Pablo Neruda e a Poética do Coração

Caminho pelas ruas do centro de Santiago, década de 70, anos de chumbo e aço, anônimo, admirando prédios chamuscados pelos incêndios, paredes rompidas por intensos bombardeios. A sede da Rádio Nacional, que transmitiu clamores de resistência até a invasão pelas tropas. Edifícios perfurados, redação de jornais, sedes de partidos políticos, tudo destruído, metralhado a torto e a direito. A paisagem mais triste, porém, era o Palácio La Moneda. Emparedado por um carro blindado, tábuas cerrando portas e janelas. A cúpula externa onde costumava tremular a bandeira nacional estava destruída pelo bombardeio aéreo. Instigado pela presença viva da história me aproximo sem medo. Ali morreu Salvador Allende defendendo o cargo a que fora eleito. Chego o mais perto que posso. A proximidade me emociona mais. Um senhor de cabelos brancos, boina na cabeça, traje simples, surrado, cria coragem, se aproxima e diz: “Eu estava aqui. O palácio foi bombardeado, incendiado e invadido. Assassinaram don Salvador.” Caminhamos até um bar, ofereci vinho, cigarro e conversamos mais um par de horas. A história viva, a catástrofe histórica lacerada, passava diante de mim por seu personagem. Narrador e ouvinte de olhos úmidos.

Outras vezes retornei a Santiago. A cidade revivia envergonhada, tímida e calada. Nas mesmas ruas, agora limpas e varridas, encontrei um vendedor de publicações e gravações piratas. Eram obras de Nicanor Parra, Victor Jara, Violeta Parra, poetas da terra, cantores da resistência. Depois de adquirir confiança, indicou-me bares obscuros onde se ouvia música e poetas, apesar do toque de queda. Comprei La Bicicleta, revista de resistência, algumas fitas, entre elas de Pablo Neruda lendo poemas do livro “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”. A voz de Neruda soa grave, amorosa, dramática. Não diz poemas como Vinícius de Moraes ou Carlos Drummond de Andrade, mais parece um cantor de tango, de bolero, do nosso samba canção. A partir de então vi que Neruda não seria jamais considerado um clássico. Era um poeta popular, como o nosso Catulo da Paixão Cearense ou Patativa do Assaré.

Como se mede um poeta? Como se mede, à uma distância considerável o poeta e sua obra? Retiram-no do espaço e tempo a que estava confinado, do qual fazia parte? Exclui-se a geografia física, foco da paisagem em derredor? Elimina-se a ideologia que entendeu, teve afinidade e abraçou? Deleta-se a utopia da igualdade social que fere e machuca quando se torna consciente? Destrói-se a construção política que assimilou, o sonho que erigiu a sangue e suor? Como se mede o poeta sem misticismo, sem religiosidade, sem eternidade? A imortalidade de Neruda vai durar porque, no momento em que lhe foi dada a bênção das musas, soube interpretar como nenhum o anseio da terra e dos povos em derredor. No momento certo trouxe à lembrança todo o mal que o invasor (especialmente o espanhol), causou. Sem leviandade.

Essas considerações vêem empiricamente após leitura do artigo de Floriano Martins “Neruda”. Parece que para alguns o poeta chileno representa um ícone – mas também um incômodo. O que se pretende é destotemizá-lo. Não se pode derrubar o altar de qualquer um senão daquele que conseguiu abalar a estrutura da poesia hispânica. Frívolo, inconseqüente, desmesurado. Tudo que Floriano Martins disse e citou de uma dezena de críticos importantes a respeito de Pablo Neruda é absolutamente verdadeiro. O próprio Floriano Martins o reconhece ao citá-lo, quando se compara com o classicismo moderno de Vicente Huidobro. Mas, dá para imaginar a leitura de Gonçalves Dias sem a ótica edênica e indígena que sempre o acompanhou? Como chegaria até nós a leitura de Casimiro de Abreu sem a viagem feiticeira de uma só via? Como seríamos capaz de ler Joaquim de Sousândrade sem a contingência intercontinental a que foi submetido, impregnando-o de um futurismo paranormal? E mais próximo a nós, como ouviríamos Mário de Andrade excluído do urbanismo paulistano erótico desenfreado a que se escravizou como um sacrificado? E ler Brecht sem o marxismo dialético? Eis um exercício que se pode fazer ad infinitum, à exaustão, esgotando todas as fábulas possíveis. Finalmente, como não se pode falar mal de un pequeño mal poeta, vamos crescer à custa de un gran mal poeta – tudo tem princípio. Em frente!

