Outras Galícias

Parece estranho que ao pesquisar nas enciclopédias modernas as informações sobre a Galícia, se encontre uma terra irmã gêmea no nome. É certo que aqui o nacional costuma usar atualmente a grafia Galiza, mas ao fim das contas dá no mesmo, pois o gentílico é comum aos dois povos: galiciano. Com efeito, está lá: “GALÍCIA, região da Europa oriental dividida entre a Polônia e a Ucrânia”.

Na verdade é difícil estabelecer fronteiras numa região em que várias populações se reúnem para viver. A Galícia provavelmente está em terras que hoje são romenas, polonesas, ucranianas e eslavas. É um lugar de histórias antigas, terra que diversos povos ambicionaram dominar e que, por essa razão, foi passando de mão em mão desde tempos remotos. Ninguém ambiciona uma terra que não tenha atrativos, riquezas naturais, um povo culto e nobre. No entanto, cabe dizer, foi a Polônia que sempre perseguiu o objetivo ambicioso de ter a Galícia como um dos seus territórios, embora galicianos e poloneses vivessem às turras, justamente por isso. Havia diferenças culturais, religiosas e políticas...

Aquela Galícia – é a história que registra – sempre se mostrou rebelde e independente. Foi, antes, Principado Russo, tinha como principal cidade Galitch (notem a semelhança de nomes: Galitch-Galícia). Após constantes lutas por nacionalidade, os galicianos conseguiram impor sua independência já no Século XII. No ano de 1205 o príncipe Mstislavitch reuniu os estados de Volínia e Galícia, formando um único principado. Após a unificação o país cresceu em fama e poder, atraindo as gentes aventureiras e ambiciosas, sempre com o objetivo de submeter e conquistar os galicianos. Após muitas lutas, guerras e revoltas prevaleceu o imperador Casimiro III, que depois da conquista deu o nome de Rutênia às terras ocupadas.

Entretanto, o povo galiciano manteve as tradições, os costumes, a fé, o constante uso e ensino da língua natal – um dialeto cirílico aproximado do ucraniano. Ao ser anexada à Áustria em 1772 – que intervém para dirimir a questão religiosa entre galicianos ortodoxos e polacos católicos (os galicianos, com efeito, haviam se tornado uniatas desde 1596) – a Galícia ganhou status de Reino: a nação independente durou até 1918. Nos anos que ocorreram os conflitos da I Guerra Mundial (1914-1918), a Galícia – por sua posição estratégica e poderio econômico – se transformou numa das principais zonas de operação de frente oriental.

O fim da guerra levou também ao fim das monarquias, condados e principados. Essa derrocada geral, inspirada pelo desejo de modernidade, teve forte influência da Revolução Russa de 1917. Havendo necessidade de redesenhar a geopolítica da região, os dominadores decidiram dividir uma vez mais as terras da Galícia. A parte ocidental retornou aos domínios da Polônia, ao passo que a Galícia oriental ficou com a Rússia e hoje é parte territorial da Ucrânia.

Já o país da Galícia, região que conhecemos, famosa pelo jeito caloroso que os habitantes todos os anos recebem milhares de turistas, está localizada no Norte da península ibérica, vizinha a Portugal. O país como um todo é formado pelas cidades de A Coruña, Lugo, Orense e Pontevedra, terra de montes, de bosques de carvalhos, densa pradaria, de clima ameno durante todo o ano e das fontes eternas da água mais doce que há na face da Terra! Esta mesma região foi fundamental para a criação de Portugal como país, pois ajudou a conservar e normalizar o idioma local, levando a língua portuguesa a ser o idioma nacional lusitano.

Quem faz a língua é o seu povo: entre Portugal e Galícia eram os poetas, os trobadores, que circulavam e viviam na mesma região, usando tanto para difundir notícias, relatar a história, transmitir mensagens quanto para o trobar, um dialeto comum – o galiciano.

O que há de comum entre esses dois países – duas Galícias – uma, como se disse acima, de natureza exuberante e povo acolhedor, a outra encravada nas fronteiras de nações dominadoras, o que eles têm em comum é a existência de povos antigos cuja identidade e cultura próprias foram sufocadas em nome da modernidade, de partilhas militares, dominação física e comercial. Também existe de comum a luta intensa, a vontade indomável, a ânsia de nacionalidade orgulhosa, elementos vitais e capazes, que não deixam morrer nem a língua, nem fenecer a cultura.

Naquela Galícia carpática, de clima frio e rigoroso inverno, nasceu um famoso escritor que chegou até nós. Trata-se de Leopold Von Sacher, que depois ficou famoso com o nome Sacher-Masoch, aquele mesmo de cuja obra se originou o masoquismo, descoberto e estudado pelos mais famosos psicanalistas. Pois foi lendo a biografia de Sacher-Masoch [Bernard Michel, Sacher-Masoch (1836-1895), tradução Ana Maria Scherer, editora Rocco, Rio de Janeiro 1992], que me abriu o apetite e a curiosidade de conhecer aquela outra Galícia, assim descrita pelo autor: “A capital do reino da Galícia é a cidade que se chama em francês Léopol, em alemão Lemberg, em polonês Lwów e que é hoje a cidade de Lvov na Ucrânia. Com 70 mil habitantes em 1836, ela era um dos grandes centros religiosos e culturais da Europa”.

