Um Poeta e seu ofício

João Sapateiro nasceu e viveu boa parte da juventude na cidade de Riachuelo. Na adolescência, teve rápida passagem por Aracaju, mudando-se, logo depois, para o município de Laranjeiras.

Uma vida inteira de dificuldades não impediu João Silva Franco de ser conhecido como um dos maiores artistas já nascidos em Sergipe. Ele trabalhou em engenho de açúcar na infância e virou engraxate em sua passagem por Aracaju. Mas foi o município de Laranjeiras que o acolheu. Lá, João passou a escrever poesias paralelamente à atividade de sapateiro, tornando-se, assim, o João Sapateiro, personagem conhecido e ilustre morador da cidade.

João Silva Franco trabalhou duro para sobreviver. Negro, quase dois metros de altura, teve a vida marcada pelo sobrenome postiço. Profissionalizou-se como sapateiro, remendando o couro, trocando o salto, pondo meia sola nos sapatos da população, independentemente do poder aquisitivo de cada pessoa. Quem podia, é claro, comprava sapato novo, em Aracaju, ou em outra qualquer cidade do País. Mas, quem tinha dinheiro curto, e queria fazer bonito na festa de São Benedito, que é colada na festa de Santos Reis, encerrando o ciclo natalino, entregava seu sapato velho a João Sapateiro, estabelecido nas cercanias do Mercado Municipal. Discreto, mas de boa conversa, o sapateiro exibia na sua oficina de trabalho, folhas de papel pautado, repletas de palavras escritas em letras de forma, fixadas nas paredes e nos poucos móveis do seu canto laboral. Eram trovas, pequenos e longos poemas, que surpreendiam a freguesia. João Silva Franco passou a ser conhecido como João Sapateiro, e reconhecido como o sapateiro poeta.

O pequeno espaço de trabalho de João sapateiro foi, em Laranjeiras, um ponto de encontro, um daqueles lugares que reúne as pessoas para uma conversa animada. Farmácia e barbearia, no interior, terminam sendo locais atrativos, onde são formados grupos para as conversas, passando em revista os assuntos dominantes da cidade. Em Laranjeiras o Cartório de Antonio Gomes, a alfaitaria de Graquinho, e a oficina de João Silva Franco, ao lado da farmácia de Antonio Rollemberg, se constituíram em locais especiais, que assitiram a decadência econômica e cultural da cidade, sentindo o êxodo dos mais novos, que saíam para estudar, e o desaparecimento dos mais velhos, arrancados da vida. Quando morreu Bilina, Laranjeiras chorou e o toque do Patrão da Taeira silenciou, até que Maria de Lourdes, também já morta, foi buscar o ritmo, as cores e a coreografia para continuar cantando: “Meu São Benedito, eu não quero mais c’roa, quero uma toalha, enfeitada em Lisboa.” Quando morreu Alexandre, os fiéis do culto negro tomaram nos braços o seu caixão e desfilaram pelas ruas laranjeirenses, elevando e baixando a urna funerária, num gesto simbólico da religiosidade dos afrodescendentes.

João Silva Franco viveu quase 90 anos, antes de morrer, placidamente, quinta-feira, dia 9 de setembro de 2008. Sua poesia, tal qual sua arte de consertar sapatos, é um patrimônio de Laranjeiras, um rico exemplo de criação, que nada fica devendo aos vates nascidos naqueles domínios, e que encantaram auditórios, animaram reuniões, motivaram saraus, e deixaram que a alma laranjeirense tocasse as palavras, dispondo-as com a beleza que é matéria prima própria dos poetas. João Ribeiro, Bitencourt Sampaio, entre os mais velhos, Edith Vinhas, entre os contemporâneos, foram artistas da lira, reinventando paisagens e sonhos, para ornar de sutilezas a vida, sem sempre bela, do cotidiano de uma cidade desigual.

João Silva Franco era um lírico, mas não cantava apenas o amor. Suas trovas estavam afiadas como navalhas, cortando com cada verso o tecido da realidade. Não calava diante das injustiças, mesmo quando a doçura de seu jeito simples e bom acolhia a todos. Numa de suas quadras, publicada na primeira antologia dos seus versos (Aracaju: Nova Editora de Sergipe, 1965), João Sapateiro corrigia a admoestação de São Paulo, que na segunda Carta aos Tessalonicenses exortava ao trabalho, como única forma de sobrevivência. O poeta, tomado de justa ira, tingiu as linhas do papel pautado com letras grandes, todas maiúsculas letras de imprensa, que diziam:

“QUEM NÃO TRABALHA NÃO COME É CONVERSA MUITO FALHA,PORQUE SÓ VEMOS COM FOME O POVO QUE MAIS TRABALHA.”

Ele mesmo, trabalhador e poeta, glória entre os simples, da grande e rica Laranjeiras, fez do pé de cabra e do martelo, da faca afiada e do couro, um ofício fino, para embelezar os pés dos seus contemporâneos, como fez da palavra uma arma, manejada para criar beleza, com a coragem dos bons e dos justos. Os sapatos, gastos, se perdem, mas a poesia continua servida, nos livros que publicou.

A última homenagem em vida, que João Sapateiro recebeu, foi do cordelista Gilmar Ferreira. Ele lançou no início deste ano, na Feira de Sergipe, o livreto “João Sapateiro - Orgulho do Meu Lugar” prestigiado pelo homenageado e o filho ‘Koka’.

Apesar de não possuir nenhum diploma escolar, João Sapateiro tinha muito do que se orgulhar. Na entrada de sua casa, existem vários diplomas, menções honrosas e títulos fixados à parede, a exemplo do Título de Cidadão Laranjeirense concedido em 1984; diplomas pelas participações em Simpósios de Cultura Negra (1984), no Concurso Nacional de Trovas de Tambaú, (PB) em 1986; e menções honrosas em concurso de poesias.

Luiz Antônio Barreto

João Sapateiro
Enviado por João Sapateiro em 16/08/2010
Código do texto: T2442335
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