A polêmica, entretanto, não nos faz esquecer o artigo de Flora Sussekind (Escalas e Ventríloquos), sobre a poesia brasileira, limitando-a ao curral cult São Paulo-Rio de Janeiro. Ditadura que não se pode aceitar em hipótese alguma, sob pena de transformar-nos em periferia. Ao submeter-nos à imposição do Eixo São Paulo-Rio como centro cultural irradiante, ao qual se deve – por subserviência e mimetismo – imitar como único e verdadeiro, foi uma catarse. O Rio de Janeiro jamais perdeu o caráter macunaímico de resistência cultural, mas a avassaladora pressão que São Paulo exerce, utilizando o poder dos meios de comunicação é criminosa. Aceitar a idolatria nos sufoca, nos põe em genuflexão, humilhantes, ante uma elite cultural capaz de formular sozinha, tomando uma base acadêmica de qualidade, a diretriz teórica a ser seguida pela “intelectualidade marginal” – os outros somos nós. A poesia não fica de fora, aliás, é elemento de importância vital.

Neruda traz na poesia a tradição dos payadores, poetas populares cuja matéria prima é a emoção. Isso porque, apesar do progresso técnico e científico, do aparato eletrônico que penetra nos confins do cérebro para descobrir o neurônio é responsável por tal ou qual reação, chegou-se a lugar nenhum quando a exigência era definir o ponto exato onde é fabricada a emoção. Tudo aponta que – seguindo teorias astrofísicas similares – localizamos, sim, o buraco negro do conhecimento do cérebro. Quem se amarra no que faz, procura novas fontes de entendimento onde possa haver um compromisso mais que causal, embora sujeitando-se a desembocar em outra armadilha, a da imitação da subserviência. É possível? Enfim, para nos libertar, tentaremos.

Tentaremos descobrir o exato momento em que a poesia apartou-se do domínio da emoção e catou rumos cada vez mais emparedados em direção ao intelecto puro. Para os viciados em emoção e adrenalina, quando tudo foi se tornando cerebral demais (e o coração foi eliminado como centro capital das emoções), os movimentos poéticos se acantonaram em nova ótica. Foi decretada a morte do romantismo e determinou-se também a mudança do centro do espírito do coração para o cérebro. Trata-se de uma suposição, claro, mas se verá que é fato de somenos importância na circunstância atual: à descoberta da morte cerebral seguiu-se a morte do coração como centro emotivo. Por isso as poesias de T.S.Eliot e Saint-Jean Perse poderão ser lidas a qualquer tempo, mas não as Odas de Neruda.

Talvez e admiração e ódio que começamos a sentir pela poesia latino-americana resulte do largo isolamento que a história nos impôs. Agora, enfeitiçados pelo canto da sereia, devotamos tempo a uma poética que não tem o tempero, o cheiro, o ar que respiramos. Para usar expressão antiga: não tem nossa alma. De repente nos bateu a ansiedade de sermos hispânicos. Não, não somos hispânicos. Não é uma simples constatação geográfica ou histórica, é carnal, visceral, simplesmente não somos hispânicos. Não somos parte da América Latina de fala espanhola que, para dirigir-se a nós, o faz através da Europa. Não descendemos de conquistadores criminosos, reais exterminadores que ensangüentaram as terras, rios e mares, do México à Patagônia. Porque não somos dessa laia nossa poesia é diferente. Não temos afinidades poéticas que nos tornem irmãos. Não somos herdeiros de uma tradição pirata, de saqueadores, de Blake, Colón e outros bucaneiros que não merecem letra. Não nos orgulhamos disso, mas viemos de Portugal, essa terra que se tornou pequena demais porque desistiu a tempo de se transformar em conquistadores criminosos. E por extensão viemos da África, do Oriente, da Arábia. E a poesia portuguesa – que é nossa – é também das colônias, de Cabo Verde, dos Açores, de Angola, de Moçambique, de Macau e, porque não, de Timor.

