através do processo de roteirização proporciona essa linguagem, os gestos e falas dos atores, a intensidade e ritmo da voz, a cor do cabelo, um decote, uma tatuagem, tudo isso em sintonia na busca de um único objetivo: a sedução.

4. TELENOVELA E A CONSTRUÇÃO REPRESENTACIONAL DOS PERSONAGENS

A era da novela em televisão – telenovela – teve início logo no surgimento e implementação da tevê no Brasil, por volta da década de 1950, porém, a sua consolidação se deu em 1964, com O direito de Nascer, originalmente uma novela de rádio, do cubando Felix Caignet. A telenovela foi adaptada por Teixeira Filho e Talma de Oliveira e o resultado foi bastante expressivo, demonstrado através da audiência na extinta tevê Tupi. Na época o país contava com 598.000 aparelhos de televisão.

Com relação ao crescimento das telenovelas na América Latina, Lopes afirma que:

As telenovelas são os programas de maior audiência em toda a América Latina e sua importância cultural e política cresce continuamente porque deixam apenas de ser programas de lazer, e se tornam um espaço cultural de intervenção para discussão e introdução de novos hábitos e valores. O estudo da telenovela permite aprofundar os conhecimentos das relações entre as dimensões da cultura, da comunicação e do poder. (LOPES, 1993 apud TONON , s.d., p. 12)

A construção da cultura brasileira está associada a várias correntes e entre elas, a da dramaturgia e a sua aplicação no veículo TV, ganhando uma nova definição, a de teledramaturgia. Esse caráter dramaturgico foi experimentado em, pelo menos, três vertentes. A primeira e mais explorada pelas emissoras brasileiras são as telenovelas, depois as minisséries, geralmente abordando temáticas de cunho nacional e por último os seriados.

A telenovela sabe muito bem aproveitar a riqueza cultural no Brasil, ela explora e cria histórias de situações corriqueiras e cotidianas. As falas são desenvolvidas através de ações vivenciadas pelo público, que, aliás, serve não só de inspiração para as tramas, como também de termômetro de audiência . Desta forma, a telenovela pertence a um universo de significação, intervenção, discussão e introdução de hábitos e valores, que influencia e é influenciada pelos receptores (públicos), os quais participam ativamente no processo de recepção, questionando e discutindo os assuntos apresentados pela telenovela ao longo da exibição de seus capítulos.

Sobre a linguagem ficcional (telenovela) representativa, Lopes diz que:

A telenovela representa um repertório de representações identitárias compartilhado por produtores e consumidores, construído no Brasil ao longo de 35 anos, e, por meio dela é possível estudar a recepção não como um momento em si, mas uma perspectiva a partir da qual se pode estudar todo o processo de comunicação, a partir da qual a vertente latino-americana das mediações aparece explicitamente ligada ao reposicionamento que o estudo sobre as culturas populares produz no campo da comunicação. (LOPES, 1993, p. 12-13 apud TONON , s.d.)

O grande modelo estrutural é o tipo ficcional, considerado como um subproduto da literatura (do mesmo modo como se enxerga o folhetim), uma espécie de folhetim eletrônico. Sobre esse modelo estrutural, Cândido explica que “do ponto de vista técnico, o entrecruzamento das diferentes histórias são manipuladas como fios de uma trança que vai se desenvolvendo” (CÂNDIDO, 1969 apud CAMPEDELLI, 2001, p. 20).

Estas diferentes histórias vão ganhando corpo através das tramas. O processo que envolve a construção de uma história ficcional, composta também, é claro, pela construção de personagens, se dá por meio de um roteiro ou script. Autores desta prática, a exemplo de Syd Fiel , Doc Comparato , Rey Marcos e Jackson Saboya , ilustram de maneira muito clara que, este processo só é possível de ser realizado, se o autor-roteirista utilizar enquanto princípios, pelo menos, três fontes para a obtenção de uma história ficcional. As fontes, ora listadas pelos autores são: leitura (pesquisa), vivência (pelo próprio autor ou por outras pessoas) e por fim, imaginação (que é tratada pelos autores como uma fonte não tão confiável).

O produto ficcional (como é o caso das telenovelas) procura justamente através dessas fontes, retratar ou representar, por meio de uma narrativa contada, situações efetivamente vividas pela população. Pelo menos, através de um retrospecto realizado pelas telenovelas brasileiras, pode-se perceber que, temas ou assuntos que marcaram situações no País viram freqüentemente, histórias ficcionais.

