INFANCIA: Quém é esse menino? Parte 02

Hoje Felipe percebe a infância que viveu como trailer de filme que discorre intermináveis trechos de lembranças, imagens, sons, cheiros e objetos que fazem conexão direta com as vivências da infância que deixaram marcas emocionantes e em muitos casos cicatrizes que o reportam para tempos dolorosos de solidão e abandono circunstancial por sua condição impositiva em relação as outras crianças e adultos que eram seus contemporâneos.

A ausência total de pigmentação na pele, nos cabelos e pelos, e os olhos de fundos altamente claros impedindo de forma agressiva a possibilidade de filtragem de claridade, o tornava exaustivamente desconfortável em tudo que se propunha a fazer, desde fazer suas refeições até sua higiene pessoal. Lembra de episódios de sua frágil e tenra infância nos preciosos momentos de cumplicidade com sua mãe, ao acordar pela manhã depois de beijos e afagos ela o levava para perto do fogão para lhe fazer companhia enquanto preparava o café.

Era uma cena pitoresca, em todos os aspectos. O menino branco como a neve, acomodado no cantinho do fogão de lenha com o queixo apoiado nos joelhos aguardando sua mãe tira-lo dali para comer os biscoitos com requeijão, as vezes coalhada e outras vezes cuscuz. Percebia todo o ambiente matinal do momento, sorvia todo amor maternal que fluía dos gestos traduzidos em carinho que sua mãe lhe doava. Enquanto isso, o dourado do fogo imponente e seu fumacear, o levava a viagens incríveis ao futuro, onde via-se rodeado de amigos, brincando de correr pelos campos, subindo em arvores, nadando no ribeirão, fazendo suas primeiras traquinagens, seduzindo sua primeira namorada e ganhando sua primeira disputa nos desafios com as outras crianças. Se sua mamãezinha, a quem chamava de Mainha, não interrompesse suas conjecturas, ficaria ali o dia todo, incapaz de sair, tomar iniciativa, arriscar-se em movimentos, mesmo sem conhecer as consequências, as quais poderiam ser, uma queda violenta, um acidente com o fogo, um tropeço num móvel ou um choque com algum animal de estimação. A mãe de Felipe se chamava Zulmira, mulher branca bonita, encorpada, sua inteligência e seu talento galgava o ápice da capacidade humana. Tudo a serviço do cuidado, do amparo, da proteção que dedicava a Felipe, seu filho, a quem os olhos do amor via como um cristal raro que Deus deu a ela o privilégio de conceber. Mulher alta, cabelos negros e longos, olhos castanhos e claros. Tinha uma presença física marcante com gestual firme silhueta bem definida, exalava uma fragrância sutil e natural das ervas que costumava usar no preparo dos seus banhos e esbanjava carinho, suavidade e aconchego no toque, no trato e na interação da convivência cotidiana. Nos momentos de pausa das atividades domesticas, sentava-se com Felipe no colo e enquanto o acariciava cantava canções de roda e cantigas tradicionais folclóricas, para embalar os sonhos do seu tesouro. Um exemplo das canções cantadas de forma magistral por Zulmira nestes momentos mágicos, era a faixa do álbum de 1962 (os anjos cantam) com Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano, que tinha como título, “Leva eu saudade” cujos autores eram Tito Neto e Alventino Cavalcante. A família de Felipe habitava num casarão com área construída correspondente a 14 ou 16 comados na fazenda Lizarda, propriedade do Sr. Manuel Ferreira dos Santos (Seu Donis) como era conhecido o pai de Felipe.

Homem rude, desprovido de qualquer nível de sensibilidade humana. Totalmente oposto a Zulmira, ele demonstrava agressividade no cenho, com gestos bruscos e surpreendentes. Quando rompia o silencio envolvente da sua presença, a voz inquietante fazia-se ouvir de forma multidirecional e todas as almas viventes onde quer que estivessem, despertavam os sentidos em alerta para decodificar com rapidez e precisão a mensagem que fluía sua intenção de punir a quem contrariasse sua vontade.

