Chegada de Paola (fato real)

-“É aqui!”

Caíam os últimos raios de luz do dia quando descemos do carro e batemos palmas junto ao portão da cerca de madeira daquela casa humilde. O destino havia marcado mais um encontro para o qual fôramos convocados. Tomados de grande curiosidade e nervosa expectativa, aguardávamos atendimento. Recepcionados, entramos por um caminho estreito e cimentado, entrecortando uma área verde de solo barrento, postando-nos junto à escada que dava acesso à varanda da casa.

Não tardou para que a porta se abrisse e surgisse, lentamente, destoando do fundo escuro do interior da casa, aquela figura franzina, assustada e maltrapilha. Seus passos eram curtos, medidos e forçados. Fixavam-nos dois olhos castanhos escuros, incrustados em pele branca como porcelana, contrastando com cabelos longos, lisos, despenteados, de um tom louro platinado, quase branco. Sua expressão não escondia o cansaço da viagem nem a sensação de completa desorientação, abandono e insegurança.

Paola tinha sido entregue por seus pais adotivos para nova adoção. Sua alta quota de infortúnios, passados naqueles pouco mais de dois anos de vida, acumularia mais um momento trágico naquele dia. Partiria de sua casa, entregue a desconhecidos, que a conduziriam para um novo lar, estranho, a centenas de quilômetros de distância. Romperia laços e referências. Impunha-lhe a vida experimentar, tão cedo, a sensação de quase nenhuma auto-estima e total isolamento, dependência e submissão.

-“Gonzaga, este menino tem uma irmã que mora com uma família no Espírito Santo e, pelo que sabemos, passa por maus bocados. Sua mãe adotiva acha que ela é filha biológica do marido e a trata muito mal. Não quer ficar com ela. E... eu estava pensando.... vocês já tem dois filhos adotivos... a menina é clarinha como a Eliane e Adriana..., vocês têm condições financeiras...Por que não a adota também?”

Minha secretária se referia à irmã do filho adotivo de um nosso funcionário. Ainda que admirável amiga e companheira de trabalho, estranhei sua iniciativa de interpelar-me de modo tão franco, direto e quase em tom de súplica. Seu depoimento, se não proferido por ela mesma, não teria, de mim, qualquer credibilidade.

Paola nascera lá mesmo em Timóteo. Era, até então, a mais nova de outros três irmãos maternos, todos já adotados. Fora entregue pela própria mãe para adoção por um amigo, casado, que residia no Espírito Santo. Passara a se chamar Rebeca e conviveria com dois novos irmãos, filhos biológicos de seus pais adotivos. Segundo soubera por uma enfermeira, antiga amiga sua, que acompanhara a trajetória da criança desde o nascimento, a menina era tratada com grande discriminação. Teria apenas a roupa do corpo, nenhum brinquedo e seu colchão era um tapete colocado ao chão. Em momentos de descontrole emocional, sua mãe adotiva a repelia de suas traquinagens e curiosidades encostando-lhe pontas de cigarro aceso pelo corpo. Seu pai, ao que se sabia, tinha-lhe afeição, porém, dadas as suspeitas de sua esposa, mantinha certa distância, evitando maiores problemas conjugais.

Em contato telefônico, direto e pessoal, seu pai adotivo confirmara-me, sem detalhes, as dificuldades que encontrava para manter sua adoção, concordando em entregá-la a quem pudesse dar-lhe melhores condições de vida. Cumpridas todas as formalidades judiciais do processo de adoção, em que o juiz ouvira, inclusive, sua própria mãe biológica, expedira autorização para remoção da criança, o que se processou sem qualquer objeção.

Tomamos ao colo uma criança calada, sem choro, assustada, cheia de desconfianças, porém sem resistências. Resignara-se. Zombara-nos o destino. Fora a única vez que vimos Paola resignada. Seria impossível antever naquela figura frágil e entregue, a guerreira, destemida e cheia de vida que faria parte, desde então, de nossa história.

