O Poeta Moacyr Félix

Vez por outra a poesia se engessa num nome fazendo sombrear a constelação em torno. Sobrevivemos durante décadas reféns da volumosa poesia de Carlos Drummond de Andrade em desmerecimento a outros. Agora que o tempo cuidou de pôr em evidência seus nomes, podemos enfim nos deslumbrar com a poesia de Moacyr Félix. É hora de sair da sombra para a luminosidade, hora de fruir da palavra desse poeta dono de voz própria, plural, múltipla, mais brasileira que nunca. Poeta de concessões mínimas que cuidou de manter uma linguagem autêntica, por isso Moacyr Félix está mais próximo de nós, sua gente.

Aproveitando o remanso dos setent’anos o poeta partiu para arrumar a estante, tirar da gaveta vírgulas, éditos, inéditos, esquecidos, aquecidos, mexer nos baús, para ousar um testamento prematuro. Introdução a Escombros é de 1998, mas está em dia. É de sorrir-se reparar que o poeta envelheceu, mas não envileceu, continua “portador do poema social jamais previsto nos comícios: o poema social-vertical, ao mesmo tempo transcendente e transparente”, como introduz Eduardo Portela. E como diz o próprio Moacyr Félix em Sim e não:

Sim, acho que envelhecer é isto: saber-me mais e mais

os ossos, os nervos, as memórias, os súbitos vazios e a tristeza

arquitetados pelo tempo em mim e a me moverem

como escurescentes eixos deste pensar-sentir em que

a cada instante giro-me tantalicamente em quedas e ascensões

ora mui velozes ora mui lentas e que assim vão fazendo-me

vida, minha vida

nunca resignada em subidas e descidas nestes círculos

que sei cada vez mais serem em meu ser a definitiva obra

cada vez mais em mim desviventes e próximas e definidas

vésperas de túmulo, meu túmulo.

Não, não quero que envelhecer seja isto; e por isso continuarei

a escrever um pouco mais do meu ser neste papel em branco

a favor do que é o Amor e contra o capitalismo que é

o que foi ou está sendo desvivido em mim e em todos.

E depois vou procurar um amigo e tomar com ele uma cerveja

clara e, portanto, vivamente oposta ao escuro silêncio em que

em cinzas se desfaz o futuro nenhum dos que morreram.

Moacyr Félix fez o que qualquer coroa faz: mexeu no baú em busca dos cobertos pela poeira, dos esquecidos do passado, dos guardados pelos temporais, daí não pôde fugir da cobrança da arte: a recriação. Não fugiu, ao contrário, entregou-se ao melhor da poesia e do poeta que é o recriar, recriando-se a si mesmo e aos outros. Despertou algum poema dormido, revigorou temas tirados da letargia, para a qual não nasceram, antes, muitos foram parar ali pela força, pela violência, pela intolerância. Renasceram como bebês de proveta para uma nova vida. Quem lucra? Quem lê.

O papel que a poesia impôs a Moacyr Félix foi o de vilão da poesia brasileira. Pagou o pato pelos que fugiram, pelos que se acomodaram sob láureas falsas ou não, pagou o pato pelos que aderiram, pelos que emudeceram e outros... Agora pensa que choraminga? Não! Diz de novo tudo o que teria dito e não dito, isto sem abusar das falsas impunidades, pois a maior delas o tempo vende como mercadoria para depois cobrar como agiota. Então, o que sempre poetou é verdade:

Quando vier, ó carreirista

da política e das letras,

com a sua teoriazinha na mão

– como se fosse um buquê

para enfeitar sua vida

no jornal ou na TV –

saiba disto:

atrás de você

empurrando você

causando você

afirmando você

transcendendo você

existe a fábrica

– e seu chão

ligado ao motor das almas

que compõem uma nação

existe a palavra

– com seu âmago alado

há mais de 800.000 anos

e de onde não some

a antiqüíssima história

do trabalho e do homem,

existe a desalienação

– sobretudo a se operar

na linguagem lenta das verdades

que a cada um religa tudo.

Ora, visto o que está escrito, recomponho-me: não é verdade é que Introdução seja um testamento, não, me enganei. Talvez seja um relatório de feitos e ocorridos que – sem dizer eunãodisse? – apascenta-lhe a alma. Dentre todos os efeitos, tem um que sobressai: trazer o poeta bem vívido para pertinho de nós, ele está bem aqui, conversando com a gente, batendo um papo descontraído, bebendo uma cerveja clara, a bordo do palanque de uma cadeira de vime.

Introdução a Escombros é livro para ficar na gaveta ao lado, em consumo lento e permanente, livro que dá certeza e garantia de nos manter imunizados para novas sombras.

Mais que nunca, hoje, aqui e agora, essa é a herança que o grande poeta nos deixou...

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 26/12/2005
Código do texto: T90578