POLÊMICA SEM FOCO

Em abril de 2004.

Carece de foco a polêmica sobre o anti-semitismo do filme de Mel Gibson, A paixão de Cristo. A inquietação é procedente: o histórico anti-semitismo religioso do Ocidente cristão, de perseguição em perseguição, da Península Ibérica à Rússia, desaguou no fenômeno ideológico do anti-semitismo e o terrível Holocausto, que é preciso evitar que se repita, a todo custo.

No entanto, é preciso lembrar que as ideologias, versões modernas dos fanatismos religiosos do passado, prescindem dos fundamentos inerentes à verdade científica. As ideologias - assim como os sectarismos religiosos - são orientadas por emoções desordenadas e conveniências circunstanciais, mais do que por razões consistentes e permanentes. O fundamentalismo, ademais, está superado nos meios religiosos cristãos esclarecidos – o método histórico-crítico de leitura bíblica iluminou irreversivelmente a interpretação das Escrituras.

Ora, o movimento de Jesus era de cunho pacifista, espiritualista, que rejeitava toda forma de violência., estando em conflito frontal com o messianismo político dos poderosos saduceus e parte dos fariseus. O pacifismo do Galileu contrastava com o sectarismo dos essênios que, no deserto, rejeitavam radicalmente o Templo. O movimento de Jesus divergia dos violentos guerreiros sicários. Estes – e Bin Laden provavelmente estaria entre eles, se tivesse vivido na Palestina há dois mil anos – eram dados à prática de atentados sangrentos. Simão apóstolo fora zelote - combatente por zelo messiânico - e o doce Nazareno o trouxe para suas fileiras pacíficas. Jesus pregava que os mansos herdariam a terra.

Os Evangelhos foram escritos décadas depois da morte – e ressurreição – de Jesus, em momentos dramáticos da História dos judeus, para oferecer respostas às comunidades cristãs perplexas e atrair mais convertidos vindos do judaísmo, inclusive. O massacre em Jerusalém, por volta do ano 70, perpetrado pelos romanos, não permitiu que aqueles judeus partidários do messianismo político, e que teriam entregue Jesus a Pilatos, sobrevivessem. A cidade ficou em ruínas. As comunidades cristãs procuravam responder às inquietações, diante daquele cenário de destruição, atribuindo os acontecimentos a um chamado divino à conversão. O fato é que a esmagadora maioria dos traidores sucumbiu: os que sobreviveram foram os judeus pacíficos, que se espalharam mundo afora no decorrer da última diáspora. Portanto, os judeus de hoje, não são descendentes daqueles que eram, segundo as palavras atribuídas a Jesus pelo evangelista, mais responsáveis que Pilatos por sua morte - estes estão simplesmente extintos. A profecia do Mestre foi cumprida: os mansos herdaram a terra e nada sobrou do Templo.

E o mais importante de tudo: o Galileu manso e humilde é o Mestre do perdão. Nenhum cristão que seja seu digno seguidor pode, jamais, alimentar, permitir ou se omitir diante de qualquer anti-semitismo, que hoje, não passa de alienação. E o perigo existe, posto que a Modernidade, presunçosa e cientificista, está afastada da espiritualidade, não demonstra interesse pela religiosidade, e portanto, em sua ignorância petulante, é presa das mais elementares armadilhas ideológicas.