Tanto mudou o nome da capital galiciana, quanto a Galícia eslava mudou de “dono”, porém o seu povo sempre se manteve fielmente unidos pelo sangue. Bernard Michel fez um cuidadoso trabalho de pesquisa, de garimpagem, foi recolher nas origens as informações sobre o escritor, descobriu fatos inéditos, ouviu relatos fidedignos e originais, visitou locais remanescentes, descobriu descendentes, familiares, pesquisou órgãos públicos, arquivos, bibliotecas, casas particulares. Esse trabalho fatigante resultou nesta minuciosa e detalhada biografia de Sacher-Masoch. O livro se tornou mais importante ainda porque força uma reavaliação do escritor, que ficou famoso apenas por ter fornecido à ciência freudiana alguns elementos até então desconhecidos que levaram à descoberta de uma fantasia sexual: o masoquismo.

O Sacher-Masoch que Bernard Michel nos apresenta é muito mais importante. Além de escrever centenas de obras, foi um historiador do seu tempo. Amava de todo o coração a terra onde nasceu, além do galiciano, falava e ensinava vários idiomas e dialetos: eslovaco, alemão, latim, polaco, austríaco, francês, boêmio (tcheco), ruteno e inglês. Para entendê-lo, logo na introdução o biógrafo esclarece quem é Sacher-Masoch: “É um homem de fronteira: nasceu na Galícia, entre o mundo russo que anuncia o Oriente e o mundo germânico. Escreve em língua alemã, mas para evocar uma realidade eslava, completamente estranha. Mas nasceu também na fronteira intelectual: entre a arte russa de Turgueniev e de Gogol, o entusiasmo da geração romântica, o pessimismo cientificista de Schopenhauer e de Darwin”.

Então, nada melhor que dar voz ao filho dileto e famoso para dizer quem é, para descrever a sua terra, a amada Galícia: “Aquele que, levado por uma frágil embarcação, desliza sobre o mar calmo e sereno, enquanto os contornos difusos da costa desaparecem pouco a pouco num véu de bruma e seu olhar sonhador perscruta o oceano aéreo acima dele, me compreenderá talvez quando falo da planície galiciana, desse oceano de neve através do qual, no inverno, somos levados pelo trenó fugitivo”. Não acharam estranha a comparação entre as imensas planícies subcarpáticas e o oceano, principalmente quanto o lugar dista quilômetros de distância do mar mais próximo?

Ao sul da Galícia eslava se estende a cadeia montanhosa dos Cárpatos, em cuja encosta de clima ameno e águas abundantes se cultivam castas de uva para produzir o vinho branco mais famoso da região, difundido tempo depois pela Alemanha com o nome de Liebfraumilch. Esta Galícia é também um caldeirão cultural de mescla racial, mas forma um só povo, reunido nas mesmas terras por ideais e religiões comuns. Sacher-Masoch um dia assim saudou seus patriotas:

“Também eu vos saúdo a todos, que a todos os gerou um país, a Galícia: poloneses, rutenos, alemães e israelitas! Quer useis o czemerka, o tricórnio, a jamurka ou o uniforme branco; quer useis no brasão de vossas convicções a vitoriosa águia de duas cabeças [bandeira da Áustria] ou a nostálgica águia branca [bandeira da Polônia]; quer rezeis nas sinagogas, nos templos, na cirkew ou na igreja, eu vos saúdo de todo coração!”

Porém, o detalhe mais curioso e mais importante que consta do livro de Bernard Michel se refere à árvore genealógica de Sacher-Masoch. Diz o biógrafo:

“Nessa zona de contatos entre os povos, onde a vida impunha uma tolerância necessária, onde os casamentos mistos eram freqüentes, as genealogias seguiam linhas curvas. Em vez de ser explicado por sua hereditariedade, Leopold de Sacher-Masoch escolheu inventar a sua. Por parte de pai, descendia de uma família alemã da Boêmia. Mas cultuava a lembrança de um antepassado mítico, Dom Matias Sacher, vindo da Espanha como capitão de cavalaria nos exércitos de Carlos V. Haveria algo mais exótico na Galícia do que um cavaleiro vindo da outra extremidade da Europa? A tradição familiar era incerta. Teria ele vindo numa guarnição em 1517 ou em 1547, após a batalha de Mühlberg, como ferido heróico, tratado por uma nobre moca, uma Clementi, que se tornou sua mulher?”

Eis aí uma indicação para os historiadores galicianos. Será que as duas Galícia são irmãs, não apenas no nome? Será que num passado distante algum galiciano ibérico apaixonado não mais retornou à terra natal e ali mesmo fundou uma nova Galícia? Será que um comandante de Carlos V, cujo império imenso e poderoso chegou às fronteiras da Polônia, ali encontrando o patrício resolveu ficar para se tornar ancestral do famoso escritor galiciano Sacher-Masoch?

Quantas interrogações! Será o que será? Pé na estrada! Mãos à obra! Tomar o caminho de Kolomea, pois...

(Texto publicado em http://www.agal-gz.org, revisado pelo autor)

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 26/12/2005
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