O Mito da Natureza Selvagem e a Construção da Amazônia.

Por Marcos Pereira Magalhães

É comum pensar que a floresta amazônica teria ficado intocada e não teria sofrido qualquer influência humana até a ascensão das sociedades agricultoras. Mesmo assim, em pontos isolados de áreas reduzidas, às margens dos principais rios da região. Entretanto, estudos recentes têm mostrado que a influência humana sobre a cobertura vegetal Amazônia, além de ter sido extensa e intensa, teve início com a chegada dos primeiros grupos de caçadores-coletores, no mínimo, há 11000 anos atrás.

Pesquisas arqueológicas voltadas para o estudo de vestígios materiais de antigos caçadores-coletores, na Amazônia, anteriores ao contato com o colonizador europeu, entretanto, além de recentes, são intermitentes e fortuitas. Muitas vezes elas só foram levadas adiante porque, casualmente, foram encontrados evidências incontestáveis. Mas estudos objetivos voltados especialmente para a localização, identificação e pesquisa de sítios deixados por eles foram, na verdade, bem poucos.

Apesar das primeiras pesquisas arqueológicas na Amazônia datarem ao século XIX, elas ficaram restritas aos artefatos de grande apelo artístico, como as urnas, utensílios e outros objetos cerâmicos, bem como estatuetas e pingentes feitos de pedra. Os pesquisadores pioneiros visavam, principalmente, a formação de coleções para os museus. Porém, politicamente, eles se aliavam às idéias de superioridade das civilizações agricultoras e, com isto, negavam a condição de civilizados a todos aqueles que prescindiam da agricultura e da cultura material associada a ela, identificando-os com a preguiça e a barbárie. Com essa identidade, os possíveis caçadores-coletores por acaso existentes na Amazônia não tinham qualquer apelo para os acadêmicos de então.

Essa identidade tinha origem no conceito de “selvagem”, termo que existia desde a antiguidade, aplicada pelos gregos aos despossuídos de polis (cidade), ou aos que viviam em florestas ou desertos e eram “no agrios”, isto é, não tinham área cultivada. Nesse aspecto, os museus nada mais faziam do que reafirmar a “inferioridade” dessas raças, que na verdade, como veio a se saber mais tarde, foram as formadoras das mesmas sociedades, cujas culturas os pesquisadores destacavam como uma das mais importantes das Américas, devido ao seu rico patrimônio material (especialmente as cerâmicas ritualísticas finamente decoradas e de complexas formas e estilos decorativos).

Esta situação poderia ter mudado quando as pesquisas efetivamente cientificas tiveram início com os pesquisadores Betty Meggers e Clinford Evans, ainda na primeira metade do século XX. Infelizmente, mesmo que sob outra ótica, os estudos voltados para os caçadores-coletores permaneceram escassos, desta vez sob o argumento de que a Amazônia seria um lugar inóspito para a adaptação humana e de que a presença do ser humano nela seria recente. Para justificar a ocorrência de vestígios materiais de culturas formadas por complexas sociedades, estes pesquisadores afirmaram que elas teriam migrado de outras regiões, como a andina e a caribenha, cujas populações teriam desenvolvido culturas mais sofisticadas.

Portanto, além das origens dessas sociedades não serem nativas, elas não poderiam ter sido o resultado da evolução local de sociedades pioneiras, porque mesmo que elas tivessem existido, não teriam conseguido superar as barreiras naturais representadas pela selvagem floresta tropical.

O INÍCIO DE TUDO

Este quadro começou a mudar a partir da década de 1980, quando diversos sítios com milenares vestígios deixados por antigos caçadores-coletores foram localizados e estudados. Mais surpreendente, foi descobrir que entre os milhares de vestígios descobertos estavam fragmentos de cerâmica e restos vegetais que indicavam atividade humana sobre o ambiente natural.

Ou seja, além do domínio da tecnologia da produção da cerâmica ter precedido as sociedades agricultoras e seu sofisticado artesanato ceramista, a própria domesticação de plantas foi anterior a elas. Assim, tanto as pesquisas de Anna Roosevelt em Taperinha (PA), onde foram encontrados fragmentos cerâmicos com mais de 5 mil anos, quanto as pesquisas de Daniel Lopes, Maura Imásio da Silveira e do autor, em Carajás (PA), onde foram encontrados, entre outros restos vegetais, mandioca com mais de 7 mil anos de idade, mudaram completamente a idéia que se tinha sobre a capacidade de adaptação do homem junto à floresta amazônica.

