Abgar Renault: Poeta Novo Poeta

“No poeta, quebra-se o elo da transmissão: o indivíduo, por instantes, opõe-se à sociedade – consciente ou inconscientemente – e, com os mesmos processos de língua-social – também consciente ou inconscientemente – cria os seus valores individuais, sua língua-indivíduo: estilo.”

Antônio Houaiss - “Seis poetas e um problema”, MEC - 1960

"Vós, poetas, não sabeis o amargo de ser ou não ser poeta quando o mundo em dor se alarga e em água se reduz e cintila, quando o amor em nossa carne viva morde a sua garra ou seta, ou quando, na hora mais morta da noite, entre mar e mar, a vida só existe no olhar intenso da treva a escrutar dentro da insônia grávida o que fizemos da nossa vida."

Abgar Renault - "Prefácio de desculpas" in A outra face da lua, José Olympio/INL 1983

Para o leitor, apaixonado ou não, a poesia traz segredos e com eles o mistério. Cada novo livro é um portal de deslumbrante paisagem, o poeta lido e relido se transforma em novo autor, cada volume reaberto é renovação, nova idéia, redescoberta de amor, ritmo intenso, imagem fixada. A poesia não envelhece. Assim, o (re) encontro com a poesia muitas vezes também se faz por osmose, atração indescritível, escondida atrás de meandros, ritual vudu, hipnose, puro magnetismo, sonho, incenso e tarô. Vagando dentro desse universo – e mais alguns – apenas a leitura de um poema, Filho morto, incluído no livro “Ensolarando Sombras”, de Vera Brant, provocou a transferência direta para a alma e o coração de Abgar Renault, transportado à “uma paisagem de fluidez de luz”.

Aberta a primeira porta, olhos escancarados, o passo seguinte foi desenterrar no sebo – o poeta é raro – o volume Obra Poética (Editora Record 1990), que junta os livros “A princesa e o Pegureiro”, “Sonetos Antigos” (1968), “A Outra Face da Lua” (1983), “A Lápide Sob a Lua” (1968), “Sofotulafai” (1971), “Cristal Refratário”, “Íntimo Poço”, “Thanatos”, “O Rio Escuro”, desvairar-se com a lírica irreprochável de uma poesia cuja raiz circunda o coração, as vísceras, todas as artérias, mas nem por isso deixa de ter origem contemporânea, nem de pertencer à elite cultural, pós-modernista. Singular. E plural.

Não foi fácil, por outro lado, o poeta decidir aparecer, despertar-se do casulo em que estava aprisionado por entraves das profissões que havia optado por exercer: político, educador, diplomata. Pois tal dúvida suscitou revolta em vários contemporâneos, que literalmente o obrigaram a apresentar a arte poética para publicação. Antes, já provocara entusiasmo em Tristão de Athayde, o primeiro e desvendar a determinante de um poeta cuja em obra aparecia "tão clássico em sua modernidade." Vários outros se debruçaram curiosos ante a claridade despendida pela letra que não perdia a alma mas avançava resoluta para o futuro.

O conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, amigo do "admirável e esquivo poeta", estranhando haver nestes tempos "um autor fugindo a ser editado", foi daqueles que não descansou até que Abgar Renault, resolvesse entregar-se ao sétimo dia de criação, apresentando seu trabalho ao editor José Olympio e perdesse por fim a fama de ser "um poeta avesso a aparecer em livro". Todos, enfim, poderiam dividir com o poeta de Itabira a poesia que trazia em seu cerne "uma aguda visão do mundo e do ser, envolta em magia verbal".

“Uma noite marcha sobre mim”

Eu carreguei o meu corpo de abelhas e relâmpagos

e me escorri em sonho e sede à tua espera,

e o meu planeta descreveu a órbita infinita da esperança de ti

com os seus rebanhos de incêndio e desespero.

Sonhei-me lã sobre as tuas espáduas escarpadas,

pele sobre a tua, escamas, tempestade e erosão

em todo o curvo território das tuas arquiteturas,

fulvo campanário a clamar por tua constelação.

