Estouvado Tony

A família ficava sem graça mas não havia jeito: tio Antônio não hesitava em exibir seus mais íntimos petrechos para qualquer visitante à menor provocação. Era homem feito, ainda que imperfeito, o único varão na casa de solteironas já pra lá de cinquentonas, que viviam em torno da matriarca, Vovó Inhana, que se casara aos 14 anos e enviuvara antes de completar meio século.

A filharada toda se empregara na fábrica de tecidos e o único refratário àquele estado de coisas era justamente o Tio Antônio, que volta e meia deixava o emprego à procura de uma verdadeira vocação, na certeza que operário não era não. Trilhou muitos caminhos, de servente de pedreiro a meio-oficial sapateiro, mas quando regressava à casa, para a alegria de Vovó, e a ojeriza generalizada das irmãs, era sinal de que falhara mais uma vez no intento libertário, tema esse, anos depois entendido, plagiado e celebrizado na voz de um tal de Freddy Mercury, com seu I want to break free.

E pedidos e promessas eram feitos às carradas para a remissão e a readmissão de tio Antônio na fábrica. O Santo protetor era forte, recebeu até uma série de sete fogueiras em sua homenagem, mas o protegido não tinha jeito mesmo. Logo se descrentava com a monotonia da vida de fábrica e alçava vôo de novo. E essas idas e vindas somaram nove ou dez, até que o gerente da vez disse basta. Ou pasta, com a paciência já gasta.

E tio Antônio, sem emprego fixo, sentiu-se alforriado. Foi tentar a sorte noutras freguesias, e namorar moças bonitas, do subaco cheroso, como dizia. E inovou: tentou ser vendedor, rifador - onde vendia bilhetes de uma tômbola, que dava direito ao vencedor ganhar duas malas abarrotadas de calçados sortidos, que não eram Vuitton nem

Gucci, mas que despertavam nas moças - inclusive nas suas próprias irmãs solteironas - curiosidade quase mórbida para provar aquelas coloridas chinelas e sandálias.

E essas rifas que pareciam ir tão bem numa determinada hora, de repente perderam o encanto do rifador e ei-lo convertido em amolador. Facas, alicates de cutículas, tesouras, tudo e a todos ele se propunha a amolar. Saídas suas pelas cidades vizinhas e mais além poderiam durar meses, até que na volta para casa, pra pedir bênção à mãe, vinham as notícias, a roupa pras irmãs lavarem, as turras que voltavam à ordem do dia. E nova partida.

O saco de dormir e o pau - este menos nobre no uso, pois bem preto,

roliço, liso e de dois palmos ficava pendurado detrás da porta do banheiro, e se prestava exclusivamente (suspeita-se) a proteger as nádegas sensíveis do tio da frieza da louça do vaso - ficavam pra trás, pois não cabiam na miúda bagagem do viajor inveterado que foi tio Antônio.

Mas garantiam a permanência de sua lembrança na casa, juntamente com os xingamentos de tia Vicentina, sua crítica mais implacável e a mais fiel lavadora de suas ensebadas suecas.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 22/01/2015
Reeditado em 23/02/2022
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