De certa forma, embora o produto telenovela, seja enquadrado ou classificado como um produto ficcional, dentro de um gênero maior – ficção seriada ou teleficcionalidade – se faz necessário admitir que, o sucesso provocado por este tipo de mensagem, é justamente pela maneira – quase real – de se retratar uma situação. Há uma identificação muito forte por parte dos telespectadores pelas tramas, os autores-roteiristas utilizam então, ingredientes que dão veracidade a um produto ficcional (telenovelas) com uma finalidade bastante específica: cativar aos telespectadores através de histórias que foram ou podem ver vivenciadas por eles.

Nesse contexto, personagens ficcionais se confundem com pessoas reais. O processo utilizado para uma construção mais específica se baseia justamente em elementos vivenciados pela população em situações normais e cotidianas. Essa característica de “veracidade ficcional” que as telenovelas, em muitas vezes exibem, fazem com que o público se torne cada vez mais fiel, acompanhando o desfecho das histórias, os personagens e seus caminhos durante o percurso narrativo. A oposição clara e constante utilizada na dramaturgia ficcional entre personagens julgados pelo público como “bonzinhos” ou “maldosos” assegura o sucesso de audiência das telenovelas, garantido inclusive, uma referência em qualidade enquanto produto televisivo.

Essa distinção clara entre o bem e o mal, o vilão e o mocinho estão presentes nas telenovelas, suas personagens ganham vida no imaginário popular, suas realizações, suas idéias, seus pensamentos, suas falas passam a ser representações do povo, que fica passivo e estonteante diante das imagens, que se formam e ganham vida, através das formas e das cores. A trama é audível, o som construído por um trilha musical desempenha o seu papel, permanecendo viva na memória do telespectador, através de cantorias, ora aqui, ora acolá.

A influência na edificação das telenovelas fez presente no melodrama com cruzamento no folhetim, conforme aponta Almeida Prado:

O segredo da popularidade do melodrama estava provavelmente na maneira como encarava e explicava as relações humanas, na simplicidade – ou simploriedade –, de suas concepções morais. O mal, para ele, não decorre das causas sociais, mas possui raízes psicológicas complexas, não nasce da incompreensão, da neurose, do desencontro de opiniões ou de personalidades. Tem sempre forma concreta, personifica-se num indivíduo propositadamente mau: o tirano ou o vilão. Às vezes, este foco de malignidade organiza em volta de si uma rede que funciona às ocultas, com nomes fictícios, usurpando cargos e títulos aristocráticos: é a conspiração, a trama diabólica. A dificuldade, para as vítimas, consiste em desencavar a verdade, sepultada sob várias camadas de mentira. (PRADO, 1972 apud CAMPEDELLI, 2001, p. 29).

Diante desta perspectiva favorável na construção cultural, e pela forma onipresente que se apresenta à televisão e, em especial, a telenovela, que apresenta uma mensagem que é facilmente aceita pela população, Wolton diz que “a televisão é um fator de identidade cultural e de integração social, devido à dupla condição de ser uma televisão assistida por todas as classes sociais e de ser um espelho da identidade social” (WOLTON, 1996, p. 157).

5. REPRESENTAÇÃO E REALIDADE NA CONCEPÇÃO PEIRCIANA

As ciências, para Peirce, dividem-se em três grandes classes: Matemática, a Filosofia e a Idioscopia ou Ciências Especiais.

A matemática é uma ciência que constrói seus objetos na forma de hipóteses, e delas extrai conseqüências necessárias, sem lidar, contudo, com questões de fato. [...] A idioscopia fundamente suas construções em observações especiais, tal como fazem a Física, a Fisiologia, a Química, etc. Por fim, a filosofia é aquele ramo das ciências que examina a experiência cotidiana, buscando afirmar o que sobre ela é verdadeiro. (IBRI, 1992, pág. 03).

Ivo Assad Ibri continua:

Dentro da Filosofia, três grupos de ciências abrangem sua subdivisão, constituídos pela Fenomenologia, pelas Ciências Normativas e, finalmente, pela Metafísica. Segundo Peirce, a Fenomenologia é a primeira das ciências positivas da Filosofia, sendo também nomeada por ele de Faneroscopia ou Doutrina das Categorias. A Faneroscopia, ou Fenomenologia, se desenhará como uma ciência que se propõe efetuar um inventário das características do faneron ou fenômeno, dividindo-as em três grandes categorias. (IBRI, 1992, pág. 04).

