José Emidio

Zé Emidio acordava ao primeiro cantar do galo, jogava uma água no corpo, calçava as botas e colocava a roupa de trabalho, nesse processo Dona Lica já levantava e esquentava a água para o café de Zé para que quando chegasse a cozinha seu café e seu queijo branco caseiro estivessem a mesa.

- Bom dia, Lica.

- Bom dia, Zé. – Dizia parecendo estar brava, e talvez realmente estivesse.

Dona Lica tinha pouco mais de 1,50m de altura, linda e enfezada, sempre enfezada, cara de má, mas com um coração tão bom, tão cheio de amor que só quem chegasse bem próximo a ela perceberia (o que não era lá tão fácil). Ela chorava em toda partida, rezava por sua família todas as noites, cantava em tom de lamento lavando a louça ou a roupa e fazia o melhor biscoito mineiro da região.

Logo os filhos começavam a despertar, primeiro Joaquim, o mais parecido com Zé Emidio, sempre calmo, procurando ajudar os pais, típico filho mais velho. Pedia a benção dos pais e recebia em coro “Deus te abençoe”, logo vinha Maria do Carmo já chorando, a única mulher dos irmãos e também a mais nova.

- Benção, mãe. Benção, pai.

- O que o Jorge fez? – Zé perguntou.

- Jogou mandruvá em mim. – Mal sabia Jorge que isso a causaria pavor a mandruvás (do tipo que te faz atravessar a rua, pois a calçada tem uma árvore).

- Ah, mas você e Jorge não têm jeito, Maria do Carmo! – Disse Lica com o tom de voz elevado que já lhe era natural.

- Mas mãe, eu não faço nada. – Disse Maria.

Jorge apareceu e passou por trás de Maria pedindo a benção dos pais enquanto dava um puxão de cabelo na irmã, ela gritou correndo para abraçar a perna do pai.

- Jorge, pare de ser arteiro assim, moleque. – E dava um tapa de leve na cabeça dele e como ele amava aquele garoto, mas como todo pai de menina, queria proteger Maria do Carmo com unhas e dentes.

Jorge era um garoto forte, gostava de subir em árvores, pular nos rios e brincar com animais gosmentos e seu maior prazer era atormentar Maria do Carmo, que não o suportava, e por muitos anos foi assim, até que Jorge foi se casar com Dinha e chamou sua irmã para ser madrinha, sabe-se lá o motivo, mas Maria entendeu como um pedido de desculpas e aceitou. Desde então, os dois são amigos além de irmãos, mas isso não vem ao caso... A história que quero contar é a de José Emidio Alves.

Zé e sua família moravam na roça de São Gonçalo do Sapucaí, uma pequena cidade no interior de Minas, agora imagine... se a cidade já era pequena, imagine sua roça. A roça se chamava Água Comprida, devido à um fio de rio que passava por ela, mas sabe-se lá o porquê, os moradores a apelidaram de Coréia. “Ah, minha Coréia veia”.

Resumindo o lugar; era uma rua larga e longa com várias casinhas simples, um campo de futebol, um posto de saúde e terminava com a minúscula praça da igreja, onde praticamente a Coréia inteira se reunia aos domingos, na verdade, não era tão difícil assim todos se reunirem, era uma roça tão pequena que, com certeza, havia bem menos pessoa do que num condomínio mediano de São Paulo. Mas havia também ruas estreitas e de terra batida que cortavam essa rua principal, numa delas morava a família Alves, numa casa branca com janelas e portas enormes de madeira azul, pode até parecer algo grandioso, mas na verdade, era bem simples. A vista era bonita, viam-se serras no horizonte, era uma espécie de previsão do tempo; o que se avistava na serra, logo chegaria ali. Quando um manto branco cobria o horizonte, Dona Lica logo corria para tirar as roupas do varal.

O pai da família trabalhava como lavrador, fazia o que fosse necessário nas fazendas da Coréia e era reconhecido por seu trabalho bem feito, mas Zé não se contentava apenas com isso, apesar da pobreza e humildade, era um homem inteligente e procurava utilizar isso de vários modos.

