LUÍS VAZ DE CAMÕES. Expressão maior da lusofonia

                              Sérgio Martins Pandolfo

"Cantando espalharei por toda parte/ se a tanto me ajudar o engenho e arte"
                      Os Lusíadas, I, 1


Tão marcante e marcada foi a obra literária desse genial poeta, com o ápice centrado no seu inexcedível épico – Os Lusíadas – que conseguiu, a um só tempo, assim a elevação do padrão literário da Língua Portuguesa, como, inflamando os brios da nacionalidade lusitana, ao cantar-lhe os valores, os feitos e as conquistas, em gesto mais que singular, a escolha, pelo povo português, do dia de sua morte – 10 de junho de 1580 – como data magna nacional, o Dia de Portugal.
A vida desse flamejante cinzelador da Língua Portuguesa permanece envolta em mistérios e indefinições, que a insipiência histórica deixou sem respostas e a pátina do tempo fez obscurecer.
Há incerteza sobre o local de seu nascimento: Coimbra? Lisboa? Mesmo Santarém e Alenquer reivindicam tal privilégio. É também incerta ou imprecisa a feita de sua vinda ao mundo, fixada pelos pesquisadores, como mais provável, entre janeiro e fevereiro de 1524. Descendente de família fidalga, mas decadente, foram seus pais Simão Vaz de Camões e Ana de Sá e Macedo. Camões passou a infância e adolescência em Coimbra, onde teria feito os “estudos menores” no Mosteiro de Santa Cruz, aprendendo latim, filosofia e letras vivas. Teria (??) mesmo frequentado sua afamada Universidade, não se sabendo precisar, entretanto, se chegou a concluir os estudos, transferindo-se mais tarde para a capital, onde passou a conviver e ter acesso à Corte de D. João III. Em 1547 partiu para Ceuta, a fim de fazer a guerra, onde teve a vista direita vazada em refregas contra os mouros. Três anos passados regressa a Portugal e se entretém em duelos e rixas, ferindo, numa dessas escaramuças, um servidor do Paço, o que lhe valeu um ano de prisão, tempo em que escreveu o primeiro Canto d’Os Lusíadas, obtendo depois o régio perdão.

