A Minha Chegada à Emigração ” - Estação de Santa Apolônia em Lisboa!
 
 La Rochefoucauld dizia que; "sempre amamos aqueles que nos admiram, mas nem sempre amamos aqueles a quem admiramos" ...
- eu me admiro, até hoje,  como entrei nesta “canoa furada” da emigração???!!!... 
 
>>> Estação de Santa Apolônia, ...idos de março de 1962. O comboio procedente da linha do Norte ( Campanhã no Porto)  acabou de chegar na plataforma numero 1, era ainda de manhã na capital do reino...
- Eu continuei ali sentado dentro do vagão, lá bem no canto do banco de madeira polida de tanto fundilho de calça já se ter utilizado dele, que dava até p'ra dormir nele e escorregar devagarinhoooo!!!... para dentro de um sonho!!!... De repente o comboio parou!... Pum!...                
 (eu acordei sem querer).
 - Pudera!... também já desde a meia noite que eu não pregava olho a tentar vislumbrar algum lugar por onde o comboio passava!... afinal era o meu primeiro dia de emigrante, e por isso era uma data muito importante na minha vida.
-  O revisor bateu com o alicate nas costas do banco, onde eu estava já perto do meu ouvido, quando se aproximou de mim e perguntou; então ó pá!... não vais sair daí?...
- Olha que aqui é o final da linha. 
- Não senhor,... eu estou à espera “dum home” que vem me buscar cá.
- A minha mãe disse que ele vinha, e que estava aqui à minha espera!,... aatão eu espéro aqui, num é?! 
Oh, cum caraças!!!,...
- então tu não tens aqui ninguém da tua família, cá em Lisboa?
- não senhor!
- A minha mãe disse c' o home se chama Mário, e é filho da Ti "Ermelinda" (?) que é lá de Sueima, no Alto da Serra de Bornes...ele andou na tropa c'u mou irmão Martinho...lá na Índia, sabe!?...
- A minha mãe disse também que era p'ra ele me vir a buscar aqui à 'stação da Santa Apolónia,  aonde o "camboio" parasse!... 
- Valha-me a nossa senhora d'Agrela, esta agora!...
 (dizia o Revisor enquanto me empurrava para fora da carruagem)
- então vai lá p'ra fora garoto, pode ser que o tal Mário ande à tua procura lá fora, pá!!!...
-  E este "camboio" já vai voltar p'ro Braço de Prata poças! ...
-  tu não podes ficar aqui! ...ai qui caraças!...
-  o garoto vem parar aqui sózinho neste meio do  mundo!...
-  logo aqui na capital, tu  qu'idade é que tens?
- 13....! faço-os em novembro...
-  vai lá, vai lá, tira-te daqui...
E desandou por entre os bancos da carruagem em direção ao final do  das tais carruagens do comboio agora vazio.
- Lá fora ouvia-se o alto-falante :
- atenção senhores passageiros com destino a linha da Beira Baixa!, plataforma número um!...  etc e tal e coisa.    
... Segurei a saquita de pano (feita pela minha mãe) com duas côdeas de centeio lá dentro, um naco de queijo d'ovelha embrulhado num guardanapo, todo manchado pelo unto do molho que saía da chouriça-bocha, e lá no fundo tinha uns figos secos, três nozes  e lá fui eu descendo pelos degraus da carruagem parada na linha de numero um em Santa Apolónia...
- Mal cheguei aos portões de ferro na frente da estação e ....