Banhei de ávido vinho as praias e as escadarias

onde surgiria o sol do teu tropel universal,

tingi de esmeraldas e sabores o dia complexo,

dei à sombra o esplendor de límpido metal.

Não sei o que sonharam dentro de mim estas mãos e esta boca,

mas eu esperava ser a tua habitação e habitar-te

com a fluida força, o solto peso e a exatidão

com que a água no côncavo busca a forma.

Por que se nublou e desfolhou o cristal interior

em que vacilavas para a minha escarpa? Por que rolaste

do fio de um minuto, pelo outro vértice,

desaparecendo sob o olhar estéril do meu pântano?

Sem sonho gritam meus olhos na oceânica solidão,

recuam palavras partidas e beijos derrotados,

estiram-se meus braços como trilhos para nenhuma viagem,

e uma noite marcha sobre mim cheia de frutos rotos, luas arruinadas e cemitérios.

A estrada parece de fácil trilhar uma vez percorrida. No caso particular de Abgar Renault, o poeta optou por uma poesia ao mesmo tempo íntima e universal, sem associar-se a escolas e institutos capazes de determinar algum tipo de fronteira ou limite ao poder de criador. Livre, simplesmente livre, como deve ser toda arte criadora. Pôde assim correr todas as trilhas, expandir-se a limites intoleráveis dentro de uma produção absolutamente impecável. Abgar Renault foi quem primeiro estabeleceu mais nitidamente o poder imaginativo dos contrastes, festejando poderosamente o claro e o escuro, a cor e o gris, a luz e a sombra, a fealdade e a beleza. Integrou a poesia às demais artes, levou-a ao âmago da natureza periscópica que cerca o homem.

A linguagem depurada, inata em Abgar Renault, foi elemento fundamental para que expoentes da nossa cultura rendessem-lhe a mais exaltada admiração, citando como exemplo pós-modernista a "poderosa linguagem lírica, sempre associando a vocação especulativa à sensibilidade que não recusa problemas humanos", além de considerá-lo "uma das chaves que explicam a projeção e o prestígio da poesia brasileira contemporânea" (Adonias Filho. A poetisa Henriqueta Lisboa, como todos impressiona-se com a inviabilidade de Abgar Renault, édito apenas para poucos privilegiados, desconhecendo-lhe o talante em manter-se escondido, sem deixar de ressaltar os méritos, ao reconhecer que "a construção do seu poema se recorta em técnica delicadamente geométrica, sem espraiar de sentimentos nem respingos de espuma."

Curiosamente o mesmo soco que me agrediu agradavelmente ao conhecer Abgar Renault neste início de ano 2001, tenha outrora atingido o também poeta Mário Chamie: “A poesia brasileira alimenta, ao longo de sua história, um jogo de oposições e contrastes. Esse jogo não implica necessariamente rivalidade mortal dos pólos opostos, de tal modo que um sobreviva à custa da exclusão do outro. A tradição dos opostos pendulares de nossa poesia não elimina os contrários. Não. Na verdade, o que ela estabelece é uma transfusão das substâncias próprias de cada um. Transfusão sem a qual nem um nem outro subsistiria.” (Mário Chamie-“Enigma: Claro e Escuro”-Suplemento Cultura-O Estado de São Paulo, 30.9.1984, apud “Obra Poética”, cit.).

O poeta concede vênia ao rigor classificatório que incita a santificação de poetas titulares, mesmo à revelia dos mesmos: “A tradição dos contrastes em nossa poesia, talvez, já seja a evidência de que é impossível definir a sua substância, a não ser considerada ela própria um enigma. A poesia brasileira, nesse sentido, acolhe a realidade nuclear desse jogo. Passa por ela o corte transversal da duplicidade básica em que a luz se opõe à sombra, o claro se opõe ao escuro.” (Mário Chamie, op.cit.)