Em 1553 segue para Goa, no navio São Bento, da armada de Fernão Álvares Cabral, filho do descobridor do Brasil, familiarizando-se, na viagem, com as durezas da vida do mar; chegado ao destino, participa de várias expedições militares, nas quais se houve, sempre, com valentia e coragem. De Goa vai para Macau, nomeado para exercer o cargo de “provedor-mor de defuntos e ausentes”, onde teria escrito mais seis Cantos de seu poema maior. Chamado de volta a Goa naufragou nas costas do Camboja, junto à foz do rio Mekong, nadando, segundo míticas versões, com um só braço, tendo no outro, erguido acima dos vagalhões, os manuscritos de sua primorosa epopéia.
Chegado a Goa é novamente preso por acusações caluniosas que lhe foram imputadas - “mexericado de amigos”, como o declarara a Manuel Corrêa -, conseguindo depois justificar-se e recobrar a liberdade, mas passa por grandes aperturas financeiras e frustrações laborais, mantendo-se em pungente penúria, quando finalmente regressa a Portugal, com escala em Moçambique, onde se demorou entre dois a três anos -- há imprecisão acerca desse estágio -- e onde Diogo do Couto, seu grande admirador e biógrafo o foi encontrar “tão pobre que comia de amigos”.
Passado esse desterro volta a Lisboa, em 1569 ou 1570. Estivera longe da Pátria querida por longos 17 anos; anos de perigos e de dor; de penúrias e doenças; de naufrágios e feridas; de abandono e desespero; de tristezas e saudades; uma vida infeliz, levada “pelo mundo em pedaços repartida“. Em 1572, mercê de ingentes esforços e pedidos obsequiosos, consegue fazer sair a lume a 1ª edição de Os Lusíadas, após o que logrou conseguir de el-rei D. Sebastião uma tença anual de 15 mil-réis, durante três anos, "por habilidade e sofficiencia das cousas da India".
Seus últimos tempos de vida foram fundamente amargurados por doenças e miséria. Relatam-nos histórias lendárias que um seu escravo javanês, trazido da Índia, o salva da morte por inanição famélica, indo esmolar, à noite, para ele - que desconhecia o fato --, nas ruas de Lisboa. Em 10 de junho de 1580, vitimado pela "peste grande" que assolava a capital, exalou seu último e angustiado suspiro, em miserável enxerga, abandonado e amargurado com os rumos que antevia para sua amada terra - a perda iminente da soberania, ao saber que os exércitos de Felipe II, postados em Badajós, aprestavam-se para invadir Portugal. “Ao menos morro com a Pátria”.
Uma das maiores cerebrações que a Humanidade produziu, em todos os tempos, era ele, à sua época, notável conhecedor das ciências, de História, Geografia, Cosmografia, Mitologia, humanidades clássicas e de literatura geral. Escrevia em castelhano, latim e italiano, além do português e, consta, dominava o grego, o que lhe permitia fantástico malabarismo vocabular, que alimentava sua genial capacidade de criação poética. Seus poemas espelham, fidedignamente, a alma portuguesa em todas as suas feições, que soube retratar como ninguém: sonhadora e amorosa, espírito aventureiro, índole belicosa, conquanto sensível, entusiasmo e arrebatamento.
O grande vate criou um estilo próprio, servindo-se de verdadeiro idioleto poético, com o qual remodelou a língua com formas elegantes, eruditas e marcantes, que ainda hoje são admiradas e estudadas, elevando-a ao mesmo patamar que ocupavam as línguas de maior relevo. Anteriormente a Camões, o idioma português não havia conquistado o status de língua literária que o fizesse rivalizar com as línguas cultas de então. Coube a ele, com engenho e arte, a subida glória de fazê-lo, conferindo-lhe a dimensão de língua erudita e de prestígio. “Antes dele, a língua portuguesa não tinha perfil nacional. Era pouco mais que um dialeto peninsular.” (Alves da Silva).
Quase todos os principais fatos de sua vida seguem sendo enigmáticos. Nada se sabe ao certo. Quem teria sido a inspiradora de sua paixão maior: D. Catarina de Ataíde ou a Infanta D. Maria? D. Francisca de Aragão ou a freirinha sem nome que ele idolatra em versos de amor platônico? Ou, ainda, aquela meiga chinesinha, Dinamene, que, a lenda diz, acompanhava o poeta na gruta à beira-mar, em Macau, onde teriam sido escritos muitos versos dos dez Cantos de sua insuperável epopéia?
Esse gênio de iluminada inteligência foi um dos mais notáveis intelectuais do Renascimento e seu opus magnum sobrepaira bem acima do lugar-comum literário de seus coetâneos, alçado ao mesmo nível em que se situam a Ilíada e a Odisséia, de Homero; a Eneida, de Virgílio; A Divina Comédia, de Dante Alighieri; Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, Orlando Furioso, de Ariosto, e outros. Desse épico inigualável já se disse ter dois únicos defeitos: não ser pequeno o suficiente para ser facilmente memorizado e declamado de um só fôlego, em única sessão e não ser longo o bastante para ser mais demoradamente apreciado, prolongando o prazer de o degustar.
Sua genialidade está patente em inúmeras passagens d’Os Lusíadas, como naquela descrição precisa e preciosa que faz do Continente Europeu para situar o seus país, a Lusitânia, “onde a terra se acaba e o mar começa”. Ou na transfiguração da nuvem na figura aterradora, desmesurada e disforme do gigante Adamastor, com a face humana a simbolizar o Cabo das Tormentas, vociferando ameaças aos argonautas portugueses que o haviam transposto. Ou, ainda, ao enunciar a invejável posição de domínio que Portugal ostentava sobre as terras do mundo de então, as que eram conhecidas e que se julgava finitas, pois “se mais mundo houvera, lá chegara.” “Os Lusíadas foram no tempo o epitáfio de uma Pátria e hoje constituem a Bíblia dela”.
Camões dominou todas as formas literárias - em que pese o fato de ser conhecido tão-somente, quase, por sua obra magna, sendo de ressaltar três autos de expressiva saliência: El-Rei Selêuco; Os Anfitriões e Filodemo, nos quais ironizava - e até ridicularizava, os costumes e a dissolução imperantes nas cortes européias. São de sua privilegiada lavra, também, grande número de elegias, sátiras, poesias heroicas e sonetos, esta última, forma poética que ele dominava como ninguém. Alguns de seus sonetos são considerados como verdadeiras obras-primas. Camões amargou, ademais, a suprema desdita de ver surrupiada a matriz de sua obra lírica Parnaso, "livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe furtaram, e nunca pude saber no Reino dele, por muito que o inquiri". (Diogo do Couto).
Não é à toa que o Poeta é considerado “um dos cumes mais altos da criação cultural da Humanidade” e tido como “a maior figura da língua portuguesa de todos os tempos”. Dele, ademais, disse Schlegel: “Camões vale toda uma literatura”. "Filho legítimo do Renascimento e humanista dos mais doutos e distintos do seu tempo", assevera Wilhelm Storck.
O vate-mor viveu sempre "Em perigos e guerras esforçado"; por isso que em sua obra Rhythmas (Rimas) assenta: "Numa mão sempre a pena e noutra a espada".
À parte Os Lusíadas, lastimavelmente - para ele, decerto, dolorosamente - quase toda a produção camoniana só veio a ser publicada post mortem. Como sói acontecer com quase todos os vultos notáveis da Humanidade, que, por sua privilegiada genialidade viveram à frente de seu tempo, e só são reconhecidos e cultuados por seus pósteros.
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Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 29/04/2009
Reeditado em 06/01/2012
Código do texto: T1567399
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