Paralelamente a essas descobertas arqueológicas, estudos pioneiros da ecologia histórica e da etnociência, desenvolvidos por Darrel Posey junto aos Kayapó e por William Balée, junto às populações tradicionais em geral, mostraram que ao lado de espécies domesticadas/semi-domesticadas, os Kayapó, por exemplo, têm o hábito de transplantar várias espécies da floresta primária para os antigos campos de cultivo, ao longo de trilhas e junto às aldeias, formando os chamados ‘campos de floresta’. Esses nichos manejados foram denominados de ‘ilhas naturais de recursos’ e são aproveitados no dia-a-dia indígena, bem como no tempo das longas expedições de caça que duram vários meses. Eles também demonstraram que a floresta secundária, ao longo de algumas décadas, tende a alcançar a primária, em termos de diversidade. E que essa diversidade, regularmente, é semelhante em número de espécies. Guiados por essas pesquisas, eles concluíram que os povos indígenas devem ter desencadeado esse fenômeno em diferentes partes da Amazônia antes da chegada dos portugueses e alterado, em até 10%, a composição atual da mata.

Essas pesquisas têm revelado que boa parte das florestas atuais, entre elas aquelas até então consideradas virgens, pode ser o resultado do manejo humano (da ação antropogênica) e não da mera evolução natural. Ou seja, parte significativa das paisagens florestais amazônicas seria um artefato cultural; o resultado de uma ação cultural com forte influência na seleção, distribuição e até na evolução de espécies.

Com tudo isto, muito diferente do que se pensava até boa parte da segunda metade do século passado, pode-se afirmar que na Amazônia não só os diversos ecossistemas eram explorados segundo táticas exploratórias adequadas às características ambientais, como inclusive os nativos teriam exercido uma poderosa influência criativa sobre eles e isto, desde o início do Holoceno (uns 12000 anos atrás). Conseqüentemente, os estudiosos passaram a afirmar que parte do que se vê hoje como floresta “primária” é, muito provavelmente, paisagem ‘ecofatual’ resultante do manejo (manipulação humana de componentes orgânicos e não orgânicos do meio ambiente) consciente ou da atividade humana inconsciente, ao longo de milhares de anos.

Para os etnocientistas, o manejo realizado tanto por populações tradicionais indígenas, quanto não-indígenas, pode resultar na seleção cultural de espécies. Para eles, em um ecossistema manejado, algumas espécies podem se extinguir como resultado dessa ação, ainda que o efeito total dessa interferência culmine em aumento real da diversidade ecológica e biológica de um lugar específico ou região. Isto ocorre porque, deliberadamente, são levadas para uma mesma e determinada área de manejo, espécimes provenientes de outros lugares ou que antes se encontravam dispersos num extenso território. Esses estudos também têm atestado o grande cabedal de conhecimento das populações indígenas e tradicionais sobre o comportamento da floresta tropical e, principalmente, sobre a formação de alguns de seus ecossistemas.

Apesar da história da ecologia já ter se consolidado nas etnociências, esses estudos dão atenção apenas às sociedades indígenas ou tradicionais contemporâneas. Entretanto, quando acrescentamos as evidências arqueológicas, o quadro que temos da possível influência humana sobre as paisagens amazônicas vai muito além dos 10% inicialmente propostos. Tal mudança ocorre porque a etnociência, geralmente, estuda comunidades pequenas, onde a interferência sobre o meio é muito inferior àquela produzida por comunidades com grandes populações.

Porém, nos últimos anos, a arqueologia tem provado que grandes populações indígenas viveram, principalmente, ao longo dos grandes rios da região, às margens de suas várzeas, até o período imediatamente anterior à conquista européia. Por conta disto, devemos considerar que o resultado dos manejos, então realizados, pode ter sido muito mais veemente e amplo do que se imagina. Conseqüentemente, muito possivelmente, a seleção e as florestas culturais podem representar, no mínimo, uns 60% da composição atual da floresta úmida amazônica. Esta percentagem está baseada na idéia hoje aceita, de que a população indígena (étnica e culturalmente heterogênea) no passado teria percorrido e explorado quase toda a Amazônia. E também, em evidências de que alguns dos territórios ocupados por essas populações apresentavam grande concentração de aldeias densamente povoadas.