- Olhóooo Parada da Paródia!!!!,... é o Noticias!...
- olhóooo Diário Populaaaaar!... é o Cumércio do Puorto!!!...
.olha aqui ó freguês!!!...  
- O Ardina gritava tão alto que eu me assustei,... e fiquei ali encolhido no canto do lado direito da estação atrás da coluna à espera,... em vez de ir lá para fora.
- E também de nada adiantaria porque eu jamais tinha visto o tal Sr Mário.
--- E ele, o Ardina,  ia p'ra lá e p'ra cá!...
... ó , p'ra cá,.. ele gritava,... Olhó Parada da Paródia, eh o Notiiiiicias!...
-  e na volta tirava mais um jornal da sacola a tiracolo e; 
-  compre o Cumércio ó freguês!...
- leve o Parada da Paródia!-
--- de repente, não mais que de repente,  olhou p'ra mim e parou.
- Chegou mais perto e perguntou.
- Tu dond'és meu filho?...
Eu sou de "Caravelas" e não sou seu filho...
- Sou filho da Ti Julheta e do Ti Zé'rturio!!!
- Está bem, está bem pá, ... mas aatão porqu'é qu'stás a chorar? -
...hummmpfff,...eu estou aqui à espera dum home que vem me buscar!  
A minha mãe disse c' o home se chama Mário e é filho da Ti Ermelinda (??) lá de Sueima, ele andou na tropa c'o mou irmão lá na India, sabe?!... 
- Já entendi mas, oh que que carahhhhhhlo...
(o ardina deitou a sacola no chão e continuou), então tu não tens aqui ninguém da tua familia?!...
- não senhor!
Tás com fome? ...
- não senhor! (muito tempo depois me lembrei que a última vez que eu tinha comido, foram umas alheiras com grelos e batatas cozidas à moda da minha terra, lá numa taberna no Porto na noite anterior ali perto da estação - se os leitores desta me derem um tempo, ainda vos contarei algum dia essa outra "CATRAMONZELADA LITERÁRIA” (*) àcerca daquela que foi a minha primeira noite de Emigrante).   
Foi então que eu me acordei para a minha primeira situação de Emigrante realmente fora do meu meio de origem.
- Estava eu ali!!!
- Treze anos de idade...
Encostado no canto da Estação, á espera do tal Senhor Mário.
- Comecei um choro triste, profundo, entremeado de soluços que eu os queria parar por vergonha do “ardina”  na minha frente... mas não o  conseguia fazer.
- Era uma tristeza pungente!,... eu feito um pingente, por analogia "um pingo de gente" com apenas 13 anos de idade, e já era o meu segundo dia de emigrante!
O dia anterior tinha sido muito pior!... 
O “ardina” largou por instantes a sacola dos jornais, (que era o ganha pão dele, na cidade grande)  abaixou-se na minha frente,... olhou-me com os olhos quase tão cheios d'água como os meus e disse; 
- Eu também andei lá rapaz!
...Não chores.
---Se a tua Mãe disse que o homem vem aqui te buscar, então ele vem!...a nossa Mãe nunca nos engana!...
- Olha, senta-te aí no degrau da escada, ali fora... e não tenhas medo!
Se alguém se chegar perto de ti,  pergunta logo se é o Ti Mário!
 - Se não for, grita por mim!.... ele há-de vir com a Graça de Deus.
 (E veio!!!,...o Ti Mário veio me buscar,  senão, certamente eu não estaria hoje aqui escrevinhando esta “ESTÓRIA” para vos entreter.)
 
