Augusto Proença da raiz ao sonho pantaneiro

GRANDEZAS DA LITERATURA SUL-MATO-GROSSENSE

Augusto Proença da raiz ao sonho pantaneiro

(*) Guimarães Rocha

O Pantanal é um grande estado de espíritos (plural). A raiz é aventureira, as cores cambiantes, fauna e flora e mineral os habitantes verdadeiros, a terra um desafio em meio a enchentes, securas e ocorrências da vida eterna. O sonho, um modo de olhar e sentir. A devastação acelerada pelo homem, um tiro no próprio pé.

O livro Raízes do Pantanal (Cangas e Canzis), romance de Augusto Proença, foi lançado nacionalmente no ano de 1989. A capacidade da sentimentalização e da descrição poético-intelectual de grande impacto, faz pensar que na Terra somos ádvenas e a nossa própria extinção não faria exatamente falta ao Planeta.

Augusto César Proença, nascido em Corumbá, integra a Academia Sul-mato-grossense de Letras — cadeira 28, patrono Raul Machado, anteriormente ocupada por Lécio Gomes de Sousa (em memória). Escritor contista, professor formado em Letras, Literaturas e Línguas. Em 1979, Campo Grande, foi premiado no concurso “Ulysses Serra” com o conto O Vaqueiro Narciso. Publicou também as obras: “Snackbar” (1979); “A Sesta” (1993); “A condução” (1995); “Pra qualquer lugar” (1995); “Nessa poeira não vem mais seu pai” (1996); “Pantanal: gente, tradição e história” (1997); “Corumbá de todas as graças” (2003); e “Memória Pantaneira” (2004).

Esposa, três filhos, esposo obstinado, e auxiliares, buscam renovar a vida em região de fronteira no Pantanal. Ali estão guardadas as raízes da árvore genealógica do chefe do grupo, o protagonista (o pai da família). O romance, aliás, com estilo frenético de poéticas frases curtas, liga essa significação: “raízes”, aos iniciadores indômitos da incursão humana ao território da beleza.

Tendo por garantia única a total insegurança, a família procura terra firme, um cocuruto em meio a superfícies instáveis entre ressecamentos e enchentes. Sonha o cavaleiro intrépido durante penosa viagem, sonham chorando a mulher e seus três filhos no interminável sacolejar do carro de boi na busca de compensadora estabilidade. O grupo encontrará um lugar em ruínas, marcado por “um grito”, em que tombara morto pelos invasores (monções), o pai do nosso protagonista. A descendência imediata é a mistura entre europeu invasor e índio. Impulso sexual bruto. Sobrevivência tangida ao rude comércio dos produtos bovinos.

Por impossível pensar o Pantanal sem alar a imaginação, os textos trazem essencialidades mitológicas e lendárias para explicar despreocupadamente a grandiosa geografia pantaneira. Ao narrar as facetas do condicionamento animal, vai além, por exemplo, imprimindo por letra sentimentos ao boi. Todas essas coisas de fauna, flora e mineral, no ambiente multicor, de incontáveis sons, visões caladas do conhecido ao misterioso, são o que certamente produzem o dizer do autor: “(...) a solidão alarga os seus limites, e se aperta de receio o coração”. Aí, “São Pedro não tem folhinha”.

Os grandes eventos interferentes no pantanal são emocionadamente descritos: as queimadas, vida e morte nas lindas enchentes. Destruições necessárias e as abusivas, incertas reconstruções. E, em tempos de lutas por ocupação, a espera pela guerra, a insana espera, as operações fratricidas, o sangue, a caveira e a podridão da carne humana tisnando as águas, varridos do chão.

Augusto César Proença detém alta erudição, capacidade singular de abstração e descrição. Sua verve poética dá formidáveis braçadas em pleno texto cursivo. Sabe impressionar com as palavras. Veja esse desenho mental da configuração naquela atualidade, local, de índios guerreiros: “Toda a beleza da região, traziam no corpo: o verde dos papagaios, o colorido das araras, o negrume dos tucanos nos penachos. E, de longe, podiam ser vistos tingidos com o preto do jenipapo, ou com o vermelho do urucum. Nus nas canoas. Se equilibrando. Cabelos crescidos, amarrados no alto das cabeças, soltos, ou presos nas nucas feito rabos de cavalos. Independentes e livres. Hábeis remadores. Errantes por natureza. Implacáveis inimigos dos forasteiros. Por isso, odiados e temidos”. — Mas os brancos souberam “roubar a riqueza da terra, avançar pelos domínios, comprar ingenuidades, rascunhar contratos, aliciar a indiada para escravidão”.

O cavaleiro Sonha. Quer reconquistar, com a mulher e três filhos, um deles aleijão, os domínios perdidos pelos seus ascendentes quando das incipientes posses nos mais recentes séculos. O livro “Raízes do Pantanal” se cala nesse instante.

E aqui estamos. Em a natureza, só ela, sem o fitar humano, não há tragédia, mas apenas causa e efeito sem dó ou piedade — pelo menos nas formas concebidas pelo homem. Tais sentimentos, a serem trazidos, acumulados de outros, doentios, por sombrios tempos empestados pela inconseqüência do adventício gênero humano, converter-se-ão, talvez, no anunciado choro e ranger de dentes antes da esperada grande renovação da vida em nova etapa de evolução.

*Guimarães Rocha

(*) Poeta escritor, membro da Academia Sul-mato-grossense de Letras

E-mail:guimaraespolicial globo.com

Guimarães Rocha
Enviado por Guimarães Rocha em 29/04/2008
Código do texto: T966902