Entre o claro e o escuro acende-se o arco-íris, figura permanente na ótica de Abgar Renault. O enigma que excitou Mário Chamie levando-o a realizar o ensaio enfrenta a disparidade paralela de poetas do naipe de Gregório, Drummond e Abgar. Interessa-nos o último: “Refiro-me a Abgar Renault. Ele não está entre Gregório de Matos e Carlos Drummond de Andrade. Abgar Renault situa-se no centro daquela indagação, com a independência de quem refaz a substância do poema, na sua vivência e na visão que tem de si mesmo e do mundo.“(Mário Chamie, op.cit.)

Por fim, Mário Chamie – com lucidez e claridade – enquadra a poesia de Abgar Renault numa dimensão sem molduras: “Se Abgar Renault é uma primeira pessoa plural e sujeito do verso que conjugamos, o que ele fez de si, o fez para nós no melhor legado da nobre tradição de nossa poesia.” (Mário Chamie, op.cit.).

Isso pode-se ler claramente em Perguntas ao crepúsculo/I:

Mas por que tamanho azul?

Por que parado em silêncio

esse automóvel sem cor?

Quem veio, quem voltará?

Por que também esta grama

e tantos passos ausentes?

Por que escrevo cartas velhas,

nova letra, verde tinta,

desesperadamente,

à estrela Alfa ou Gama,

que, clara, tão clara, pinta

de surdo luto e segredo

o raio de lua e sol?

Por que hoje uma fita escura

a marcar página em branco

neste livro em minha mesa?

E uma garrafa de vinho

– púrpura, vívido e bêbedo –

por que na frente de mim,

sem mãos, sem lábios, sem copo?

Por que nos olhos, no ouvido,

sem o possessivo minha

a curva concha marinha

cheia de mim e sonatas

de Mozart – frágeis, mas sempre?

Por que não ser seqüestrado

pela resposta à pergunta

sepultada em meu peito?

Por que, para ser feliz,

por que, para que não o ser?

Por que contabilizar

arcaicos números mortos,

buscando débito e crédito,

e procurar receber

escassos, dúbios cifrões

há tanto tempo caídos

em exercícios já findos?

Março, 1975

Para ver como são as coisas: nem sempre uma reta é uma reta. A palavra de Carlos Drummond de Andrade veio mais cedo mas – hoje se vê – ficou contida nas fronteiras de um espaço em que Abgar Renault ainda não transitava plenamente, claro, o poeta iria crescer – e muito. “Abgar Renault figura numa antologia de poesia moderna como poderia figurar – se tivesse idade provecta – numa antologia dos últimos parnasianos. Não esquecer que começou modelando “sonetos antiguos”, num tempo em que Bilac apenas se despedia com a Tarde e a poesia chamada modernista era apenas um poema de Manuel Bandeira no Malho: “Quando perderes o gosto humilde da tristeza...” (Carlos Drummond de Andrade “O Pessimismo de Abgar Renault”-Confissões de Minas, 1944 apud “Obra Poética”, cit.).

Se o modernismo no Brasil se transformaria num rotundo fracasso (para alguns setores da chamada elite cultural), na poesia transitaria de passagem apenas, animando as almas como um hálito renovador, mas que carecia ser destrutivo para vingar. A poesia bebeu o leite do modernismo, o néctar, depois cresceu, desmamou. E Abgar Renault – de sólidas humanidades – reinventou, numa série de 24 sonetos que deu nome de “Sonetos Antigos” (1923), toda a emoção camoniana e dos sonetistas clássicos. Era muita audácia, justo numa época em que aferventava o modernismo na boca do vulcão cultural que se transformou o eixo Rio - São Paulo. Não sabiam o quê daquilo restaria, se a colheita farta, se apenas espaçados rescaldos em alguns cantos, antes de se transformar em fumaça.

Naqueles tempos nem mesmo Carlos Drummond de Andrade poderia antever em Abgar Renault um poeta que, despudoradamente, trespassaria os movimentos literários com a liberdade e o poder de uma voz tão impecável, acima de tudo e de todos, à qual não se poderia mover nenhuma crítica ou censura. Quando Abgar Renault faz poesia calam-se todos respeitosamente. “Mas vem o modernismo – continua Carlos Drummond de Andrade – e Abgar Renault é situado nele sem perder sua característica fundamental, o culto às formas decorosas de expressão. Nessa imensa falta de respeito que foi o modernismo, Abgar conservou o respeito próprio e o respeito dos outros.” (Carlos Drummond de Andrade, op.cit.)

