O Quarto do Tronco *

* Texto extraido de "As crises da Vida" publicada em novembro/2007 e relativo à A CRISE INFANTO-JUVENIL *

| O Quarto do Tronco |

Considero-me um péssimo memorialista. Guardo do passado apenas

fragmentos de lembranças muitas vezes sem importância que as justifique. Não sei a razão de sua permanência no inconsciente, a ocupar o lugar de outras mais importantes. Mas por algum motivo elas ficaram.

O quê fazer? Além do mais, às vezes tenho dúvidas da precedência de um fato sobre outro.

É o caso desses dois a seguir narrados:

Sempre pensei ser o mais antigo do quais me recordava a silhueta de

minha avó materna sentada numa cadeira, em um quarto escuro, na casa de meu Tio Paizinho.

Minha Tia Pepita, irmã de minha mãe, viera morar em Natal, com a família de Ademar Medeiros, um comerciante caicoense, - o que fez por cerca de oitenta anos - até falecer com quase um século de vida.

O episódio por mim presenciado e adiante narrado ocorreu mais ou menos em 1937, pois, na mesma época, um dia meu pai chegou em casa eufórico anunciando que Getulio tinha dado “um golpe de estado”.

Não entendi a alegria de meu pai, porque não sabia que golpe era esse e quem era esse tal Getúlio. Mas em solidariedade filial, também fiquei contente, admirando tal pessoa, por sua proeza. Eu e meu irmão Julinho saímos correndo pelo corredor da velha casa aos pulos e gritos: “Getulio deu um golpe no estado”.

Ora, o anuncio da bravata de Getulio repercutiu conforme minha lógica o entendeu, ou processou na linguagem moderna da informática. Se Getúlio golpeara o Estado devia ter sido com um facão e meu pai estava contente, certamente o tal Estado merecia. Poucos dias antes, um “chapeado” tinha sido preso e espancado com um facão “rabo de galo”, pela Policia, porque “mexia” (o termo usado foi esse) com crianças. O crime devia ser o mesmo. Getúlio, como o policial, golpeou-lhe com um facão.

O fato transportado para atualmente e na ótica de um garoto de cinco anos na classificação dos seus heróis, a exemplo do meu neto João Paulo quando tinha essa idade, Getúlio era “do bem” e o Estado era “do mal”. Assim, merecia o golpe. E daí a nossa alegria.

Anos depois, no estudo de História do Brasil, fiquei sabendo que o Estado Novo fora implantado por Getulio Vargas em novembro de 1937, com um acontecimento conhecido como “Golpe de Estado”. Meu pai também fazia referência à uma frase cunhada por Café Filho, então operoso Deputado Federal: “Lembrai-vos de 37”, numa referência, ou advertência àquele fato.

As contas feitas, eu nascido em junho de 1933, estaria na época com

quatro nos de idade.

Mas a dúvida referida reside exatamente nisso: Qual o fato que precedeu o outro?

Voltando à visita de minha Tia Pepita, ela fora a Caicó e levara umas

“cordas de caranguejo”, que se tornariam a grande novidade do momento. Por curiosidade, fui à cozinha “assistir” o tratamento daquilo que me parecia ser um tipo de “aranha caranguejeira”.

Uma outra tia retirava uma lama preta dos pequenos animais, antes de serem postos para cozinhar. Não entendia o porquê dos adultos comerem aquela coisa horrorosa, suja e peluda. Quanto à Tia Pepita, certamente estava acostumada a comê-las, mas o restante das pessoas, a minha imaginação infantil não aceitava que fizessem o mesmo.

Na velha e fumarenta cozinha algumas mulheres se davam ao trabalho de fazer o que me parecia ser uma espécie de bolinhos, e me impressionara a quantidade arrumada em cima de um caixão coberto com um pano branco. Com o passar dos anos, identifiquei naqueles “bolinhos” um tipo de guloseima que nas épocas de Natal, era costume as famílias fabricarem para distribuição entre si, como uma das comemorações da grande data da cristandade. Eram os apreciados “doces secos”.

Daí, a dúvida que me assola: era época do Natal na visita da Tia Pepita a Caicó, trazendo caranguejos?

Nesse caso, o “Golpe de Getúlio”, já havia ocorrido, sendo assim, o seu anúncio por meu pai, à evocação mais remota.

Mas voltando a minha ida à velha cozinha, na passagem para o quintal, notei que a porta do “quarto do tronco” - pois assim era chamado - ficara entreaberta e num relance vislumbrei uma velha vestida de preto, a realçar-lhe os cabelos embranquecidos caídos quase à altura da cintura.

Uma réstia de luz penetrava pelo telhado e atingia-lhe o ombro, dando

um aspecto fantasmagórico ao quadro. Naquele momento, somente não o interpretei como um “malassombro”, porque sabia tratar-se de minha avó.

Ela comia com as próprias mãos o almoço posto numa cumbuca sobre

o colo. Uma corrente partindo de uma das pernas, acima do tornozelo, a prendia a um tronco fincado no centro de um pequeno cômodo.

Ficara “fraca do juízo” e os familiares encontraram como solução para o problema, o seu confinamento naquelas condições subumanas. Justificavam a decisão com o argumento de ser muito “andadeira”.

O “quarto do tronco” sobreviveu muitos anos à sua moradora. Era o

terror das crianças, ante a ameaça, jamais concretizada, de colocá-las de castigo pelas diabruras cometidas.

Era assim que os familiares tratavam os doentes mentais em suas próprias casas. Entendiam fazer-lhes uma caridade, pois, seria pior deixá-los sair à rua e serem alvos de achincalhes dos outros, tidos como sadios.

Na inocência dos quatro anos, tive muita pena de minha avó, não pelo

que vi, mas pelo que poderia acontecer-lhe se ali aparecesse uma alma penada.

Esse o eterno medo que me assolava ao apagar a luz, antes de conciliar o sono.

Biuza
Enviado por Biuza em 04/12/2007
Código do texto: T763832