(RE) CONHECER VITO PENTAGNA

Para apresentar este poeta, de luz fúlvida e fátua, vou gastar pouca saliva, mesmo porque dele se sabe pouco, que teve vida breve (Piracicaba, 1914-Valença 1958), que além de poeta era diplomado em Direito e que dele se conhecem apenas dois livros: Três momentos de poesia, saído em 1939 (com Augusto de Almeida Fº e Amiar Fares) e Poemas, reunião dos últimos escritos promovida pelos amigos e familiares em 1978. Sem delongas repasso a palavra de três notáveis admiradores da breve, mas lúcida poesia de Vito Pentagna. Da lavra já não se pode dizer o mesmo: os poemas denotam um profundo entendimento da condição humana, ressaltam as sensibilidades do cotidiano e revelam o altruísmo de que era possuidor. Nada é em vão. Leiam o que dizem Lúcio Cardoso, Maria Alice Barroso e Rosa Chacel, leiam esta pequena antologia, excertos de seu último livro e digam sim, é tudo verdade...

Lúcio Cardoso anotou em seu Diário completo: "3/jun/54: Vito Pentagna lê alguns de seus poemas, que me parecem excelentes. Todos eles misteriosamente entrelaçados, com certa pompa de expressão ligeiramente fora da moda, e que traduzem tão bem sua curiosa personalidade, aliás, das mais autênticas, das mais ‘vivas’ que tenho encontrado ultimamente. Tudo que o cerca, móveis, cortinas, livros e objetos de adorno, lembra esse gosto um pouco rebuscado e fora de uso que exprime o mundo secreto de um homem realmente sensível – e revelam o artista até seus menores detalhes. Não creio que seja estritamente um poeta, mas um romancista também. A qualidade de sua inteligência, seu Dom de analisar e compreender, fazem suspeitar a presença de um criador de tipos, amadurecido e grave, que ainda não ousou encetar a grande tarefa que provavelmente o espera.”

O depoimento de Maria Alice Barroso, Em busca de Vito, é comovente: “Não foi só através do inesquecível livro de Maria Helena Cardoso Por onde andou um coração, que ouvi falar em Vito Pentagna: ela própria, antes de me dar uma cópia do original para eu ler, já tinha me falado desse amigo, que deixara em sua vida a marca das grandes amizades. (...) O conhecimento de Vito me levou a Valença, a querer conhecer Léa, sua única irmã e a perscrutar a casa dos Pentagna, na tentativa de descobrir em cada objeto – principalmente em seu escritório, que permanece com a mesma disposição com que ele o deixou – o toque de sua mão de dedos longos e alvos. (...) Eu li estes poemas no silêncio largo de sua casa em repouso – e ao mesmo tempo em que me sentia privilegiada por travar conhecimento com um artista que conseguia dizer, em sua poesia, aquilo que eu ainda não consegui exprimir em prosa, já começava lamentar que tantos – quase todos! – não conhecesse estas páginas, cuja inarredável destinação é o leitor.”

Rosa Chacel escreveu Vito en mi recuerdo especialmente para o livro: “Salen, por fin, a la luz estos versos que durmieron casi veinte años... No, no es esto: no puede decir que salen a la luz porque no se someten a ella. Su sombra, invulnerable, irrumpe con brillo de azabache, por entre la claridad que la acata... Veinte años, es cierto, pero tampoco puedo decir que durmieron porque estos versos son el clamor del insomnio. Clamor, no lamento, pues no hay en ellos quejido lastimero: son como la voz de la campana, que vibra con toda su materia herida y da la nota justa, dobla con la medida correspondiente al mazo que la golpea... Justeza, reflexión especulativa en el espejo negro del insomnio, tan opuesto al color de la vigilia, pero no menos riguroso... (...) ahora, aquí, en este caso, antes estos versos no es un empeño de análisis crítico lo que me acucia, es el conocimiento de su origen, el haberlos visto brotar en su fuente cuando, antes de ser versos, palabras rimadas, pulidas y tendidas sobre un papel, eran sonrisas o miradas brotando del hontanar humano: eran chispas del pedernal de la mente, duras, brillantes, súbitas ideas... (...) No pretendo explicar nada: los poemas están ahí – una presencia íntegra, para el que sepa leer. Misterio de la persona.”

