DE JORNALEIRO A JORNALISTA - uma história de vida (ficha técnica e a Infância)

MANAUS, 1969

Manaus era uma cidade provinciana, quando foi implantado modelo de desenvolvimento Zona Franca de Manaus moldado no tripé Indústria, Comércio e Pecuária. A cidade era muito pequena e não tinha mais do que 300 mil habitantes. Terminava na Avenida Boulevard Álvaro Maia. Depois, onde hoje fica uma Usina de Energia Elétrica, no início do que é hoje a Avenida Djalma Batista, tinha o “Seringal Mirim”, assim chamado em razão das inúmeras seringueiras nativas que lá existiam.

A estrada João Coelho, depois estrada de Flores e hoje Avenida Constantino Nery, era a maior rua em extensão. Não havia a Avenida Djalma Batista, nem o Amazonas Shopping Center. Existia uma grande e bela área de balneários, o mesmo ocorrendo com a Estrada do Contorno, projetada pelo prefeito Paulo Pinto Nery.

A área onde hoje está localizada a Avenida Efigênio Salles exibia balneários naturais, resultado da passagem do Igarapé do Mindu por toda a sua extensão. Não havia piscinas; no máximo, algumas águas represadas para as pessoas tomarem seus banhos. Havia o “Balneário do Parque 10 de Novembro”, o “Guanabara Clube de Campo” (o único que resiste até hoje), o “Tucunaré Clube de Campo”, o “London Clube de Campo”, o "Jacundá Clube de Campo”. Os outros todos ficaram poluídos

A Zona Franca estava começando. O projeto de sua criação, aprovado 10 anos antes pelo deputado federal Francisco Pereira da Silva, dava os primeiros passos em direção ao que é hoje o polo Industrial de Manaus (PIM). A sede da Suframa – Superintendência da Zona Franca de Manaus - tinha lugar onde hoje funciona hoje a sede do Sebrae.

Circulavam poucos ônibus em Manaus. Funcionavam a “Ana Cássia”, “Viação Demétria”, agregada à “Ana Cássia”, “Viação Bons Amigos”, “Viação Nosso Transporte” e “Viação Monte Ararate”, com regularidade. Também havia umas kombis, chamadas de expressinhos, que atendiam nas áreas dos bairros de São Raimundo, Glória e proximidades.

A cidade era entrecortada de igarapés e o maior movimento era feito pelas catraias: do Morro da Liberdade para o bairro da Cachoeirinha; do Educandos para o centro da cidade; da Aparecida para o São Raimundo etc. Os remadores tinham que ter braços firmes para transportar as pessoas. Quase não existia ponte ligando essas áreas.

O empresário colombiano Alonzo Puertas Baptista decidiu abrir o primeiro bar gay de Manaus, na Estrada de Flores, de nome “Patrícia Bar”. Causou um escândalo na cidade. Mais escândalo ele promoveu quando anunciou pela imprensa que iria escolher a Primeira Rainha Gay de Manaus. Durante o baile, a mesma sociedade que o criticou no início, estava presente para prestigiar seu carnaval.

O Km 0 de Manaus ficava ao final da Avenida João Coelho, onde funciona hoje um quartel do Corpo de Bombeiros, antes da Estrada dos Franceses, que também não existia.

Surgiu, mais tarde, o bordel Saramandaia, na Avenida Torquato Tapajós, continuação da Avenida Constantino Nery.

Cheguei a Manaus nesse ano, embora tivesse nascido em 1960, no bairro do Morro da Liberdade, em Manaus, e ido morar na comunidade do “Varre-Vento”, um distrito do município de Itacoatiara.

Vim em busca de estudos. Comecei a estudar aos sete anos, na escola improvisada na casa de minha tia Terezinha da Costa Amaral, onde aprendi o básico. Já sabia ler, escrever e fazer pequenas operações matemáticas. Como quase toda criança tinha sempre uma madrinha que residia em Manaus, vim em busca dela, sozinho.