De fato, inventário botânico realizado por Rafael Salomão e pesquisas arqueológicas com as quais colaboro, coordenadas por Vera Guapindaia (ambos do Museu Goeldi) nos platôs da Floresta Nacional Saracá-Taqüera, na margem direita do rio Trombetas e na Reserva Biológica do rio Trombetas, na sua margem esquerda, localizados em Porto Trombetas (Município de Oriximiná/PA), revelaram insuspeitas ações antropogênicas sobre a formação de diversas e extensas paisagens florestais locais. Essas paisagens constituem verdadeiros cenários, construídos ao longo de centenas de anos. Além das evidências (dezenas de sítios) de que esta área foi densamente povoada no passado, as evidências botânicas são concentrações de castanhais com espécimes alinhados, associados ao cacauí (cacau selvagem) e cujas árvores mais antigas alcançam mais de 500 anos de idade. O platô Aviso, por exemplo, possuía uma grande quantidade de árvores frutíferas (em especial, o pequiá, o taperebá e o abricó-do-pará), que servem de alimento para inúmeros animais de caça, principalmente, na estação de chuvas, constituindo assim, uma importante reserva de recursos vegetais e de proteína animal, de fácil acesso e controle.

As evidências também se revelam na heterogeneidade de plantas úteis associadas (comestíveis, medicinais, ritualísticas e para manufaturação) encontradas em concentração no alto dos platôs e cercadas, nas terras baixas, por sítios arqueológicos. Por outro lado, os sítios arqueológicos indicam que a ação humana sobre as paisagens exploradas foi contínua, territorialmente dispersa e coletiva, mas não o esforço centralizado em torno de uma empreitada realizada por uma comunidade em particular.

Estudos ulteriores realizados, entre outros, pelo autor deste texto, já haviam mostrado que esta ação é bastante antiga. Em Carajás (PA), na Gruta do Gavião, que foi ocupada entre 8000 e 4000 AP. (antes do presente) e na Gruta do Pequiá, ocupada desde 9000 AP., a ação antropogênica ficou evidente por conta da presença de plantas (como sementes de mandioca, copaíba e pequiá) encontradas nos restos deixados pelo homem desde 8000 anos atrás. Na Gruta do Pequiá, os restos vegetais foram caracterizados pela grande quantidade de sementes calcinadas, entre as quais predominavam as de Bacaba e Virola, ricas em gordura, geralmente associadas a fogueiras. Elas podem ter servido de combustível, mas a Virola também é alucinogênica e a Bacaba, é uma fonte múltipla de variados produtos

Essas ocorrências não se resumem à Amazônia. No vale médio do rio Porce, Cordilheira central andina colombiana, foram estudadas evidências de sociedades que exploraram as florestas úmidas tropicais das áreas baixas e altas do vale, desde 9500 anos AP. Esses estudos revelaram uma atividade crescente de manejo da vegetação florestal, acentuada a partir de 7500 AP. Foto observado na crescente proporção de plantas de mata secundária em relação às primárias, identificada no refugo arqueológico dos sítios pesquisados. Na mesma região, entre 6500 e 6000 anos atrás, foi registrado o surgimento do cultivo sistemático de milho, de mandioca e de diferentes abóboras.

Por tudo isto, pode-se concluir que o manejo indígena na Amazônia superou barreiras para o crescimento populacional e para a emergência de manifestações culturais de grande complexidade social; que o mundo natural para o homem tropical, antes mesmo dele ter uma identidade cultural formalizada por leis de conduta social, foi uma fonte de instrumentos e utensílios para a predominância da prática na vida diária; que o homem amazônico teve o poder de transformar a cenografia da paisagem, superando e redefinindo barreiras ecológicas; que o homem pode interferir na evolução das espécies fazendo aumentar, em vez de diminuir, a sua diversidade; enfim, que ele é capaz – com vantagem para ambos - de alterar o ambiente transformando-o às suas próprias necessidades e, assim, gerar o embrião do futuro, que é o passado persistindo, mas transformado pelo presente.

TUDO QUE CEDE PRECEDE

Isto nos remete a duas conseqüências muito importantes: uma de ordem das políticas públicas e outra de ordem acadêmica. No primeiro caso, o problema principal está na legislação que orienta e fiscaliza os projetos de reflorestamento, especialmente aqueles relacionados às medidas compensatórias em casos de impactos ambientais negativos, quando uma floresta derrubada deve ser compensada pelo plantio de espécimes nativos. O problema está em que os inventários realizados se atrelam, regularmente, às plantas economicamente reconhecidas no mercado consumidor atual. No entanto, a partir do momento em que se reconhece que a floresta nativa, ela mesma, resultou de uma interferência humana anterior, onde o cardápio de espécimes manejados envolvia um número muito maior do que aquele relacionado às árvores de corte para o mercado madeireiro atual, faz-se necessária a ampliação dos espécimes a serem protegidos, bem como do estudo daqueles cuja utilidade social ainda é ignorada. Portanto, além de engenheiros florestais, todo projeto de reflorestamento de áreas degradas deveria contar com etno-botânicos.