Felipe tinha mesmo medo daquele homem, que por saber ser o seu pai, queria camuflar o pavor que sentia por outro sentimento mais ameno quem sabe amor. Mas era incontrolável a consciência do prevalente medo constante de sua silhueta, sua voz e sua imponência.

Felipe sofreu a ausência total de carinho, proteção, cumplicidade e envolvimento paterno. Portanto, considera que seu pai pra ele não passa de um famigerado desconhecido, de quem apenas ouvia falar, sobre seus eventos e celebrações admiráveis.

As estórias de caçador, pescador, conquistador, valentias e sucessos pessoais e profissionais nos negócios e nas relações políticas e sociais, aguçavam a imaginação de quem ouvia induzindo seus expectadores a aplaudirem seus feitos, ainda que seus admiradores nutrissem seu ego, como forma de barganha por algum interesse oculto ou declarado, intimamente escarneciam de sua performance nas reuniões ocasionais sem a presença de seu interlocutor.

Certamente Seu Donis, após suas gaiatices noturnas, ia dormir satisfeito e locupletado de adrenalina que lhe serviam de combustível para elaboração de novas palestras dinâmicas e interativas sobre seu excêntrico universo repleto de burilamento.

Até os sete anos de idade a infância de Felipe teve como senário a fazenda Lisarda, localizada em Duas Barras do Morro do Chapéu estado da Bahia. A fazenda era uma ampla extensão de terra misteriosamente suprida de todos os recursos naturais possíveis e necessários para uma vida confortável de seres humanos e animais em todos os sentidos. Havia uma riqueza extraordinária na fauna e na flora regional que transcendia todos os limites de expectativa pessoal, comercial e produtiva.

Em meio a prosperidade de recursos ambientais como água e plantações diversificadas, Seu Donis ostentava sua paixão pela criação de gado bovino, caprino, ovino, equídeo, suíno e ovíparo. Os principais animais criados na fazenda recebiam nomes, pelos quais eram chamados e interagiam com as pessoas familiares a eles. A vida bucólica na fazenda Lisarda, lembrava de perto “O SITIO DO PICAPAU AMARELO” uma série de 23 volumes de fantasia, escrita pelo autor brasileiro Monteiro Lobato entre 1920 e 1947. A obra tem atravessado gerações e geralmente representa a literatura infantil do Brasil. A fazenda Lisarda era composta por um ambiente que parecia ser dotado de uma certa magia, fazendo com que o olhar das pessoas, ao se concentrar em qualquer que fosse o objeto, animal, planta ou pessoa, imediatamente detectava uma sensação de profundo significado de onde poderia emergir uma curiosa história.

Havia uma, entre várias lendas que circulava verbalmente entre os moradores e vizinhança da fazenda, que o tanque de águas que supria necessidades comuns de pessoas e animais, tinha o poder de atrair as pessoas para dentro dele, criando um envolvimento causado pelo poder de hipnose do tanque em relação as pessoas. Se alguém permitisse que essa experiência fosse adiante a partir do momento em que era identificada, provavelmente teria como desfecho o enlace das águas asfixiantes do tanque que por fim sufocaria a existência do ser humano que o desafiasse, provocando o desaparecimento físico completo da imprudente ou vulnerável presa humana do tanque. Não era recomendável fixar o olhar por mais de dez segundos para a cabeceira do tanque. Por outro lado, em épocas de seca temporária em que o tanque ficava parcialmente vazio, havia uma tristeza velada no semblante de todos que se beneficiavam do tanque até mesmos nos animais.

Mas quando o ciclo de precipitações chuvosas voltavam a normalidade, tudo se enchia de um colorido empolgante, inclusive próximo ao tanque se ouvia a sinfonia de sapos celebrando a temporada de abundância de águas, assim como os pássaros se regozijavam com a enorme variedade flores e frutas que naturalmente decoravam seu habitat.

Os animais se movimentavam de forma sincronizada e alternada em relação ao tanque, que parecia entender que protagonizava um espetáculo de sinergia que refestelam os ânimos trazendo equilíbrio a toda natureza. As pessoas também eram contagiadas pela áurea positiva a ponto de se deixarem flagrar cantarolando cantigas a caminho da fonte.