Minha mãe, Josefa Bezerra da Costa, costurou para mim uma bermuda de tergal marrom com dois bolsos na parte de trás. Meu pai, Paulo Torres da Costa, construiu para eu transportar minhas poucas coisas, uma maleta em madeira, com uma chave:

- É para você não ser roubado dentro do motor, enquanto estiver dormindo!

Também minha mãe teve o cuidado de me fazer aprender a comer com garfo e faca:

- É para você não passar vergonha dentro da embarcação.

Desembarquei no Cais do Porto com o endereço de minha madrinha Natércia, anotado no bolso da bermuda da pessoa cuja casa me serviria de abrigo. Mas, antes, fiquei olhando para as calotas dos carros. Eu me via nelas de uma forma meio esquisita, dependendo da distância que eu olhava.

Decidido, entreguei o endereço ao motorista do táxi e ele me disse que conhecia o local.

Assim, cheguei à casa da minha madrinha, decidido a estudar. Matriculei-me no Grupo Escolar Adalberto Valle, onde tive minha primeira paixão platônica por Claudine, filha de um Oficial de Justiça. Eu a julgava muito linda. Mas ela nunca soube disso. Eu era muito tímido para revelar-me. Ao concluir as quatro primeiras séries, fui transferido para o Colégio Dorval Porto.

Durante meus estudos no Colégio Dorval Porto, convivi com algumas pessoas que marcaram a minha vida. Uma delas foi uma professora de biologia, Letícia Barbosa de Moraes, colecionadora dos livros “Grandes Romances Históricos”, com vários autores e títulos: “Nossa Senhora de Paris”, “Ivan, o Terrível”, “Corcunda de Notre Dame”, “Madame Bovoari”, “Salambô” “Os Miseráveis”, “Nossa Senhora de Paris” e muitos outros romances clássicos. Também convivi com os professores e professoras.

Do outro lado da rua, quase em frente ao Grupo Escolar “Adalberto Vale” existia o “Batuque da Mãe Zulmira”. Nós olhávamos pelas frestas das paredes para saber o que acontecia lá dentro. Não tinha nada demais. Era só o barulho dos atabaques e umas pessoas “pegando santo”. Os ônibus tinham no local a sua estação. Comecei a publicar os meus primeiros poemas infantis, quase sempre sem muito sentido, no jornal mural “Pirilampo”, uma publicação interna do Grupo Escolar onde comecei e conclui meu curso primário.

Corria, no Morro da Liberdade, em pistas sem asfaltos e cheias de pedras, puxando “carros” feitos com latas de leite e também imaginando serem carros os aros de bicicleta e pneus velhos de carros que, para controlá-los, dobrava um arame ao ponto de fazer um apoio lateral e os empurrava, com meu amigo de infância João da Silva Couto, que sempre me acompanhava nessas brincadeiras. Às vezes, amarrávamos até quatro latas vazias de leite e dizíamos que era um “carro compactador”.

A casa de minha madrinha era ótima, mas tinha um problema: eram muitos filhos, o Doca, Chaguinha, Manoel e mais uns seis. Sabia que ela não teria como me sustentar; pois, meu padrinho, Francisco Januário Calado, era apenas tratorista no Departamento Estadual de Estradas e Rodagens, que fazia diretamente todas as obras do Governo da época. Decidi, então, adquirir uma caixa de picolé e ir vendê-los. No início vendia poucos, depois fui aumentando, aumentando até o peso que eu suportasse carregar. Vendia-os fora do horário dos meus estudos, até começar a anoitecer.

Foi uma vida feliz, recheada de muitos acontecimentos. Não havia violência, mas havia as “racinhas”, que eram grupos de colegiais que brigavam no meio da rua, uma escola contra a outra. Não havia o uso de armas, só os dois chefes das “racinhas”, escolhidos entre os mais fortes e determinados. Os outros, ficavam só em volta, olhando. Terminada a “batalha”, cada grupo saía para o seu lado. A luta terminava ali. Como as “racinhas” eram entre colégios, havia algumas que ficaram famosas em suas lutas: as do Colégio Pedro II, o ‘Estadual’, contra a Escola Técnica, por exemplo.