Trabalhava como lavrador todos os dias, Maria do Carmo levava seu almoço, ele a beijava na testa e ela partia, almoçava e continuava o trabalho. Quando tudo estivesse perfeitamente em ordem, deixava a fazenda. As segundas e quintas, ia ao posto de saúde e aplicava injeção nos que necessitavam e alguns trabalhos de “enfermeiro” que lhe apareciam em qualquer horário, sem falar nas brigas frequentes, em especial, entre bêbados que acontecia de segunda à sexta, mas principalmente aos finais de semana. Às vezes, ele já estava dormindo em alta madrugada e alguém batia a porta com brutalidade.

- Zé Emidio! Zé Emidio!

Ele não pensava duas vezes e levantava, colocava um calçado e atendia a porta.

- O que aconteceu? – Ele sabia que era necessário em algo.

- O Betinho e o “Jão” estão brigando de novo.

- Onde eles estão?

- No bar do Maurício.

- Claro, onde mais? – Ele saia com a única coisa que sempre possuiu parar derrubar qualquer homem; a fala.

O Maurício do bar, na verdade era um dos primos dos Alves (assim como metade de Água Comprida), ele tinha uma casa grande ao lado de seu bar e também um grande campo (que fez de futebol) particular, mas nem tão particular assim, Maurício nunca foi de não dividir o que tinha, gostava de ver a casa cheia, o campo também, gostava de estar rodeado de pessoas. Seu bar era bastante frequentado; não havia nada de especial, mas o pastel de fubá e a simpatia de Maurício conquistavam qualquer um. Fora isso, era o único lugar da Coréia onde havia sinucas.

Zé Emidio chegava calmamente até onde os homens trocavam murros e xingos.

- Opa, opa, opa. Calma, rapazes, calma. – Dizia ele num tom aveludado encostando a mão no peito dos homens. – O que houve?

- O Jão tá paiaçada comigo, seu Zé. Fica de zoio na minha Rosinha.

- Eu de zoio SUA Rosinha, Betinho? EU VOU TE QUEBRAR, FI D’UMA. – Disse João avançando a frente, mas Zé manteve a mão em seu peito e ele não avançou.

- Vocês dois, parem. Vamos conversar como adultos. O que aconteceu?

Era sempre assim; Zé chegava para apartar a briga, não usava a força, mas a calma, a paciência, montava e fumava seu cigarro de palha enquanto escutava e assim que a história fosse esclarecida, dava um jeito de que entendessem que não valia a pena brigar por isso e por fim a briga terminava com um “Mas não é mesmo” e abraços chorosos de bêbados.

- Nunca mais vô brigar co cê.

José Emidio Alves era respeitado por todos daquele pequeno lugar, talvez por isso também fosse juiz de futebol, dessa forma, além de ter quem apartar uma briga, o juiz não corria o risco de morrer. Todos sabiam que ele era justo, íntegro. E também, apesar de pobre sempre dava um jeito de fazer um agrado a seus filhos; um dia deu a única boneca que Maria do Carmo teve na vida, e acredite se quiser, ela a tem até hoje. Ele sempre achava um jeitinho de agradar a quem amava.

Esse homem morreu há mais de 20 anos atrás, como qualquer outro feito de carne e sangue, sempre que seu nome é citado causa saudade em muitos corações, principalmente nos moradores da Coréia. Eu nunca conheci Zé Emidio, mas cresci com histórias do quão bom ele foi, de quanta gente ele ajudou e isso me fez conviver com ele em meus sonhos, o conhecer neles, na verdade. E não sei se já sentiram isso, mas eu sinto falta do meu avó, José Emidio Alves, apesar de nunca tê-lo conhecido. Minha mãe foi sua filha e sempre que me fala dele, vejo o brilho em seu olhar.

Muitas vezes fui à Água Comprida e em cada vez conheci minha dezenas de primos desconhecidos, que chegam a ter o mesmo brilho no olhar quando digo que sou neta do Zé Emidio, e então começam as histórias de seus feitos, de quão bom era seu coração, tudo isso construiu um herói real em minha mente.

Atualmente, o posto de saúde do qual José Emidio Alves vacinava os que precisavam, recebeu seu nome por votação dos moradores da Coréia e eu não poderia estar mais orgulhosa de ser uma Alves.

Lu A
Enviado por Lu A em 29/04/2014
Reeditado em 29/04/2014
Código do texto: T4787806
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