A distância da nossa letra e poesia é a mesma que separa nossos heróis dos heróis latino-americanos, todos são índios, mestiços, negros. Porque os saqueadores não deixaram pedra sobre pedra, nem a glória, nem a poesia. Encheram os buques com o botim e se mandaram. A herança literária latino-americana adveio da coloni-zação de castas européias oriundas da barbárie. Mas isso é história, não é poesia. Em poesia somos tão distantes quanto o haicai do soneto. Não temos as mesmas rimas, a mesma história, não somos sequer vizinhos poéticos. Se uns poucos se atiraram nos braços eloqüentes da poesia latino-americana, foi em busca do espaço que lhe foi negado aqui mesmo, colonos de nós mesmos. Cabe perguntar por que não buscamos esse espaço aonde mais o canto se aproxima do nosso? Por que não instigar a América Central, as Antilhas, cujo sol e sal são bem mais próximos a nós? Será que nos afasta deles o fato de não serem tão literariamente arianos quanto nos julgamos?

A fonte de possa poesia, que pode ainda hoje ser qualificada de romântica – e aqui romantismo tem que ser entendido como a poética voltada para o coração – é originária das qualidades humanitárias que herdamos do cantar gálico, galego e germânico, temperados posteriormente com o ritmo africano e a espiritualidade oriental. Não sofremos a influência bárbara da poesia celta e ibérica, tampouco somos descendentes das sujeições étnicas basca e catalã. Graças a esse detalhe natural nossa poesia não foi compurscada por elementos pseudo-heróicos, ao contrário, cresceu e se impôs ao mundo culto vacinada contra epopéias sangrentas. Nosso herói vem do bumba-meu-boi, do fandango, da micareta, de lendas indígenas, do vodu, da macumba. Então agora a poesia latino-americana aparece agigantada. De repente começamos o lava-pés de vizinhos que sempre nos miraram de viés, alimentando relações literárias e poéticas com fuxicos, comadrios e futricas. O barbarismo dos países latino-americanos ameaça nos contaminar. Os Andrades são nossos; os Bilacs são os; os Campos são nossos. É nossa salada poética, o tempero característico, nosso itinerário percorrido, a voz que varou fronteiras. Não vamos hoje, à luz do Século 21, fingir de mocinho bom e bem comportado, aluno de quem tem pouco a ensinar. Que aprendam conosco – se quiserem – a poética do coração, do samba, do fado, do chorinho.

Algo que se pode dizer de Neruda – um tiquinho parecido com Mário de Andrade – é que poeta como ele não existe mais. Ninguém mais adota a poesia do coração, que parece com o evangelho: uma poética estranha e familiar, ao mesmo tempo ingênua e amiga. Ninguém faz a poesia que significa “amor à beleza”, essa beleza que se confunde com o bem. O que diremos da poética do coração? A poética do coração é essencialmente a interpretação contemplativa da vida. Simplificando e fazendo abstração das diferenças, pode-se dizer que a poética do coração opõe à corrente ativa, a corrente intelectualista e monástica, sem deixar de colocar a liberdade como fundamento. Preconiza fundamentalmente um caminho mais curto e mais fácil de poética, de volta ao rei-no interior, para empregar expressões familiares. O método não se diz inédito, invoca toda uma tradição, menos concernente à vida poética solitária, em favor da solidariedade. O poeta “reconduz o espírito ao coração” e “une-o à alma”. Variante de fórmulas clássicas atualizadas a nosso tempo, a poética do coração não é algo novo e sim baseada em perspectivas anteriores. Trata-se de “guardar o coração pelo espírito” e “reconduzir o espírito da razão para o coração”. É estranho porque a mesma religiosidade negada à poesia atropelou a todos nós recentemente através das obras de pseudo-ascetas capitaneados por Paulo Coelho, este, por sua vez, cavalo do espírito de Raul Seixas..

Pode-se reverter esse quadro? Como? Talvez imitando na poesia os próprios pseudo-ascetas, só que diante de um computador, em conferências e discussões, em defesa de tese, invadindo as faculdades de letras. Não vamos, como os antigos, “recomendar um lugar tranqüilo e solitário, a posição sentada e os olhos fechados, apoiar o queixo sobre o peito e fixar o olhar no umbigo” (apesar de que olhar o próprio umbigo abre a consciência para muita coisa nova). Mas podemos inventar uma maneira poética de explorar o coração e as entranhas, de modo a copiar escolas sufistas. Por-se em busca da energia do coração, energia que designa essencialmente a atividade divina na alma humana restaurada.

É essa a revolta que se propõe na poesia, sem dever subserviência ao Eixo São Paulo-Rio, sem se escravizar fixamente em elementos técnicos que substituem a emoção pelo intelectualismo, nem fixação de que também somos parte integrante da América Latina. Ou isso ou tudo e tudos! Cartas para a redação.

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 13/01/2006
Reeditado em 19/01/2006
Código do texto: T98220