MINHA HISTÓRIA DE VIDA- MEDIUNIDADE- REGRESSÃO

Lembro-me que morava em uma floresta. Lembro-me do cheiro da selva, do sol quente entrando pelas frestas das árvores frondosas que ficavam ao redor da aldeia. Lembro-me do cheiro da madeira estalando, das cantigas, das pinturas corporais, do dialeto. Do barulho do rio do outro lado da mata. Dos meus pés tocando o chão úmido e do quanto gostava daquela vida. O quanto era bom sentir o sangue indígena correndo por minhas veias. Lembro-me dos cabelos extremamente lisos e negros caindo-me sobre os ombros. Da minha pele nua acobreada cheia de pinturas.

Até que certo dia um homem branco chegou à aldeia. Não sei o que houve. Se nos apaixonamos ou se fui estuprada, mas acabei engravidando. E como os outros índios não admitiam índias grávidas de homens brancos, acabei sendo expulsa da aldeia. Lembro-me que vaguei por dias, solitária pela mata, sentindo aquela criança remexer-se em meu ventre que tomava uma forma arredondada e cada vez maior à medida que os dias se passavam.

Lembro-me de mergulhar nua nas águas frias e profundas do rio. Sentia a criança se mexendo e eu me sentia feliz. Alimentava-me de frutas, peixes e assim fiquei vagando na floresta por dias e sentindo um amor incondicional por aquela criança em minha barriga.

Minha barriga estava bem grande quando andava no meio da mata, em um inicio de tarde, pude ver ao longe uma senhora bem idosa, estendendo no varal na beira da estrada de cascalho, vários lençóis brancos. Seus cabelos eram brancos e bem presos com um coque no alto da cabeça. Trajava uma saia longa e bege, quase lhe cobrindo os pés e uma blusa de manga cumprida branca, com pequenas rendas nos punhos. A casa era pequena e bem humilde, na beira da mata, ao lado daquela estrada longa de terra vermelha, onde o sol batia com força nos cascalhos. Senti medo, afinal ela era branca e pessoas brancas faziam mal aos índios e por trás do tronco de uma árvore frondosa me escondi e fiquei observando-a cantarolar uma música de ritmo alegre no dialeto dos brancos. E em meio aquela canção que soava dos lábios da pobre senhora solitária, senti um pontada forte em meu ventre e uma dor estranha invadir minhas entranhas. Aquilo era dolorido.

Um liquido quente começou escorrer por entre as minhas pernas e a dor foi aumentando e sem forças me apoiei no tronco. Sabia que a criança viria ao mundo. Sentia o suor escorrendo pelo meu rosto, o coração disparar e gemia baixinho de dor e foi quando aquela senhora aproximou-se de mim, analisando-me com curiosidade. Fui arisca, tive medo, mas ela sorriu quando viu, exibindo os poucos dentes. Suas mãos enrugadas seguraram as minhas com firmeza, fazendo com que eu me erguesse e me apoiasse na mesma, que me levou para dentro de sua casa.

Lembro-me da casa escura, do chão frio de terra, dos finíssimos raios de sol entrando por entre as pequenas frestas do telhado, do cheiro da lenha estalando no fogo aos fundos da casa. Ela dizia coisas que não conseguia compreender, afinal, sua linguagem era desconhecida por meu povo.

Levou-me até o pequeno quarto escuro, e sentindo as dores aumentarem, enquanto pousava as mãos morenas em minha barriga, me deitei em sua cama. Chorava. Ela saiu do quarto, deixando-me sozinha e voltando instantes depois com uma bacia de cobre. Abriu minhas pernas e naquele momento só conseguia fazer força para expulsar a criança de meu ventre e instantes depois pude ouvir um choro agudo e alto ecoar naquele quarto escuro. Eu estava fraca e pela primeira vez, ainda sentindo o cansaço remoer-me o corpo, toquei a face da criança ainda suja com o meu sangue. Era um menino.

Quanto às feições não eram iguais a mim. A pele não tinha o tom bonito acobreado, nem os cabelos eram lisos e tão negros como os meus. Talvez houvesse puxado as feições do homem branco. Adormeci vencida pelo cansaço de um parto.

Acordava por vezes assustada. Procurava pelo meu filho, e a senhora sempre sentada a beirada da cama com meu filho nos braços. Ela sorria. Aquilo me confortava e dormia outra vez.

Acordei alguns dias depois, ainda nua, na cama da pobre senhora, sendo coberta apenas por um lençol. Descansada. Olhei ao meu redor e lá estava ela, com meu pequeno nos braços. A olhei desconfiada e ela estendeu os braços na minha direção entregando-me a criança. A peguei rapidamente e a abracei de encontro ao meu corpo e cuidei como deveria, enquanto ela sorria assistindo a cena. Saiu do quarto, voltando instantes depois me oferecendo uma cuia cheia de água e foi quando soube que ela não iria nos fazer mal.

Depois me lembro vagamente dela me ensinando os dialetos da língua dos brancos. Eram complicados, mas conseguia dizer muitas coisas. Eu e meu filho ficamos morando com a senhora naquela casinha. Aprendi usar roupas. Passava a maior parte do tempo em silêncio e quando estava com meu filho usava a linguagem indígena.

