Memórias - Parte 3

Um dia, porém, vem em casa um amigo de papai que era administrador duma fazenda de cocos no litoral, este propõe para que meu pai fosse passar uns dias lá com ele, pois dado o clima talvez obtivesse melhora. Meu pai aceitou e eu fui com ele, pois estava em férias. Lá ele pescava e fez uma plantação de mandioca com a minha ajuda. Apesar da dor de cabeça não o deixar totalmente, deu para que nós nos divertíssemos bastante. A família que ali morava era muito hospitaleira. Eu me diverti bastante ora colhendo frutas silvestres, tais como ingá, jenipapo, caju, abacaxi, ora pescando siris, ora banhando-me no rio ou cavalgando. À noite a família reunia-se ao redor de uma fogueira e contavam as mais estranhas estórias. Ali eu era tratada entre os membros daquela família com muita distinção, pois eles admiravam como eu lia corretamente, como procedia como adulto, com toda a responsabilidade, etc. Havia ali, além do casal, um irmão casado e quatro filhas e dois filhos. Apesar de serem lavradores sabiam ler um pouco e conheciam a cidade, o que era muito raro entre as gentes da roça. Mas em meio às alegrias da noite havia o tormento dos pernilongos, o que fez com que eu insistisse com o papai para voltar para casa. Ele argumentou que o animal estava com pisaduras e teríamos de voltar a pé e eram 40 km, mas aceitei o desafio, conseguindo chegar à casa com os pés bastante inchados pela caminhada. Lá encontramos a mamãe saudosa e a minha irmã de quatro anos muito peralta! Mas as recordações daquele ambiente fizeram com que o papai voltasse para a cama.

Alguns meses depois o irmão casado daquele senhor veio morar conosco, pois decidira deixar a lavoura. Arruma emprego de servente numa companhia e sua mulher de empregada doméstica. Ele nos seus 32 anos era muito forte, jovial e até mesmo humorista. Trouxe alegria para nós. Até que certa tarde regressou sentindo-se muito mal, com febre alta, devia ser tifo. Como não tínhamos recursos era preciso chamar seu irmão. Mas quem iria?! Claro, eu, juntamente com uma vizinha, correndo um percurso de 32 km e dando o recado. Voltamos montados em burro. Mas o doente não resistiu e logo faleceu. Durante o velório papai não resiste ao choque emocional e teve um derrame cerebral. Ficou paralítico do lado direito e perdeu a razão. Para mim é tudo isto muito chocante! Além dos muitos afazeres, tenho agora de cuidar de um doente como aquele, sem memória!... Logo agora que eu estava no 4º ano, freqüentando o melhor Grupo Escolar da cidade, tendo como colegas a filha do Juiz de Direito, a do Delegado, as dos negociantes, dos jornalistas! Com tantas adversidades não é de estranhar que ao chegar a época do exame, havendo sido acometida de sarampo, fui reprovada...

A luta de casa continua. Ora o papai ficava em casa da vovó, que já avançada em idade e doente não dava conta de um doente inquieto, que passava as noites sem dormir, comia bastante e andava com dificuldade muitíssimo, entre a nossa casa e a dela. A situação tornara-se pior, pois o titio sofrera um desgosto com a esposa infiel e ficara tuberculoso; este era pai de três filhos, sendo que um casal destes morava com eles. Resolvemos internar o papai no Hospital da Santa Casa, porque a mamãe também não podia cuidar deles, pois tinha que trabalhar. Mas no hospital o doente passava as noites chamando em voz alta pela filha ou pela irmã falecida. As freiras não quiseram mais suportá-lo e deram alta. Ficava com a vovó e o titio doente. Nesta época termina a 2ª Guerra Mundial. Eu só ouvia lamúrias, tristezas, pobreza, doenças, contos dos fatos da guerra, bombardeios de navios pelos submarinos,... Por tudo isso tornei-me carrancuda, muito circunspeta, responsável em demasia, vivendo como adulto. A minha distração e bálsamo é que a vovó ensinou-me a ir à Igreja Evangélica e desde os sete anos freqüento aquele ambiente acolhedor. Ali ouço e participo das belas músicas sacras, tenho convívio fraterno com aquela comunidade, recito belas poesias, faço teatro amador, mas, sobretudo tenho jeito para oratória. Sou agraciada com a incumbência de dirigir uma classe bíblica desde os doze anos de idade, ano em que aceitei o batismo. A mamãe também chega ao conhecimento, aceita o batismo, congregando-se noutra igreja.

Iracy Edington
Enviado por Iracy Edington em 19/07/2007
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