Sem Preta

Preta viveu quase uma eternidade, 106 anos, comprovados, certificados. Inda há pouco, partiu para outra, mais longa ainda, sem fim, sempre me ensinaram assim.

Cá na terra, nasceu na Abadia dos Monjolos, justamente no ano da mais iluminada passagem do cometa de Halley de que se tem notícia. Ele vinha pela noite, riscando o breu do céu de luz, na orgia duma estrela-guia. E ganhou até o nome curioso de Papa-ceia. Preta veio com ele. Batizaram-na Florbela, mas Preta sempre foi o nome dela.

Hoje há de fulgurar nalgum ponto desse nosso lábaro estrelado, deixando o mirante embasbacado. Seus filhos, que vão chegando à décima década de existência, sentem-se órfãos duma mãe da paciência, e de toda uma existência, que sofrença nunca dispensa.

Vim a conhecer Preta há uns dois anos apenas, e a vi, vivaz, discutir assuntos atuais, fazer observações judiciosas e ainda se locomover sem suporte qualquer. Surgiu-me logo a idéia de juntar seus papéis

para inscrevê-la no Clube dos Supercentenários, que congrega viventes a partir do centésimo décimo ano de vida. É um grupo seletíssimo. De minha mais recente espiada nas listagens achei 140 pessoas, espalhadas pelo mundo, mas mais concentradas, nos EUA, no Japão, França, Itália e até com uma ou duas presenças brasileiras. Curiosamente nenhum chinês ou indiano.

Quiçá em razão da fiabilidade dos registros civis, ainda a serem checados e definitivamente comprovados. O número de mulheres supera o dos homens na razão duns 15 por 1. Mas sempre foi assim, os homens partindo na frente. Menos biblicamente, pois Matusalém foi mais de nove vezes além de cem. Noe teria chegado aos 900. Já Cristo, por sua vez, não passou de 33.

Chegamos com Preta bem perto. Mas o alto a requisitou. E alguma lágrima rolou.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 07/04/2016
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