Américo Calheiros e a poesia da divina cor

GRANDEZAS DA LITERATURA SUL-MATO-GROSSENSE

Américo Calheiros e a poesia da divina cor

(*) Guimarães Rocha

O ser humano com a capacidade de sentir e raciocinar, abstrair e transcender pelo pensamento, por estar irresistivelmente sujeito à evolução intelectual e moral tinha que chegar, com o tempo, a constatar que o mais importante da vida é a essência das coisas. Assim, mesmo compreendendo as exterioridades de tudo que existe — também como algo sagrado e reverenciável, concluirá, aguçando a percepção na busca do tesouro sempre escondido, que a realidade e a natureza, a beleza ou degeneração, residem, observáveis, intensamente mais no íntimo, na interioridade e não apenas em aparências.

A cor da pele condicionando discriminação faz parte da estupidez. O mínimo de crescimento humano real é o bastante para se libertar do fantasma da cor que obstrui o reconhecimento e a aceitação dos semelhantes. O livro Da Cor da Sua Pele, de Américo Calheiros, lançado em 1999 tem um grito ardente e multifacetado, dirigido a toda cor.

Américo Ferreira Calheiros ocupa a cadeira número sete da Academia Sul-Mato-grossense de Letras, substituindo o padre Félix Zavattaro (em memória) e tendo por patrono José Barnabé de Mesquita. Professor escritor, formado em Letras, poeta teatrólogo, hoje é presidente da Fundação de Cultura do Estado de Mato Grosso do Sul. Criou o Grupo Teatral Amador Campo-grandense (Gutac), implantando o teatro como veículo de educação na rede municipal de Ensino; foi presidente da Fundação Municipal de Cultura Esporte e Lazer, Campo Grande. Publicou também: “Sem Versos”; “Memória de Jornal”; “A Nuvem que Choveu”; e, neste mês (dezembro), “Na virada da esquina” (crônicas) e “Poesia pra que te quero”.

O livro Da Cor da Sua Pele é um espaço de reflexão, uma viagem com amor e dor, humor. Estuda e questiona as tragédias e degenerescências advindas do preconceito. Motiva e desafia a negritude para superar a opressão e ganhar individualidade. Faz uma festa condensada na divina cor.

No poema “Mãe África Sou Seu Filho”, saúda o continente com a reverência de um bom crente nos orixás: — Eparrê, (...) /Pantera acuada (!). A África é o berço da humanidade, a ciência teria confirmado ali a origem do homem moderno. Em “Anjos Negros” define “Espíritos da África /Almas do Brasil”, fazendo-lhes justiça em nome da verdade de que “fizeram” o país.

Com a construção Força Negra, desafia: “Tira a canga /Ganga Zumba”. Canga é a sujeição pela força (escravidão). Ganga Zumba (na língua banto, título de Grande Senhor) foi o primeiro líder notável no Quilombo (que significa povoação) dos Palmares; acreditou num falso tratado de paz prometido pelo mundo branco. Depois, Zumbi (em banto, Senhor da Guerra), o último grande herói guerreiro de Palmares (Alagoas), resistiu ferozmente à tirania. Dia Nacional da Consciência Negra é 20 de novembro no Brasil, em lembrança de Zumbi, morto nessa data em 1695.

Calheiros identifica a generosidade tão divulgada nos negros, especialmente os mais velhos. Em Preto Velho, sintetiza: “Nego véio não nega /Faz a consulta de graça (...) /Reza a reza da esperança”. Negros armados com a força bruta. Capoeira resistência. Negros armados com o coração.

Saravá (quer dizer: Salve! — e indica força, natureza, movimento). A palavra, temida pelos que hostilizam com ódio irracional os cultos afro-brasileiros, é usada serenamente pelo autor. Saravá: “Saravá todas as luzes” — “Saravá todos os altares” — “Saravá Oxalá /Que é um só /Pai de todos os santos /Chefe de todas as nações /Luz de todos os olhares”.

Dia virá, a questão negra será ultrapassada do sentido da memória ultrajada, ferida vergonhosa na história, cicatriz. Estudaremos os desatinos em nome de raça, como se estudam aberrações cometidas pelo poder cego e rude em recuadas eras, casos remotos superados pela humanização.

Guimarães Rocha

(*) Poeta escritor, membro da Academia Sul-mato-grossense de Letras

E-mail:guimaraespolicial@globo.com

Guimarães Rocha
Enviado por Guimarães Rocha em 29/04/2008
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