-“Eche é meu bainha!”

Prendera, junto ao peito, como que protegendo de qualquer ataque invasivo, o pequeno pacote de balas que lhe havíamos dado, enquanto nos dirigíamos para casa. Não reagia às nossas infrutíferas tentativas de fazê-la descontrair. O faria, ainda de modo acanhado, após algumas horas, depois de apresentada aos seus dois novos irmãos, adotivos como ela, que a receberam com curiosidade e alegria.

-“Não... xão do nenê!”

Gritava e apontava para o Edgard. Paola não conseguia absorver a idéia de que aquele triciclo plástico e algumas roupas novas foram compradas para ela. Tampouco o berço que já a aguardava, em nosso quarto. Seu primeiro banho nos testemunharia, em dolorida e silenciosa contemplação, as marcas de cigarros em suas coxas. Sintomas de vermes e bronquite viriam a se confirmar.

-“É meu xundáia! Não tiia.... eche é meu xundáia!”

À hora de deitar reagira como um pequeno animal selvagem, agarrando fortemente junto aos pés, com as duas mãos, suas sandálias de plástico cor de coca-cola, quando intentamos tirá-las para acomodá-la em sua cama. Impressionara-nos a rapidez e destreza com que recolocaria aquelas sandálias, presas por fivelas. O silêncio daquela primeira noite seria cortado por um choro baixo, abafado e sentido, chamando por sua mãe. Eliane tomou-a nos braços, colocando-a entre nós, fazendo-a adormecer, entre afagos e palavras de consolo.

A partir do segundo dia, Paola reagiria a toda e qualquer forma de carinho e afago com vômitos repentinos, em qualquer hora ou lugar. Mesmo junto a estranhos, o simples elogio à sua beleza e graciosidade, era suficiente para provocar sua reação, como ocorrera no meio de uma igreja, fazendo com que, num raio de 2 a 3 metros, todos, em reflexo impulsivo e, aos trambolhões, pulassem de seu lado. Seria cômico, não fosse trágico. Detalhados exames clínicos atestariam e confirmariam suspeitas de que padecia de problemas exclusivamente emocionais. Acompanhamento psicológico, tentado, não surtiria o efeito desejado.

Em seu terceiro aniversário, o primeiro comemorado conosco, chamara-nos a atenção uma súbita crise de choro ao apagar as velas de seu bolo. A suspeita, confortadora, de que havia trocado suas crises de enjôo pelo choro, puro e simples, desfez-se ao verificarmos as fotos da pequena festa. Edgard, gaiato, antecipara-se-lhe, apagando suas velas e provocando sua reação!

O tempo passara. Paola já assimilara sua nova realidade, integrando-se perfeitamente à família. Esperta, começara, então, a fazer de seus enjôos, instrumento de poder e manipulação. Aprendera a provocá-los quando assim lhe conviesse. A qualquer contrariedade fazia seu estômago ruminar, tampando a boca, forçando os olhos para chorar, mantendo um olhar fixo, astuto e desafiador. Esgotados todos os recursos de inúmeras e sucessivas conversas e conselhos, castigos e palmadas começaram a ser-lhe aplicados. Quanto mais confrontada, mais aguerrida, desafiadora e resistente ficava. Não raro, surpreendíamo-nos com os nervos em frangalhos, batendo naquela menina que, com olhar fixo e mão na boca, nos encarava com petulante superioridade. As noites nos martirizavam com sentimentos de culpa e impotência, em meio a reflexões sobre como proceder. A decisão de não valorizar sua conduta, ridicularizando-a com o uso de um pequeno balde, a tiracolo, foi a solução final.

Por um longo tempo Paola trocaria, sucessivamente, suas manias e formas de extravasar suas sequelas emocionais, testando, inconscientemente, nossos sentimentos e limites de compreensão. Mostraria, por vêzes, nossa pequenez e despreparo.

Cresceríamos com ela.