Dentro dessa poesia de caráter mágico descobre-se abismado o mundo particular dos sonetos de Abgar Renault. Quando lidos assim, metidos em máscaras de carnaval veneziano, escondido entre florestas de poemas, os sonetos de Abgar Renault conseguem passar livres. Mas basta uma visão mais atenta para ver que o espaço que medeia entre um soneto e outro é ocupado por uma espécie de viaduto sentimental, humano, caloroso. Há um invisível mas claro-escuro elo de ligação entre os sonetos. Neles Abgar Renault se solta, se desnuda por inteiro, sem pudor, sem freio, sem limitação.

Foi sob a forma do soneto que Abgar Renault escolheu para tratar os temas mais íntimos, para dar recados cabalísticos, para falar aos seus como se estivessem sentados juntos, conversando na intimidade das salas ou dos quartos, quando o tema era o amor, o erotismo, a paixão da mulher amada, a amizade, o apego aos próximos. Apesar de terem sido publicados entremeados aos poemas, os sonetos de Abgar Renault provocam o sentimento mais que de unidade, ultrapassando além mesmo as fronteiras da íntima cumplicidade.

Não se trata apenas de semear toda a poesia nos catorzes versos que compõem o soneto clássico. Ao compô-los o poeta Abgar Renault caminha pelas frases com a calma de asceta, a tranqüilidade de alguém que dá os primeiros passos para percorrer uma longa estrada. Mas quando o soneto chega ao fim deixa a sensação de que tudo foi dito, com todas as palavras, sem economia, sem contenção, sem a concisão estética que tantos apregoam, sem agredir a gramática, principalmente, sem economizar a beleza, em versos que acumulam som, cor, luz, perfume, gosto. E uma sensualidade de sabor bíblico, “estes rosais do último céu desperto”, verdadeiramente imperceptível a leituras apressadas.

Foram esses tais detalhes e a excepcional qualidade da poesia de Abgar Renault que Carlos Drummond de Andrade quis destacar, com propriedade, quando fuzilou a imensa falta de respeito que foi o modernismo, evidentemente referindo-se, entre outras coisas, à tentativa frustrada de Mário de Andrade de impor uma fala brasileira a nível cultural. Mas havia essa imposição mesmo ou foi defeito de interpretação?

O próprio Mário de Andrade cita o fato em carta a Prudente de Moraes, neto: “Meu destino é viver e dentre estes que andaram modificando a maneira de ser artística dos brasileiros, na certa de que sou dos mais vividos. Isso eu gozo. Às vezes, está claro, me irrita a maneira com que tendências sérias, elevadas e sinceras, em que me meto, sejam reduzidas a pó-de-traque pelos continuadores. Como é o caso do brasileirismo, e o caso da língua, problema tão nítido na minha inteligência desde o princípio e que foi pavorosamente, enjoativamente desvirtuado por todos os que não compreenderam a parte puramente experimental da aquisição de estilo e principalmente de enunciação de caracteres não fixos mas generalizáveis da nossa maneira de pensar e sentir, e consequentemente de exprimir.” (Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto-1924/36–Georgina Koifman (org)–Nova Fronteira 1985).

Poder-se-ia dizer que somente Guimarães Rosa veio entender o que seria uma "fala brasileira", ao atracar sua memorável obra ao brasileirismo a que Mário de Andrade se referiu, apesar da fala do autor de Grande Sertão: Veredas ficar restrita às fronteiras de Minas Gerais. Mas se Abgar Renault conservou o respeito próprio e o respeito dos outros, certamente não deixou de percorrer outros destinos, porque tem a natureza dos experimentalistas, dos aventureiros e exploradores, para os quais nenhum caminho deve ser percorrido se não for uma estrada nova, cujas curvas são desconhecidas, as escarpas e desfiladeiros um desafio permanente. Essa forte impressão é a feitiçaria imposta pela descoberta desse novo poeta, que escreve aliando a natureza animal da poesia à liberdade de escrever, “porque o sopro de uma treva contagiosa / influiu, passando, a minha forma e coloriu o meu olhar”.

