ABSTINÊNCIA

ABSTINÊNCIA

Estou há dias com essa palavra ABSTINÊNCIA na cabeça para escrever sobre ela, mas outras surgem, de última hora e acabam tomando o lugar dela, e ontem, iria escrever, mas acabei me ocupando com outras atividades e nem consegui escrever nada, mas assistindo uma série me ocorreu novamente essa palavra, pois a personagem principal, que dá nome à série, uma enfermeira, que para aguentar toda a carga atribuída a suas atividades no hospital e depois em casa, com marido e duas filhas, tem que se drogar, com vários remédios que são utilizados no tratamento de pacientes. Em determinados momentos dos episódios, percebe-se a agonia, a dependência, a necessidade dela de consumir os tais medicamentos que vão lhe dar a tranquilidade - a falsa tranquilidade, que um dia vai estourar em outro lugar, em outro órgão, porque o certo seria ela agir normalmente, aguentar a pressão, suportar a carga excessiva de atividades com outros recursos, tais como, uma melhor alimentação - o que, quem tem uma carga excessiva de trabalho e atividades não consegue manter, eu sou um exemplo típico, durante muitos anos descuidei da alimentação, comendo qualquer coisa por não ter tempo de parar para almoçar, para jantar, eram lanches e sempre na correria, mas jamais recorri a qualquer tipo de estimulante, a minha força para aguentar uma carga horária de segunda a segunda, todos os turnos, manhã, tarde e noite, inclusive sábados e domingos, vinha de dentro de mim, e assim aguentei direto 12 anos, sem férias, porque atuava em duas ou três escolas, fora os concursos públicos nos finais de semana e ainda as palestras, cursos e consultorias.

Com tudo isso que relatei, sobre minhas atividades, era, realmente, assoberbado e pensava que, ao largar tudo isso, tanta ocupação, tantos afazeres, tanto vai pra lá, vem pra cá, sempre de ônibus - com o carro na garagem, mas detesto dirigir, e preferia me deslocar de ônibus e trem porque podia ler, corrigir trabalhos e provas, aproveitando o tempo com alguma coisa útil que não fosse ficar olhando para as pessoas, para a rua e ver sempre a mesma paisagem, ou fechar os olhos e olhar pra dentro (dormir) o que fazia pouco, dormia apenas 4 horas por noite, e ainda continuo dormindo as mesma horas, mas a diferença é que agora, não tenho mais nada de compromisso, então fico mais tempo na cama e olho um pouco mais para dentro de mim mesmo, no escuro do meu interior dos meus olhos -, pensei que quando tivesse que parar com tudo, ficaria com a tal abstinência que tantas pessoas dizem que sentem e sofrem. Trabalho, quando se gosta, quando se curte, quando se realiza, quando é a vocação, vira um vício, se transforma em algo mais importante de nossas vidas, que serve para nossa sobrevivência e sustento da família, mas principalmente para nosso sustento como pessoa e no nosso íntimo como profissional que exerce com dedicação, com amor, com dignidade. Eu sempre dizia que era tão apaixonado pelo meu trabalho e pelos meus alunos, que só sairia da sala de aula quando morresse. Mas isso não aconteceu, tive um AVC, que ainda insisti em manter as atividades, que fui aos poucos diminuindo pois percebi que já não conseguia ter a mesma memória, não mais fazia cálculos de cabeça, tinha que usar livros para lembrar dos conteúdos, e como sou extremamente autocritico, decidi parar depois de quase 3 anos depois do AVC. Entrei no benefício saúde e depois me aposentei. Pensei que teria crises de abstinência por ter largado tudo e não fazia mais nada de tudo aquilo que fazia. Recusava trabalhos, dizia não, o que tinha muita dificuldade de dizer, pois conseguia abraçar tudo, e agora o não fazia parte do meu vocabulário pois não tinha mais as mesmas condições cognitivas, embora me fizessem propostas e até sugestões de dar aula lendo os livros, ou me embasando por livros, mas isso não fazia parte do meu método, e preferia então, parar mesmo.

