O TRISTE FIM DE UMA MEMÓRIA

O TRISTE FIM DE UMA MEMÓRIA

(Celismando Sodré- Mandinho- 09-09.2003)

Não, este não é o meu pai! Este não é aquele que acordava às cinco da manhã, aprontando tudo o que era necessário para ir à roça quase que diariamente; que caminhava 18 quilômetros 5 ou 6 vezes por semana, para trabalhar de 10 até 14 horas diárias na enxada com o objetivo de suprir as necessidades da família. E por incrível que pareça, este homem ainda tinha fôlego para trazer um saco nas costas com melancia, feijão, milho verde, umbu, abóbora, etc. Hoje, compreendo que aquele sacrifício era a forma encontrada por ele de manifestar seu carinho e seu amor pela família.

Nunca esperei grandes manifestações de afetividade do meu pai, ele raramente me fazia um carinho, não me lembro dele passando a mão na minha cabeça, ou fazendo-me um elogio explícito, não acompanhou minhas dúvidas de menino em crescimento, nunca perguntou o que eu tinha aprendido na escola, e certamente foi assim também com meus irmãos. Pela forma como foi criado, não era um homem moderno e aberto ao diálogo. Hoje, entendo que talvez ele era daquele jeito, por ter recebido o mesmo tratamento do meu avô. Mas ele era meu pai, meu herói do tempo de menino que contava algumas histórias de sua terra natal e da sua família. Meu herói porque eu via o quanto ele trabalhava por nós, eu e mais quatro irmãos, com uma disposição descomunal, fazendo questão de ser sempre honesto e de pregar a honestidade acima de tudo. Um homem pobre que sofreu para criar os filhos e ainda sofre com esta doença que embaralha a minha compreensão de justiça. Mas, penso que deve ter uma razão para tudo no mundo.

Meu pai sempre foi um homem rude que veio da roça, um sujeito semi-analfabeto que sabia ser rígido quando eu e meus irmãos, fazíamos qualquer traquinagem. Ás vezes ele exagerava na punição, mas era o seu jeito de homem roceiro que foi criado dentro desse mesmo sistema. Falo por mim, que nunca ficou nenhuma mágoa desse homem que viveu uma

boa parte da sua vida por nós. Hoje compreendo porque ele era daquele jeito.

Os neurônios do cérebro do meu pai estão se apagando progressivamente, como se fosse às luzes de uma cidade afetada por uma pane elétrica, e que essas luzes fosse se apagando uma por uma, deixando-o cada vez mais no escuro e provocando na família uma angústia cada vez maior. Às vezes, ele olha para mim como se estivesse a perguntar: quem é esse? Parece que já o vi em algum lugar... ele é o meu pai e na sua memória eu já não sou o seu filho, sou um estranho, um desconhecido que não lhe é mais familiar. Outras vezes ele sorrir para mim como se estivesse vendo um amigo, dando um certo alívio na alma.

Sei que meu pai entrou em um processo estranho de inversão da linha cronológica do tempo, como se estivesse mergulhado de volta para o passado, retornando ao tempo de criança que precisa de cuidados a todo momento. Como pode uma enfermidade levar uma pessoa para a infância novamente?

Segundo a ciência, em estágio muito avançado, o Mal de Alzheimer faz a pessoa voltar a ter um comportamento infantil, como um bebê necessitando da vigilância constante dos familiares, alguns morrem em posição fetal. É difícil aceitar o fato de que um homem enérgico, e corajoso como o meu pai voltasse a uma situação de extrema dependência. É preciso muito equilíbrio emocional para entender o que se passa, ver meu velho retornando ao útero da minha avó que não está mais presente.

Atualmente, quando o vejo com o olhar distante como se não estivesse compreendendo nada do que se passa em sua volta, um homem que voltou a ser criança e que nem lembra o meu nome, um sujeito que sofreu tanto, para no fim da vida ter que suportar uma doença tão cruel, sinto uma grande angústia no coração. Mas... quem sou para entender os desígnios de Deus. Como entender uma doença que tira o que existe de mais precioso em uma pessoa, que é a sua memória, suas lembranças e aprendizagens. Que faz do seu entiquerido um homem estranho que ao mesmo tempo é o seu pai, estremeço quando penso que essa maldita doença é genética, que esse tal de Mal de Alzheimer pode voltar a acometer outros da minha família, fazendo muita gente sofrer.

Às vezes a revolta nos acomete, de uma forma dolorosa. Principalmente quando você pensa nos trilhões de dólares dos contribuintes que foram, e ainda são gastos em guerras e na construção de armas pelos países; e tantas doenças, não só como a do meu pai, como tantas outras que causam sofrimentos, não são pesquisadas com mais seriedade. Priorizam muito mais as guerras do que a saúde da população. Se tais investimentos fossem feitos em pesquisa com o objetivo de buscar cura de determinadas doenças, com certeza haveria menos sofrimento no mundo.

Confesso que no início, tive grandes dificuldades para aceitar o fato de que meu pai estava doente. Passei muito tempo remoendo sozinho tão

cruel realidade, tentando entender os obstáculos do caminho de cada pessoa. Num certo momento da minha vida, quando olhava meu pai como um estranho, pensando comigo: “não... este não é o meu pai”, foi como se ouvisse uma voz que penetrou pelos meus ouvidos e pela minha alma, e era tão real que até hoje ainda ecoa na minha lembrança, como a alertar-me todo o tempo, tal voz dizia-me energicamente: “ sim... este é o seu pai, não adianta fugir da realidade, este é o seu pai” imediatamente uma lembrança

me veio a tona, uma lembrança que modificou a minha forma de lidar com o problema da doença do meu pai.

Lembrei de Dona Sindú, uma mulher forte e abençoada que passou pela mesma dificuldade com seu marido, e outras muito mais difíceis do que as dificuldades que minha família enfrenta atualmente, que perdeu uma filha em circunstancias extremamente dolorosas. Percebi ali, o quanto estava sendo egoísta. Estava olhando para o meu umbigo e esquecendo o que se passava em minha volta. Talvez Dona Sindú não saiba, mas quando a vejo sinto uma paz muito grande. Como uma mulher pode transmitir tanta paz e tanta esperança nos outros? uma pessoa que encarou e encara os sofrimentos da vida de forma tão sublime. Agradeço sempre a Deus por pessoas como ela existir e transmitir tanta fé e otimismo, mesmo que, as vezes, ela nem perceba; porque parece que tudo é tão espontâneo e tão natural naquela grande mulher, que só em olha-la eu sinto o quanto ainda sou despreparado espiritualmente. Penso também na minha mãe, uma mulher que criou cinco filhos trabalhando na roça ao lado do meu pai, e em casa cuidando dos afazeres domésticos, que vem provando para todos, o valor da dignidade e da perseverança. O quanto ela tem sido forte e corajosa ao longo da vida, para superar os obstáculos do caminho, minha mãe sempre foi uma mulher de fibra, e cada vez mais a admiro. Ao pensar nestas duas mulheres, nunca um velho provérbio me pareceu tão verdadeiro, como aquele que diz: “Deus dá o frio, conforme o cobertor.” Lembrei-me novamente daquela voz tão real e penetrante que me sacudiu, fazendo voltar à realidade; “ Sim... este é o seu pai, seu velho pai, e essas são realmente, duas grandes mulheres.”

Para mulheres como Minha Mãe e Dona Sindú,

Minha irmã Cleidinha, e para todas as famílias que

Passam por dificuldades semelhantes.

( Celismando Sodré - Mandinho)

MANDINHO
Enviado por MANDINHO em 15/05/2008
Código do texto: T990349