E assim, livre e sem cabresto, sem medos, freqüenta os salões e as catedrais com a mesma dignidade com que penetra no cárcere e na capela mais simples. Usa de todas formas – não envergonha nem se prende a nenhuma delas. “O poeta mete a língua na vida alheia, na língua alheia, na obra alheia, na dor alheia e na própria dor”, como disse Cacaso de Glauco Mattoso.

A vida tem uma faca na mão

Vamos parar de ler. Paremos de escrever.

Olhos e mãos circulam no papel

ao serviço da dor e da desgraça,

mas as palavras são frias e sem fel

para exprimir o desespero dessa taça.

Ninguém sabe escrever. E ninguém pode ler

o que fica, depois de tanta luta fútil,

a escuridão desvirginada do teu ser

na indiferença de uma folha de papel.

Hoje, ontem, amanhã – amanhã sobretudo –

a vida sempre tem uma faca na mão,

vai sob as unhas, vai direto ao coração,

dói nos olhos, nos pés, dói na alma, dói em tudo,

torna toda a poesia um jogo raso e inútil.

Abgar Renault é um poeta consciente e livre. Manteve-se encolhido no limbo premeditado, com medo daquela "poesia equilibrada, consciente, silogística, que nasce, cresce e se conclui como um teorema ou uma fórmula estatística..." (Prefácio de desculpas). Necessário fosse, não teria pejo em usar a gramática inteira – o passado e o presente – em sua poesia, pois tudo o que diz o faz com todas as palavras e paisagens a que tem direito. No entanto, dono de técnica apurada, não se preocupa em ser adjetivo, substantivo, conciso ou contido – se essas fórmulas venham para danificar a sua idéia, desequilibrar o que pretende construir. Aplica no sonho e na matéria o poder do imaginoso, é fantástico na descoberta de novas e belas construções, extraordinário no detalhe, insuperável nas cores e luzes. Encontrou soluções esmeraldinas, até mesmo para as imagens e fotografias desgastadas pelo uso contumaz. Não é fácil, não, nada é truque, principalmente porque “chega um momento em que a vida é distância, e tudo é tarde.”.

A descoberta dessa poesia atualizada, didática e exemplar, obriga juntar os sonetos num só pacote, para que a leitura dos mesmos em conjunto transmitam a mesma sensação de felicidade e alegria. Apesar de Abgar Renault obedecer nos sonetos a forma tradicional, sem exceder-se, em algumas poesias nota-se a mesma cumplicidade honesta, tanto em emoção quanto na temática. Os sonetos são reflexo de coisas, situações, crenças, ideologias e fatos muito pessoais ou extraordinários. Não que haja neles uma unidade, nem isso é necessário para atestar a beleza e qualidade, mas há sim uma forte identidade, cumplicidade irmã, intimidade impublicável, parentesco excessivamente familiar. Uma sala, um espelho quase sempre presentes guardam íntima versatilidade e desavergonhada pureza, um “silêncio de sombras entre folhas”.

Enquanto pode foge da "esfinge que ontem, na estrada de Tebas, fitou em mim os seus olhos e me dissolveu". Simplesmente não quer ser comparado, prefere a invisibilidade a ver sua obra poética "reduzida a esta rala poesia, a esta ou nenhuma poesia sem surpresa e sem mistério, a este coração nu, direto, elementar, irreversível...", conduzida a excessivo debate, desgastantes comparações, debitada a compulsões teóricas, em respeito à opção de caminhar outro trilho que não o puramente literário. Agora que se computa um centenário de nascimento à sua biografia, o que fazem os guardiães da mina poética deixada por Abgar Renault, que não a expõe toda se a cultura luso-brasileira, a poesia latino-americana assim o exigem? Não se sabe...