No segundo caso, o acadêmico, o problema é de cunho filosófico e teórico. Sabe-se que a presença do homem no planeta compôs uma miríade de histórias globais possuidoras de intensidades, sentidos e durações espaço-temporais próprias. Além disto, grandes pensadores contemporâneos como Benedito Nunes, afirmam que antes de se apresentarem como seres determinados, mesmo as coisas chamadas naturais ou artificiais, são, antes de tudo, entes disponíveis, instrumentais, no mundo circundante. Isto quer dizer que além de uma natureza particular, essa natureza não é fruto de gerações espontâneas, ela é fruto de uma condição anterior que criou as condições necessárias para que ela viesse a existir. Caso a condição fosse outra, essa natureza também seria outra.

Por outro lado, alguns estudiosos da evolução humana, como Howells e Tattersall, mostraram que o surgimento de novos comportamentos e até de alterações anatômicas não se dão, necessariamente, pela seleção natural, mas também pela emergência de inovações, cujas bases fundamentais já existiam, muito antes delas ocorrerem. Portanto, isto abre margem para que estímulos culturais potencializem tendências naturais configuradas há muito tempo e já amplamente distribuídas na população geral. Desse modo, inovações culturais ocorridas em uma determinada população, podem se disseminar para outras populações com uma rapidez impressionante, visto que todos os indivíduos já tinham desenvolvido as estruturas adequadas para a nova organização cultural.

Isto implica na consideração, antes de qualquer coisa, que só se sucede o que está por vir, desde que não haja qualquer tipo de interferência externa impondo ao que estava sendo, outros modos de vir a ser. As próprias pesquisas arqueológicas na Amazônia constatam, por mais que olhemos para trás, que a história já estava instalada e era vivenciada por homens e mulheres de sociedades simples e remotas, que possuíam muito daquilo que as sociedades complexas nativas posteriores iriam refinar.

Como as populações horticultoras (agricultoras) nativas foram precedidas por populações de caçadores-coletores autóctones, os quais foram os primeiros a se adaptarem aos recursos tropicais amazônicos, foram estes que desenvolveram a capacidade de compreender os seus ecossistemas, manejar o ambiente e domesticar suas plantas. Assim, antes da ascensão das sociedades horticultoras teria existido uma longa duração na formação histórica e sociocultural indígena, cuja complexidade mais tarde alcançada foi fruto de experiências locais milenares e da reorganização sucessiva, mas não linear, de técnicas e práticas culturais originais inauguradas por populações ancestrais de caçadores-coletores nativos.

Em resumo, compreende-se com isto, que muito antes das sociedades agricultoras se instalarem nas terras baixas Amazônicas, estas já haviam sido percorridas e exploradas por caçadores-coletores e ou pescadores nômades, milhares de anos antes, os quais, lançando mão de observações refinadas sobre o ambiente, desenvolveram técnicas e relações sociais regionalmente adequadas. Foi a maneira pela qual eles organizaram suas relações sociais nos ambientes nos quais viviam e exploravam, que traçou o rumo sociocultural subseqüente. E foram essas sociedades originais, tropicais, de economia não especializada e de grande mobilidade social e mais nenhuma outra, que criaram as condições necessárias para o surgimento de diferentes sociedades bem mais complexas e diversas (culturalmente distintas), que as sucederam no tempo e no espaço. Desse modo, a variabilidade na organização social das comunidades complexas evoluiu a partir do conjunto de comunidades regionais tropicais, com pouca variação organizacional.

Para consulta:

ADANS, C. As Florestas Virgens Manejadas. Belém. Bol. do Museu Paraense Emílio Goeldi; Série Antropologia, vol.10, no 1, 1994.

DIEGUES, A.C.S. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.

ESPITIA, N.C. & ACEITUNO BOCANEGRA, F.J. El Bosque Domesticado, el Bosque Cultivado: um proceso milenario em el valle médio del rio Porce em el noroccidente colombiano. Latin American Antiquity, 17(4), pp. 561-578. 2006.

MAGALHÃES, Marcos P. A Phýsis da Origem: o sentido da história na Amazônia. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 2005.

PAPAVERO, N. & TEIXEIRA, D. M. Os Viajantes e a Biologia. História Ciência e Saúde. Manguinhos, Vol. VIII (Suplemento). Pp. 1015-37, 2001.

PIPERNO, D. & DEBORAH PEARSALL. The Origins of Agriculture in the Lowland Neotropics. New York, Academic Press, 1998.

Onna Agaia
Enviado por Onna Agaia em 19/05/2008
Reeditado em 28/03/2012
Código do texto: T996362