E eu fiquei ali sentado a pensar na vida, a imaginar!, cá comigo;
- mas que grande "CATRAMONZELADA” que me tinha acontecido!? ... como e quando algum dia eu poderia imaginar que,  ainda no dia anterior, de manhã, eu saltei da cama tão contente!... lá em Caravelas...
!!! êpá,.... vou p'ra Lisboa.
-  Lá é qu'é bom!, pá...
-  aqui na terra só tem chuva, gelo, às vezes neve!...
Dizem que nas terras altas, é pior!.
-  são três meses de inverno e nove de inferno!...
-  subir a ladeira das Bouças com 47 graus à sombra, em pleno mês de agosto não é nada, se comparado com os dias de fevereiro, que já são do tamanho do tombo dum carneiro, mas escondem o sol um mês inteiro.
E assim eu fiquei ali sentado!...
- cada vez mais triste, um choro cada vez mais pungente,...
- cada vez mais e mais, eu feito um pingente, por analogia "um pingo de gente"... Eu me sentia acuado ao canto do hall de entrada da Estação de Santa Apolônia.
 
 - Foram pelo menos umas duas horas e meia de angústia solitária!.
. O “Ardina” já se tinha ido embora e,  talvez por isso,  eu me senti ainda mais triste, mais pungente,... e repetia...
- me sentia mais eu, porém apenas feito um pingente, por analogia "um pingo de gente",
-  ali sentado no primeiro degrau da saída da Estação!  
- Ainda me lembro de olhar para o relógio da estação e depois de uma hora mais ou menos, eu parei de chorar, mas continuei triste.
- Parei de soluçar,  mas não conseguia engulir o pedaço da mordida no pão centeio.
-  Muito menos do queijo curtido, duro, bem cheiroso do leite da ovelha, feito com tanto amor e carinho pela Ti Julheta!. 
(Ah!... como a minha mãe fazia maravilhas na cozinha!) 
 
>>> E me lembrei dela naquele instante!.
Me lembrei dela me levar ao Santo Ambrósio (lá na terra do então desconhecido emigrante Roberto... " O leal")  no verão anterior, p'ra pagar a minha promessa, porque passei no segundo ano do Liceu em Bragança!. 
E eu  me lembrei dela ali, e depois para sempre!, 
- até  quando eu já estava a imaginar a minha "CATRAMONZELADA” por causa de ela me ter metido a Emigrante, lá vem então o "home"... o Ti Mário Canha!...
- eu já o tinha visto de longe mesmo sem saber quem era.
E me chamou a atenção logo pelo aspecto dele todo esbaforido, quando saiu do carro dele, cuja porta abria pela frente e o volante era pregado nela. Esta foi a primeira vez que  andei de carro na capital e o velho “Gogsmobile” zarranguilhou em direção ao “Campo das Cebolas”... passamos pela velha “Casa dos Bicos” e lá fomos então a parar numa Leitaria que havia ali nas cercanias da Alameda Infante Dom Henrique.  
 - O Ti Mário Canha era da Aldeia de Sueima do Alto da Serra e tinha um carro só com 3 rodas. 
- Parou ali do lado da Estação que dá p'ró rio onde acaba o Campo das Cebolas.
Ele deu primeiro uma volta ao carro para ver alguma coisa e depois então veio em direção a mim... 
-Não!, não tinha furado o pneu,não!...nem era o "Citroen" a fazer testes de equilibrio na suspensão! ... o carro só tinha mesmo três rodas de nascença... e admirem-se!...era fabricado no Brasil.
-  Entrava-se nele pela frente. - O volante era agarrado na porta e tinha lugar p'ra três pessoas (que não fossem de tamanho muito avantajado)
- Ele (o Ti Mário) saiu do velho “Gogsmobile” todo aflito e, enquanto ensejava uma corridinha na  minha direção, foi logo a perguntar! 
... oh rapaz!
- Tu és o filho da Ti Julheta lá de Caravelas?!....
-  sou sim senhor! (nem precisei gritar p'ro ardina para lhe agradecer,  que... a essa hora, ele já se tinha ido embora)
- Peis eh!... a minha mãe mandou dizer que tu vinhas, mas o carteiro só entregou a carta lá em Odivelas hoje de manhã,...
-  e eu nem sabia se era hoje, ou se era amanhã que tu ias a chegar aqui!...
- Mas,  de qualquer forma, eu tinha umas entregas p'ra fazer aqui na Graça, (o Ti Mário era vendedor da "Knorr") e, na dúvida lembrei-me de passar aqui p'la estação.
- Já viste se eu não tivesse vindo!?...
- Tás cum fome???
- não senhor!
(hoje quando recordo que naquele tempo não havia telefone, lá na minha aldeia e muito menos na dele, que fica no alto da serra de Bornes,...eu fico a imaginar o que seria se ele não tivesse ido à Estação de Santa Apolônia!)
-  E muito menos tínhamos idéia do recado electrônico ou sequer a música do ... alibábá cagou oh, oh....!!!
 (- desculpem, eu queria dizer a música do "avisa lá que eu vou, oh, oh"!). 
-Aatão anda cá que vamos ali na Alameda,... que tenho lá um cliente, etc tal e coisa...
- lá fomos p'ro carro de três rodas!... e eu me sentei ali do lado das caixas de caldos "knorr", e lá fomos.
Agora, desculpem lá, mas ...
 - aqui termino este meu relato que posso entitular de o “meu primeiro dia de emigrante”,  depois eu conto o resto se alguém achar que vale a pena.  
Antes porém de continuar esta rápida narrativa, eu gostaria de fazer aqui uns apelos! 
 