O fato é que Abgar Renault, embora tenha conseguido e leveza dos anjos, não conseguiu tornar-se invisível, se é que tentou. Numa peça encaixada em "A outra face da lua" (Livraria José Olympio Editora/Pró-memória/INL 1983), intitulada "Prefácio de desculpas" – que aqui vai na íntegra –, o poeta mesmo deixou-nos um itinerário, o mapa de uma derrota, algo em que confessa a dificuldade sentimental que tem em exercer plenamente a poesia:

Perdoai-me a soberba de haver-me sonhado vosso irmão,

sem ver nem ouvir estéril vácuo nas minhas palavras,

que não soube nunca encher meu grave coração.

Perdoai os versos incomunicáveis do chão de lavas

e de pedras em que vivo. Perdoai o vinho, o sal, o pão

sem fé que meu corpo e minha alma receberam gratuitamente.

Perdoai perdidamente a voz esquiva e outrora,

que entre os esbeltos cantos de profundas vozes

se compôs de tristeza essencial e de vaga alegria malcontente,

se ergueu, e se apagou de pobreza e de fadiga.

Perdoai-me se me esqueci a mim sentado entre vós,

como um de vós, e não reconheci meu destino tão comum,

e procurei dar-lhe forma impossível, sem o hálito de fogo que anima a elementar argila.

Perdoai, em mim, a quem se viu um dia sem destino nenhum.

Vós, poetas, não sabeis o amargo de ser ou não ser poeta

quando o mundo em dor se alarga e em água se reduz e cintila,

quando o amor em nossa carne viva morde a sua garra ou seta,

ou quando, na hora mais morta da noite, entre mar e mar,

a vida só existe no olhar intenso da treva a escrutar

dentro da insônia grávida o que fizemos da nossa vida.

Não podeis saber como arrasa saber o que é poesia,

ouvi-la e vê-la onde está, sentir que nasce de um sem-querer,

às vezes de fortuito encontro de domésticas palavras

em coito inesperado, que gera sentidos novos e novos sons,

e não poder captá-la, nem à noite, nem à tarde, nem ao aberto dia,

nem acordado nem desacordado nas surdas tumbas do sono...

percebê-la, evasiva e arisca, esgueirando-se entre todos os vocábulos bons ou maus,

feios ou belos, da língua mais ilustre ou mais plebéia...

Tê-la doendo agudamente no sangue e vê-la, quando irrompe visível,

– idéia sem forma ou forma sem idéia –

reduzida a esta rala poesia, a esta nenhuma poesia sem surpresa e sem mistério,

a este coração nu, direto, elementar, irreversível...

(Oh, o íntimo cansaço da poesia equilibrada, consciente, silogística,

que nasce, cresce e se conclui como um teorema ou uma fórmula estatística...)

Sobre tudo ignorais, ignorareis (sois poetas!) a suada impotência

de não ser vossa aquela mão, esse ouvido, certo sortilégio, a ciência,

a antena, o acaso, o não-sei-quê divino, humano, aéreo,

que condensa e repete o poder de todas as filogêneses

e faz nascer numa folha de papel, entre vertiginosos traços,

a rosa, Júlio César, um sapo, a Virgem Mãe, uma estrela em pedaços,

um carbúnculo, esta salamandra, e a esfinge

– a esfinge que ontem, na estrada de Tebas, fitou em mim os seus olhos e me dissolveu.

Não sabeis, não sabereis jamais, como eu,

Quanto mata sentir que a poesia nascida da punhalada mais aguda é triste concha vã,

Sem nenhum eco de mar, e que para ela não existe amanhã.

(1950)

[Escrito no centenário de Abgar Renault (1901-2001) - O curioso é que neste volume nas Indicações biobibliográficas sobre o autor consta, verbis, "Nascido aos 15 de abril de 1903, em Barbacena, Minas Gerais", ao contrário da Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio Coutinho/J. Galante de Sousa, que registra o nascimento no ano de 1901.]

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 10/01/2006
Reeditado em 13/01/2006
Código do texto: T96809