No bairro do Morro da Liberdade, como não havia água encanada, só no da Cachoeirinha, tínhamos que atravessar de catraia para ir buscá-la. Um depósito, tipo galpão para beneficiamento de açúcar, com várias torneiras vindas de um poço artesiano (coisa que quase não existia naquele ano de 69), e de lá, todos os finais de tarde, eu e alguns filhos da minha madrinha, apanhávamos água para beber, mas tínhamos que caminhar um pouco dentro do mato até chegar ao local para pega-la.

Estudando pela manhã e vendendo picolé à tarde, fui levando minha vida e ganhando meu dinheiro. Durante meus estudos no Colégio Dorval Porto, aos 11 anos de idade, decidi vender jornal. Acordava todos os dias às 4h da manhã, tomava um copo de Nescau com pão e ovo, pegava o primeiro ônibus às 04h30min, ainda com muito frio, devido à grande umidade, e ia para o trabalho. No colégio Dorval Porto, fiz amizade com a professora de inglês Alice Fabrício da Silva, que me incentivou muito a publicar meu primeiro e único livro de poesias, (Des)Construção..., em 1978, reeditado 20 anos depois pelo projeto “Valores da Terra”, desenvolvido na gestão da Secretária Municipal de Cultura, Lívia Mendes.

Já adolescente, frequentei muitos cinemas de Manaus. Começava sempre pelo Cine Guarany, às 12h, na primeira sessão e só chegava em casa à noite, depois de ter passado pelos cines Polytheama, Vitória, Éden, Odeon, Avenida, Palace e Ipiranga, na sessão das 20h.

Sempre, eu e meus amigos da Escola primária, freqüentávamos os cinemas; havia a ilusão de classificar a virgindade de uma moça pelo uso das calças: se tivesse as pernas muito afastadas uma da outra, devido o quadril largo, dizíamos que ela não era mais virgem; se ela usasse calça de lycra colada ao corpo, mas não tivesse o afastamento, “essa era a virgem”.

Gostávamos de assistir aos filmes que, em média, demoravam 30 dias em exibição: “Tarzan”, “Mil Máscaras” “Mini Maciste”, “Sabata”, “Django” e outros. De todos, o que mais apreciávamos mesmo era de “Tarzan”. Costumávamos brincar: “eu queria ser forte que nem o Tarzam”. Todos os cinemas, Guarany, Polyteama, Vitória, Edem, Odeon, Pálace, Avenida e outros que não lembro os nomes, pertenciam a família de Adriano Bernardino.

De tanto assistir ao filme “Tarzan contra as Amazonas”, tínhamos decorado as cenas e as falas. Certa vez o cinema, estando cheio de pessoas para assistir o mesmo filme de “Tarzan”, em uma cena em que ele corria por uma ponte de corda fugindo das índias e parava, olhando para trás, gritávamos em coro: “Tarzan!”. Quando ele olhava, como se estivesse olhando para a platéia, todos riam ao mesmo tempo.

Na televisão, gostava de ver filmes, como os de “Daniel Boone”, com Fess Parker, seu companheiro índio Mingo, sua esposa Rebeca e seus dois filhos. Também assistíamos aos filmes de “Zorro”, em capítulos. Ao final do capítulo, anunciavam: “O que vai acontecer amanhã ao Zorro! Não percam o próximo capítulo, neste mesmo horário, neste mesmo canal!”. Ficávamos grudados no horário para não perder um só capítulo. Havia, também, os filmes de Batmam, Rintintim e Zorro, em capítulos e muitos outros.

Durante meus estudos na nova escola, nutri uma outra paixão platônica pela aluna da minha sala, Maria Farias de Souza, mas ela nunca soube disso porque eu só vivia “agarrando” outras alunas. Escrevia o nome dela na porta dos banheiros, nas carteiras escolares ou em qualquer outro lugar que julgasse conveniente. Com a Claudine, não cheguei a esse ponto.

