CENTENÁRIO DO POETA ANTÔNIO TAVERNARD

                                                            Sérgio Martins PANDOLFO*

      "Grandes homens suportam grandes dores, os maiores transformam a dor em poesia". Benilton Cruz

            No passado mês de outubro de 2008, em meio à passagem alegre, festiva, conquanto piedosa e contrita, de mais um Círio de Nazaré, verdadeira procissão-Boiuna por sua grandeza e características, comemorou-se o centenário de nascimento de Antônio Tavernard, poeta paraense de magna expressão, que nos legou obra marcada pela beleza e sensibilidade, assim em prosa como em verso, e na qual podemos reconhecer, de forma permanente, a resignação, a conformação ante a dor que o abateu tão precocemente.
          Sua notória e reconhecida importância para as letras paraenses e mesmo nacionais foi decisiva para a escolha de seu nome como patrono da XII Feira Pan-Amazônica do Livro, efetivada de 19 a 28 de setembro de 2008 no Hangar-Centro de Convenções e Feiras de Belém.
          Poeta, contista, romancista, jornalista e teatrólogo, Antônio de Nazareth Frazão Tavernard -- Toni para os íntimos -- nasceu na antiga Vila do Pinheiro, hoje Icoaraci, município de Belém, em 10 de outubro de 1908 (daí o Nazareth de seu nome, homenagem à Virgem de Nazaré, padroeira do torrão parauara e “Rainha da Amazônia”), em singelo chalé que ainda lá permanece, embora em precárias condições de conservação, como que a querer perpetuar a memória do poeta, e faleceu na capital paraense em 02 de maio de 1936.
           Segundo filho de uma prole de oito irmãos, dos quais a primogênita faleceu em tenra idade, Toni teve existência breve e amargurada, pois, muito jovem, quando cursava o 1º ano do Curso de Direito, foi acometido pela hanseníase, à época devastadora, estigmatizante, incurável.
           Foram seus pais o piauiense Otílio de Alencar Tavernard, jornalista, homem de letras, funcionário aposentado de nossa secular Santa Casa de Misericórdia e redator d’A Província do Pará e Marieta Frazão Tavernard, paraense, de família tradicional.
Vendo-se enfermo se impôs vida reclusa, fugindo do contacto das pessoas, passando a residir nos fundos da casa de seus pais (que à altura já se haviam deslocado para Belém, fixando-se em confortável moradia de estilo português - batizada de Retiro São Benedito -, edificada em terreno existente na confluência das avenidas Generalíssimo Deodoro e Conselheiro Furtado, hoje ocupado pelo edifício homônimo dessa última artéria), em tosca habitação para ele erigida, à qual denominou Rancho Fundo, em que poucos fiéis e dedicados amigos - além dos familiares - participavam de seu convívio, em memoráveis tertúlias lítero-musicais.
           “Tavernard escreveu místico porque viveu místico. Poderíamos também acrescentar, escreveu sofrido porque viveu sofrido, mas nunca se limitou à dor. O que é mais bonito é que sua poesia extrapola a dor e encontra na alegria sua expressão.”, a replicar Benilton Cruz, doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP e professor da UFPA.
           O drama da enfermidade fez-lhe amadurecer precocemente o talento, daí porque, mesmo assim, no isolamento forçado, tivera profícua vida literária, dessa época provindo suas obras mais elogiadas. Sim, foi lá naquele tugúrio de um fundo de quintal suburbano, daquela Belém viçosa e buliçosa do dealbar do século passado, em que carpiu estoicamente sua infernália terrestre, que o bardo paraense fez vir à luz sua obra literária mais robusta, consistente, enternecedora, na qual, ao primor estilístico associam-se a limpidez e correção da linguagem, que o fizeram um dos maiores, se não o maior, poeta destas plagas parauaras. Melhor ainda: “Tavernard prova que não devemos falar em autor paraense. Ele está diretamente ligado ao melhor das letras brasileiras. Ele é um grande escritor nacional. (...) Ele não deve nada a nomes como Raul Bopp, por exemplo”, assevera Walkíria das Mercês, professora de literatura e também poetisa. Produziu poesia, teatro, conto e crônica. Ali escreveu, assinala Georgenor Franco, “as mais belas e primorosas páginas de literatura, vazadas, todas, num estilo todo seu, próprio, personalíssimo”.