Lembro-me que do outro lado da estrada havia um rio. Sua margem era cercada por alguns arbustos e pequenas árvores e era ali que me banhava e banhava meu filho. Nas corredeiras mansas e frias atravessando nosso corpo nu.

O nome dele eu não lembro. Tão pouco o meu e nem o da senhora que nos acolheu naquela casinha humilde, mas percebi que meu filho era diferente. Sabia que era diferente, pois me lembrava do quão espertas eram os indiozinhos da aldeia que com poucos meses de vida conseguiam balbuciar algumas coisas, mas meu filho sempre vivia em silêncio, mas entendia perfeitamente tudo o que se passava ao seu redor.

Os anos foram se passando e percebi que ele jamais havia pronunciado qualquer palavra que fosse, mas compreendia tudo muito bem e começou a andar.

Lembro-me depois que estava no rio nadando em uma tarde quente, enquanto meu filho brincava na porta da casinha humilde, quando ao longe na estrada de terra, levantando uma grande nuvem de poeira vinha um caminhão, andando rápido. O caminhão era desses pequenos, mas bem antigos, com a carroceria de madeira e a cabine verde escura. Senti um medo muito grande correr em mim e sai da água vestindo as roupas que estavam no chão rapidamente. O pequeno caminhão parou próximo a minha casa e um homem branco, o mesmo homem branco que havia me engravidado na aldeia, saltou dele com um sorriso amedrontador esboçado no rosto e indo em direção ao meu filho.

Ele então se aproximou do meu filho e o pegou em seus braços grandes e fortes. Eu podia sentir o cheiro de suor emanar dele. Era visível a maldade em seus olhos perante a inocência do meu filho. Eu parei estática do outro lado estrada, com medo de que algo ruim acontecesse e então ele olhou para mim, ainda com meu filho nos braços e disse que iria mata-lo para depois me matar. Disse que queria sentir meu sofrimento, que havia me procurado por longos e cansativos dias. O pânico me dominou, quando ele passou por mim com um facão em uma das mãos, andando pela margem do rio. A adrenalina começou a correr em meu corpo e decidi que ele não iria fazer mal ao meu filho.

Sai correndo na direção dele e pendurei em seus ombros. Ele me derrubou no chão com violência, o homem sorria e aproximou-se de mim com o facão, ao qual tentei tomar, mas ele puxou ferindo minhas mãos com cortes bem profundos e deslizou a parte afiada do facão na testa do menino. Desde a sobrancelha direita até o meio da testa, em um corte superficial na diagonal. Senti uma raiva, um ódio incomum. Fiquei furiosa e o ataquei, dando-lhe um forte empurrão, sujando as roupas dele com o meu sangue, o sangue que escorria de minhas mãos e meu filho pulou naquele chão frio. A faca saiu rolando para longe das mãos daquele homem e a única coisa que eu sabia que eu precisava fazer naquele momento era matar ele. Eu tinha que mata-lo. Mas a pensar pelos meus instintos maternais eu não ousaria fazer aquilo na frente do meu filho e pedi para que ele corresse o mais rápido possível e fosse pedir ajuda e que não olhasse pra trás. Ele, apesar de assustado e com a testa ensanguentada acenou com cabeça e saiu correndo pela margem do rio sem olhar para trás, enquanto eu estava sentada sobre aquele homem. Sentia o cheiro forte de suor invadir as narinas.

A raiva me dominava e havia uma pedra grande próximo a nós. Sem sair de cima de seu corpo grande e pesado, tomei a pedra pesada com as duas mãos e bati com força no seu rosto. Lembro-me do sangue espirrando, do sangue quente espirrando em minha pele. Dos cortes em minhas mãos ardendo, de gritar com ódio daquele homem e de bater a pedra várias e várias vezes contra a sua face, esmagando sua cabeça e deformando seu rosto.

Cansada, sai de cima do corpo daquele homem, ao qual a carne estava agora se misturando a terra úmida da margem do rio e fui cambaleando, com o vestido e o rosto ensanguentado até a casa, onde apenas a senhora me esperava. Ela me olhava com uma expressão de horror.

Depois me lembro de ter dormido por um bom tempo naquele quarto escuro e acordei desesperada a procura de meu filho. A senhora mais uma vez estava à beira da minha cama, sorrindo e cuidando de mim, disse que meu filho estava bem e estava descansando.

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Eu sei que isso não foi um sonho. Sempre me emociono muito quando me recordo disso, até porque foi um fato marcante não apenas na minha vida pessoal, mas também no meu lado mediúnico. Foi uma experiência emocionante e única que me marcará para sempre. Sei que não foi ilusão e tão pouco imaginação, pois sempre me identifiquei muito com a cultura indígena, a vida na selva e tudo era simplesmente real. Desde os cheiros, as sensações, as dores, os rostos, os lugares e os sentimentos. Amei muito aquela criança e creio que vivemos naquela casinha humilde a beira da estrada por um bom tempo, já que agora estávamos livres de seu pai, que até hoje não sei porque queria nos matar, não sei se engravidei por estupro ou se nos apaixonamos. Essas pessoas da vida passada, creio que já me encontrei com a maioria, mas como o universo por si só é um mistério não sei se são elas mesmas, mas eu achei incrível isso. Foi único e indescritível!

Marsha
Enviado por Marsha em 01/06/2014
Reeditado em 01/06/2014
Código do texto: T4827793
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