Foi quando surgiram umas garotas no colégio, que eu as chamava de “Turma da Gatolândia”. Muitos fatos interessantes aconteceram com elas. Todas procuravam a nossa turma porque queriam fazer apenas sexo. Numa oportunidade, o colega de sala Luiz Eron Castro Ribeiro pegou uma delas, a levou para os fundos da escola e começou a fazer sexo com a menina, em pé. O nosso professor de Matemática, Manoel Veríssimo, entrou com o seu carro no estacionamento que havia aos fundos da escola e viu o Eron com a menina, mas nada comentou.

A rua onde fica o colégio era escura demais. Ao lado do prédio havia um matagal, entrecortado por caminhos que só nós conhecíamos. Ao final das trilhas, colchões que usávamos para praticar sexo com mais conforto. Nenhum dos nossos amigos tinha dinheiro e nem tempo para ir ao motel porque esses fatos aconteciam no horário do nosso recreio, quando podíamos deixar a escola.

Eu e meu irmão Roberto estávamos a fim de uma moça que trabalhou em nossa residência, Ernestina. Ela dormia em uma rede em frente ao quarto do pai. Um dia, combinei que passaria parte da noite na rede dela. Ela tirou toda roupa e me esperou nua. Na hora em que cheguei e a acordei, no escuro, ela perguntou:

- Quem está aí, é o Roberto ou o Carlos? Respondi que era eu e entrei. O punho da rede não agüentou, quebrou e caímos no chão. Meu pai levantou, acendeu a luz e foi ver o que tinha acontecido. Como eu dormia em rede, mas do outro lado da casa, foi até mim e avisou:

- Ainda bem que fui eu quem acordou. Se fosse tua mãe, ias apanhar dela.

Eu estava fingindo que estava dormindo, coberto com o lençol da cabeça aos pés.

Um outro professor nosso da escola, que ministrava aulas de música, Werner Petrollius, costumava freqüentar um bar cheio de quartos que existia próximo de nossa escola. Em toda prova, ganhávamos nota 10, na maioria das vezes, mesmo quando escrevíamos bobagens. Um dia, fiquei curioso com isso. Fui até o bar que o professor freqüentava e vi quando ele entregou as provas para uma das mulheres que trabalhavam no local corrigi-las. Ela as jogou para cima e as pegou no ar. Estas foram corrigidas, com todo rigor, pelo professor. As outras mereceram notas dez.

Depois de concluir a 8ª série no Dorval Porto, matriculei-me no Gymnásio Amazonense Pedro II. Já não vendia mais jornal. Mas passei a lavar carros, engraxar sapatos, vender bolachas recheadas em motores e vender cascalho em tambor, batendo um triângulo para chamar a freguesia.

Ao concluir apenas o primeiro ano do segundo grau, a “pedido” da orientadora educacional Terezinha Mangabeira, passei a estudar no Instituto de Educação do Amazonas (IEA), onde conclui meu curso de magistério para dar aulas de 1ª a 4ª séries.

Escrevi “a pedido” da orientadora, mas as coisas não aconteceram bem assim. O certo era eu escrever assim: com medo de ser expulso do colégio antes de concluir o meu primeiro ano do segundo grau, me transferi para o IEA. Não é que eu fosse danado ou bagunceiro; eu era muito contestador, numa época que ainda existia o Decreto Nº 288, do Regime Militar. Esse Decreto autorizava a expulsão de qualquer aluno que contestasse professores, criasse problemas em sala de aula ou fosse subversivo, fato que impediria o aluno de ser matriculado em outra escola.

No IEA, não foi muito diferente. O diretor Rozendo Neto, dizendo que eu era um subversivo, só porque usava cabelo grande e barba no rosto, queria sempre me expulsar. Acho que fui o único aluno que conseguiu estudar em todas as salas do segundo andar do colégio, sem ser expulso, graças à intervenção sempre providencial do nosso psicólogo e orientador educacional, professor Glaucimar.

carlos da costa
Enviado por carlos da costa em 05/03/2010
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