           O Pequeno Príncipe da poesia parauara, um mestre do verbo e do verso, que nos legou imensa e imorredoura obra em prosa e poesia, ao ponto de o compararem com o “bruxo do Cosme Velho”, humilde retrucava: “Com uma diferença: menos talento e mais sofrimento”. Sofrimento do qual faz menção nestes versos: “Cada um dá o que tem! / Ah! Que verdade!.../ A vida deu-me a dor, eu dou-lhe versos...”
           Na apresentação de “Obras Reunidas”, editado pelo Conselho Estadual de Cultura (1986), a Profª. Maria Anunciada Chaves assim se expressou: “A angústia inundou o coração e a alma do poeta, mas não a venceu. (...) Antônio Tavernard refugiou-se em seu talento criador, e escreveu incansavelmente.” Aqui, uma vez mais, cabe aduzir o pensamento de Walkíria das Mercês, para quem “Ele já era um grande poeta antes de ficar enfermo. A doença trouxe um comprometimento físico apenas. Sua poeticidade foi maior que tudo”.
           Aos 19 anos ganhou o 2º lugar em concurso de contos instituído pela revista Primeira, da antiga capital federal. Em Belém foi redator-chefe da revista A Semana. Suas poesias eram publicadas em jornais belenenses e cariocas. Todavia, em vida não logrou organizá-las em livro, cabendo ao acadêmico Georgenor Franco, em 1953, reuni-las em volume a que denominou Místicos e Bárbaros. Similitudes, uma de suas peças poéticas mais conhecidas e reputadas, em que evoca ter nascido “em frente ao mar” e a ele se faz comparar (na verdade o rio para o qual sua casa, em Icoaraci, estava voltada), está aí inserida: “Nasci em frente ao mar./ Meu primeiro vagido/ Misturou-se ao fragor do seu bramido./ Tenho a vida do mar!/ Tenho a alma do mar! (fragmento).
           “Poeta da gente humilde, de sua terra, sua imaginação adquiriu um conteúdo humano e emocional, poucas vezes conseguido por qualquer outro poeta paraense: plásticos, espontâneos, contendo sonoridade e ritmo, seus versos, inspirados no folclore regional, são uma síntese da emotividade cabocla.” (Rocque, C.). O consagrado compositor paraense e nacionalmente aplaudido, Waldemar Henrique, musicou seus poemas, tornando-os, destarte, conhecidos em todo o País, através de belas canções, de que são exemplos: Foi Boto, Sinhá; Matintaperera; Tem pena da nega; Fim de carnaval; Louco de Amor.
           Publicou um livro de contos aos 22 anos: Fêmea. Um segundo livro, Vozes Tropicais, ficou inédito. Entre as peças teatrais que escreveu foram encenadas: A Menina dos 20.000, de parceria com Fernando Castro, publicada em 1930 e levada à ribalta do extinto Palace Teatro, em 1931, musicada por Mendo Luna; A Casa da Viúva Costa; Parati; Seringadela e Que Tarde!
           Tavernard era apaixonado torcedor do Clube do Remo, para o qual dedicou algumas de suas poesias e escreveu crônicas de exaltação e, inclusive, o Hino do clube, que assim inicia: “Atletas azulinos somos nós/ e cumpriremos o nosso dever/...” Uma curiosidade: Tavernard veio ao mundo somente três anos após a fundação do glorioso Clube Remo (1905).
           Sua efêmera vida terrena não impediu que fosse incluído no rol dos grandes nomes da poesia paraense - e mesmo nacional -, graças à privilegiada sensibilidade artística, inteligência e inspiração poética. Em suas próprias palavras:
“Sol doente, sol de agosto/morrendo como uma flor/eu também sou um sol-posto/no ocaso da minha dor”.


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(*) Médico e escritor. SOBRAMES/ABRAMES.
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 29/05/2009
Reeditado em 19/07/2011
Código do texto: T1621479
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