Peirce compreende a semiótica através de uma concepção fenomenológica para uma compreensão metafísica . Ou seja, realiza a passagem do “parecer ser” para chegar finalmente ao “essencialmente é”. Nas palavras de Santaella :

A semiótica é uma das disciplinas que fazem parte da ampla arquitetura filosófica de Peirce. Essa arquitetura está alicerçada na fenomenologia, uma quase-ciência que investiga os modos como apreendemos qualquer coisa que aparece à nossa mente, qualquer coisa de qualquer tipo [...], enfim, tudo que apresenta à mente. Essa quase ciência fornece as fundações para as três ciências normativas: estética, ética e lógica e, estas, por sua vez, fornecem as fundações para a metafísica. (SANTAELLA, 2004, pág. 06)

Entende-se por fenômeno ou faneron , tudo aquilo, qualquer coisa, que aparece à percepção e à mente. A fenomenologia tem por função apresentar as categorias formais e universais dos modos como os fenômenos são apreendidos pela mente. Os estudos que empreendeu levaram Peirce à conclusão de que há três, e não mais que três elementos formais e universais em todos os fenômenos que se apresentam à percepção e à mente. Num nível de generalização máxima, esses elementos foram chamados de primeiridade, secundidade e terceiridade. Sobre isso, Ivo Assad Ibri diz:

A primeira categoria desenhou-se através daquele elemento do fenômeno constituído pelas qualidades de sentimento, ao nível interior, e pela diversidade e variedade das qualidades do mundo. A secundidade, por sua vez, trouxe em si a experiência de alteridade, a idéia de outro, de força bruta, caracterizada pela relação do individual contra uma consciência primeira, tornando-se o pivô de todo o pensamento. No pensamento configura-se a experiência de mediação entre um primeiro e um segundo, extensa no tempo por ser geral e por manter um vínculo entre passado e futuro. As regularidades observadas no mundo traduzem-se como fenômeno de terceiridade, ao requererem uma consciência que experiencia no tempo, distinta daquelas consciências que estão sob a imediatidade da primeira e segunda categorias. (IBRI, 1992, pág. 19).

A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com a acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade. A secundidade está ligada às idéias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais simples da terceiridade, segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se apresenta a mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que signo irá provocar em um possível intérprete).

Conforme aponta Hélio Godoy, a metafísica para Peirce é uma ciência responsável pela realidade fundamental do ser, trata-se de uma Ontologia, ou uma Cosmologia. Peirce considera a realidade dos cosmos como algo inteligível, cognoscível ao homem. Desta forma, a mente humana é um caso particular de algo geral: a Mente da Natureza.

Do ponto de vista realista, a mente humana é uma conseqüência evolutiva do próprio universo, como atestam as Ciências Especiais como a Biologia e a Etologia. Para Peirce a própria capacidade humana de previsão, é conseqüência dessa evolução, como se observa nas seguintes passagens:

Infiro, em primeiro lugar, que o homem advinha alguma coisa dos princípios secretos do universo porque sua mente desenvolveu-se como parte deste universo e sob a influência destes mesmos princípios (apud IBRI, 1994, pág. 29).

É, de certo modo, mais do que mera figura de retórica, dizer que a natureza fecunda a mente do homem com idéias que quando crescerem irão a ela se assemelhar (apud IBRI, 1994, pág. 42).

Isso pode ficar mais claro se utilizarmos como exemplo a Lei da Gravitação Universal. Para o realista a Lei da gravitação não é uma construção da mente humana, mas sim uma expressão de uma Lei Real. Peirce diz:

Eles (os filósofos) dizem-nos que somos nós que criamos as leis da natureza! O que é real permanece assim se você ou eu ou qualquer coleção de pessoas opinam ou pensam ser ele verdadeiro ou não. Os planetas sempre foram acelerados em direção ao sol por milhões de anos antes que qualquer mente finita estivesse num ser para ter qualquer opinião sobre o assunto. Portanto, a lei da gravitação é uma realidade (apud IBRI, 1994, pág. 12).

Assim, é no transcurso do tempo, como um resultado cognitivo do viver, que a mente aprende, realiza suas sínteses, enfim, representa o mundo.

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Ulisflávio Evangelista
Enviado por Ulisflávio Evangelista em 18/12/2007
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