- Ao Ti Mário Canha; esteja “Voismecê”  aonde estivér que me desculpe mas, não consegui lembrar o nome correto da sua mãe!... (afinal eu só a vi uma única vez na  minha vida, há mais de 40 anos atrás!). 
- Ao "Ardina" (p'ra quem não sabe,  era o jornaleiro – o tradicional vendedor de jornais, nas ruas de Lisboa) que, por algum milagre do meu adorado e respeitado Santo Ambrósio de Vale da Porca, ele... que se se lembrar de mim,  que entre em contacto comigo a quem dedico esta   "CRÓNICA”, com todo o respeito e carinho que nunca pude saber seu nome, para lhe agradecer a ajuda iluminada que Deus lhe pôs nos lábios na saída da estação!
 
- Ao Ilustre desconhecido estudante de Coimbra de quem eu também jamais soube o nome, ou a origem dele!, Eu só sei que ele já vinha dentro do Comboio quando este chegou à Estação do Pocinho vindo de Barca D’Alva!... e, que tomou conta de mim no "camboio" entre a Estação do Pocinho e a de Campanhã, no Porto, e que me levou àquela taberna algures perto da Estação no Porto, para eu jantar lá na noite anterior. (fazia mais ou menos umas 24 horas que eu não engolia coisa alguma!...)
 -  Se algum dia ele vier a ler esta crônica e/ou,  se se alguém se lembrar desta viagem, que eu comecei lá em Caravelas, passei por Moncorvo que me contacte !  -  o meu Pai não tinha como ir mais além do Pocinho, e ali me entregou então a este desconhecido!  - de quem eu repito!,  apenas  soube que ele era Estudante, e ia para Coimbra a estudar, mas naquela noite tinha ele que ficar no Porto e, por isso, eu tive que viajar do Porto até Lisboa sózinho, absolutamente entregue à minha sorte!
- Sorte esta, aqui relatada nesta "CRÓNICA”, creiam-me que tudo farei para o agradecer pessoalmente do mais profundo da minha Alma Emigrante! 
- Sobretudo agradeço também ao meu querido pai o Ti Zé Artur de Caravelas,  mas que o nome dele era realmente Artur José! (que Deus o tem lá no Céu desde 01 de Abril de 1969 - logo tinha que se ir embora no dia das mentiras, meu velho!? – a benção Pai!...)
E cuja última imagem dele, eu tenho gravada p'ra sempre na minha memória ao ouvi-lo dizer pela janela da carruagem, que vinha de Barca D'Alva, dirigindo-se ao tal Estudante de Coimbra: 
(o trem já em andamento, e eu a pensar que ele ia subir atrás de mim!).
- Voismecê tome lá conta do meu garoto, que vaí p'ra Lisboa, pelo Amor de Deus! 
... depois dobrou o chapéu nas mãos e virou-me as costas p'ra poder chorar à vontade.
 - já de longe, o então Ilustre desconhecido “Estudante de Coimbra”, ele ainda gritou;
- não s'aflija home!,... nós  vamos com Deus!....
- depois sentou-se do meu lado e confessou.
Eu só vou até ao Porto, depois é que vou p'ra Coimbra...
- Foi aí que eu então desabei,... chorei até chegarmos à Ponte da Ferradosa mas, isso fica para outra "catramonzelada", isto porque, como costumamos dizer:
- O NOSSO  PORTUGAL É ETERNO!... E NÓS EMIGRANTES TAMBÉM....
 
(*) - O verbete “Catramonzelada Literária” é uma alegoria ao uso da “Tremonzela” sendo este um instrumento agrícola então usado naquela azáfama de preparar e amanhar a terra para uma nova sementeira a cada ano que passava.
 
Conto Auto Biográfico  publicado  virtualmente (in:  “Crônicas da Emigração– Catramonzeladas Literárias” deste mesmo autor)
www.silvinopotencio.net
Silvino Potêncio
Enviado por Silvino Potêncio em 08/09/2011
Reeditado em 01/02/2019
Código do texto: T3207601
Classificação de conteúdo: seguro
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