A abstinência nunca chegou - aliás até chegou numa rara tirada de folga, nem posso chamar férias, alguns dias sem ir trabalhar, mas o suficiente para ficar sem saber o que fazer, perdido, com a tal abstinência, que logo foi suprida com alguns livros - e por isso fico pensando, porque as pessoas tem tanta dificuldade de se sustentar sem ter que recorrer a recursos escusos e nada recomendados para a saúde física e mental. Claro que não posso comparar uma dependência química, os tais opiáceos, que as pessoas fazem uso, com a falta que se sente por algo que se faça com tanta frequência e intensidade. O que não entendo e questiono, a que ponto a pessoa chega para buscar drogas, mesmo sabendo serem perigosas, mesmo sabendo estando cientes que não é o certo, que um dia a cobrança vem, mas continuam e o pior, depois de começar, dificilmente conseguem parar, muito pelo contrário, cada vez mais doses, doses maiores e com maior frequência. Não é só em filmes que se vê essas situações; vi muitas pessoas dependentes dizendo serem remédios para ansiedade - coitada da ansiedade, a culpa é sempre dela -. A galera do Rivotril está cada vez maior - agora já deve ter aparecido outro substituto, para não ficar tão na vista o uso e abuso de tal medicamento, não como medicamento, mas como socorro, como muleta, como prótese, substituindo a capacidade de controlar e conseguir dominar seus impulsos, conseguir se manter mesmo com tantas atividade a serem realizadas, absorvidas, e manter a calma, a tranquilidade e a paz interior - será? Lá por dentro uma profusão de pensamentos e julgamentos explodem por uma culpa que assola e para que ela vá embora consome mais e mais tais calmantes ou estimulantes. E, o que aparentemente as faz dormir, na verdade não é um sono reparador, é apenas uma martelada das drogas no cérebro para fazê-lo se aquietar por algum tempo.

Interessante como as pessoas estão suscetíveis, cada vez mais vulneráveis às coisas que estão passando à frente de suas vidas e elas vão absorvendo, vão se influenciando e desapercebidamente, vão penetrando num mundo obscuro, por algo, que parecia ser apenas uma forma de desopilar, de desafogar o excesso de trabalho, aliviar o stress, que era consumida apenas socialmente. Daí temos uma oferta imensa, atrativa de bebidas alcóolicas e o cigarro como drogas lícitas e logo em seguida, por necessidade e por imersão, passando ao consumo das drogas ilícitas, que são muitas e cada vez mais oferecendo todo o conforto de um mundo colorido e fácil para as pessoas fragilizadas por um mundo cada vez com menos sentimentos a serem compartilhados, com menos abraços trocados, com menos disponibilidades para serem ouvidos, com menos tempo junto com família. Com tudo isso, o resultado é degradante, triste e a solução para sair do vício é parar com tudo, mas tem que conseguir superar a fase da abstinência que vem de forma galopante e dificilmente aguentam e voltam com uma recaída que faz as pessoas caírem mais ainda no seu próprio conceito por não conseguirem superar a abstinência.

Eu estou conseguindo superar a abstinência que pensei teria, mas superei, e agora estou me dedicando a essa atividade de escrever, o que sempre fiz desde pequeno, mas que durante o excesso de trabalho, ficou escondido, adormecido dentro de mim - de vez em quando me pediam alguma mensagem para ocasiões: dia das mulheres, natal, ano novo, e algumas outras. Agora estou imerso na escrita, voltei a me inspirar para escrever poesias, contos, crônicas e artigos. Estou me envolvendo com grupos literários e isso está me fazendo ocupar meu tempo com mais proveito, e voltei a ler, o que sempre foi pra mim um prazer imenso. Tive uma certa abstinência da leitura na época que não conseguia ter tempo para ler, pois eram muitos conteúdos que trabalhava simultaneamente em diversos lugares e então tinha que estar atualizado. Não parei de ler. Lia livros e artigos técnicos, por isso a abstinência não foi maior.

E tu, caro amigo e cara amiga, já tiveram, já sofreram por alguma abstinência?

(Texto escrito em 28/01/24 – 18h15)