GARAGEM

Todos os dias, quando vou buscar o jornal, passo pela casa que foi de uma tia, irmã do meu pai, e sempre, automaticamente, olho para uma pequena garagem, que há pouco tempo, questão de um mês, reformaram porque estava caindo de tão antiga. É uma garagem pequena, bem pequena, para esses carros imensos que estão fazendo agora não daria nem a metade, mas na época comportava aquele carrão do meu tio, não lembro a marca, nem é questão de lembrar, é não saber mesmo, porque nunca tive essa curiosidade, na época de saber, visto que era um carro já ultrapassado porque já estavam chegando o Aero-Willys, o Opala - Comodoro era o mais lindo e chique de todos os tipos -, o Maverick, assim como tantos outros, mas ele, meu tio, fazia questão de se manter com aquele lindo carro, cor bordô, que ficava naquela garagem e mal dava abrir a porta do carro para poder entrar, as outras pessoas tinham que entrar depois de tirá-lo de lá do confinamento, bem guardado mesmo, pois nem parecia ser uma garagem. Mas nessa garagem, além de estar guardado essa relíquia de carro também tinha uma outra relíquia a qual eu aproveitei muito e me foi imensamente importante para minha familiarização com a leitura e principalmente em enfrentar desafios, pois ali meu tio guardava uma coleção de vários autores, mas o que mais me chamou atenção foi dos livros do Machado de Assis, editados em 1958, ano que nasci, todos com o mesmo tipo de capa papel acartonado cor cinza com arabescos nas margens em tons de vermelho - linda, sofisticada, mesmo para aqueles tempos, nada de desenhos, apenas belas letras apresentando o livro o autor e a editora, que infelizmente não consigo lembrar, embora tivesse anotado, assim como fazia com todos os livros que lia para não esquecer depois de um tempo lido, mas essas anotações foram extraviadas com o tempo, com as mudanças e com a vida -, e ali estavam todos os livros que essa editora havia publicado do Machado de Assis.

Eu fiquei encantado, lembro como se fosse hoje o sorriso do meu tio Hélio me mostrando aquelas relíquias, eu olhando um por um, admirado e encantando com um misto de êxtase e surpresa. Já havia lido alguns deles, mas não consegui me conter ao abrir um deles e perceber a escrita era totalmente diferente - f era ph, ciência era com Sc, Sciência e assim como muitas palavras muito diferentes e até difíceis de ler e entender, por isso aceitei o desafio e a partir dali percebi que o meu negócio eram os desafios. Reli dessa coleção: Helena, Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Braz Cubas, Quincas Borba, Memorial de Ayres, Esaú e Jacó, nessa ordem - devem estar se perguntando, como eu ainda lembro a ordem? Eu lembro porque me marcou demais essa leitura e também porque ele não emprestava pra ninguém, ele mesmo disse que muitas pessoas não sabiam que ele tinha aqueles livros, então, se ele me emprestou é porque confiava em mim - até nem sei, sinceramente, porque, visto que não tinha muito contato com ele, embora frequentasse bastante a casa dele. Assim, ele me emprestou todos esses. Levava um a um, terminava de ler, devolvia e pegava outro, e ainda me perguntava o que tinha achado, conversávamos sobre o livro, o que me acendeu mais ainda a paixão pelos livros, que nessa época, já era grande e comprava muitos livros, pois era sócio do Círculo do Livro e comprava no mínimo dois por mês.

Para ler esses livros tinha que folhear delicadamente as páginas porque já encontravam-se craqueladas, mas como eram de ótima qualidade, ainda se mantinham firmes prontas para serem lidas, degustadas como eu fiz. Anotava as palavras difíceis de entender, algumas vezes até perguntava para meu tio. e ele sabia todas.

Todo aquele imenso tesouro dentro daquela pequena garagem que agora via ali, provavelmente abandonada, agora talvez sendo usada para qualquer fim, mas não creio - quem sabe - que seja para guardar tesouros literários como esse que tive o prazer de desfrutar e serviu como referência para até hoje continuar apaixonado pela leitura e sempre serviu como base quando escrevo. Machado de Assis é, pra mim o melhor escritor entre todos os brasileiros e estrangeiros e reler todas essas obras dele com aquela linguagem e grafia do ano que nasci não tem nada que me faça perder a memória, pois ficou marcado eternamente no meu consciente, inconsciente, subconsciente, tudo que é ENTE, porque com essas leituras me tornei mais GENTE. E tudo guardado naquela garagem que todos os dias a vejo e relembro cada momento e me sinto feliz em vê-la. Com relação aos livros, lembro que um bom tempo depois perguntei a ele sobre os livros e, infelizmente não lembro qual foi sua resposta, não deve ter sido muito legal pois esqueci o que ele disse, mas lembro que ele disse não estar mais com os livros ali com ele. Como eu, na época morava em Porto Alegre, ele pouco me via e teve que se desfazer das relíquias que, infelizmente não ficaram comigo, mas eu as aproveitei imensamente, e permanecem para sempre junto de mim, mais ainda porque todos os dias olho para a garagem e as memórias me vem, instantaneamente. E tu, amigo e amiga, vocês tem algo que ao verem lembram de algo lá de antigamente?

(Texto escrito em 09/12/2023 - 15h42)