OS NOTURNOS

(II)

Fiquei só ao relento por um céu de extermínio,

entre nuvens esparsas, sob astros impacientes.

As palavras soavam de uma urgência remota,

estes frutos distantes, estes frutos tão próximos.

Quantas árvores altas quando soa o abandono,

quanta voz sem garganta, quando eco sem muro.

um ladrar já sem cão, numa estrada poeirenta.

Tanta luz de fantasma enche o espaço noturno,

tanta luz que se move sinalando o perigo.

O que arde não sei, assim só, ao relento.

O que arde, o que punge, o que fere, o que mata.

Eu só sei que estou só, e esta noite me guarda

não sei mais que promessa, não sei bem que ameaça.

Que importa um peito a arfar descompassado,

um coração que insiste,

que pulsa, ruminante, inquieto,

desejos, e tormentos, e ânsias vãs?

Um puro estar, inerte, bloqueado

sob a pendente ameaça deste gume

na infinita abóbada do vazio.

(III)

Medidas de contemplação, – Aurora –

Ocaso. Duplos pesos paralelos.

Cinco portas do corpo, cinco chagas,

habitantes do túnel, testemunhas,

de um crepúsculo a outro partilhando

incessantes pupilas – as estrelas.

Sem pálpebras, sem pálpebras nem venda,

sem pestanas – subsidiárias da noite

complementos, de uma total e plena

conseqüência...

Oh! – Trescalo,

as narinas na sombra te recolhem,

e um sabor nunca provado experimentam.

Mãos que não tocaram e já possuem

vozes bem anteriores à garganta.

Todos os sentidos estão despertos.

OUTRO MOMENTO

Mergulho os olhos no céu de maio,

e penso que breve será noite em tudo.

Não essa noite coletiva e fácil,

em cada alma se contempla e busca

– porém a outra, individual e trágica,

a grande noite sem reconhecimento.

Não sei porque tanta emoção me alcança!

Um corpo só já é tão desolado

que mais não pode outro estar sozinho,

mesmo que as trevas se refaçam plenas

no mais profundo de uma noite, opaca.

OS AFLUENTES

Todos os rios desembocam na noite.

Mar antiqüíssimo, ela os recolhe todos,

em promíscuo albergue sem privilégios.

Um murmúrio único soma silêncio e queixa,

misturando antídotos sem indagar origens.

Em solidão bem íntima desabrocha o arroio,

ignora horizontes e sóis, e ventos;

em solo ou entranha, abre caminho e passa,

não importa que águas, que céus bebeu,

quantas estrelas conduziu, flutuantes,

em torno a que árvores campeou sua angústia.

Boca sem pressa ela tritura tudo

em confusa lama – substância e abismo.

É como se um desejo o conduzisse cego,

e a própria fonte já aspirasse à queda,

ao sombrio lagar onde o cansaço e o medo

fermentam um mosto, indiferente, anônimo.

SONETO NÚMERO DOIS

Desde o balcão suspenso sobre o mar,

desde esta alta varanda sobre a vida,

tão alta e solitária, tão perdida

que nenhum eco traz o resfolgar

de peito igual e humano ao peito ímpar.

Contemplo a luz que teima já vencida,

no sangue de sua última ferida,

um doloroso e lento retardar.

Esta tarde não é primeira tarde,

encontro derradeiro, despedida,

desfalecendo à morta soledade.

No entanto, que aderência descabida,

uma carne tão frágil, tão covarde,

que mercadeja o transe da partida!

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 10/01/2006
Código do texto: T96820