LAURINDA FREIRE DE LIMA

Uma Flor Portuguesa as Margens do rio Cajaraí...

Em Manaus, a casa de Zulmira, situada a Rua Visconde de Porto Alegre, no bairro da Praça 14 de Janeiro, ao longo de muitos anos abrigou lembranças preciosas sobre os nossos antepassados. Foi lá que as primeiras reminiscências acerca de Laurinda surgiram a partir da neta Clarice, que contou algumas histórias pitorescas originadas nas antigas narrativas de sua mãezinha:

Mamãe dizia que ela ajudava vovó na cozinha enquanto a senhora que cuidava de casa fazia a comida. Sei que vó Maria foi uma mulher dotada de uma inteligência aguçada. Adorava as coisas simples, as alegrias miúdas da vida. Também sabia de tudo, pois estava sempre atenta aos acontecimentos de Manaus. Sei também que vô Antônio nunca viajava sem ela. Mas que esposa e companheira, ela - além dos filhos - foi seu maior tesouro aqui na terra.

Laurinda Freire de Lima foi uma mulher admirável e importante no sucesso que a família teve em Fonte Boa, tanto na vida privada, quanto nos negócios. Como disse Clarice “ela foi o maior esteio social e afetivo do velho português, patrício com quem por muito tempo conviveu até os últimos dias de sua vida”.

De origem lusitana, trazia consigo a chancela do sobrenome “Freire”, de derivação portuguesa e religiosa, decorrente do latim “frater”, cujo significado é irmão, frei ou frade. Historicamente muitas dessas famílias têm origens em Pernambuco, vindas de Portugal, que depois saiu se espalhando as regiões diversas do Brasil. O sobrenome “Freire” é também considerado um dos mais populares no Brasil.

Maneco, que há muito tempo nos deixou, costumava dizer, que Zulmira tinha por sua bem-aventurada mãe uma admiração gigantesca, um afeto imaculado, e devoção quase santificada, misturada ao amor fraternal que se estendeu por toda vida. Talvez, Florbela Espanca em seu belíssimo soneto “De Joelhos” possa traduzir um pouquinho desse sentimento. Diz a poeta: Bendita seja a Mãe que te gerou. / Bendito o leite que te fez crescer. / Bendito o berço onde te embalou / A tua ama, pra te adormecer!

De outro modo, foi Eurídice, em seu relicário de lembranças, quem nos inteirou, ter sido sua avó, "uma mulher de sua época". Parafraseando o historiador Marc Bloch, “mais filha do seu tempo do que de seus próprios pais”. Talvez este conceito tenha surgido no bojo de suas memórias pela simplicidade, as prendas às coisas do seu tempo, inclusive às normas que cerceavam os seus direitos naquele “mundo machista”, que lhes impunha a pecha de ser apenas dona de casa, de cuidar da prole, de pouco ver e nada saber. Contudo, veremos que tais narrativas ocorrerão com certas restrições e resistências, levando a crer que Laurinda foi uma mulher como tantas outras subsumidas na história tradicional, que pensava e agia com posição crítica, ainda que velada e serena. A ela não cabia o ditado popular, “atrás de um grande homem tem sempre uma grande mulher”. Não, ela foi daquelas que andava destemidamente ao lado do esposo, ajudando-o em tudo, não só nos trabalhos ou nas decisões tomadas, mas nos momentos tristes e alegres, apoiando, buscando o equilíbrio de tudo.

Pouco ou quase nada soubemos a respeito dos ascendentes mais distantes, isto é, sobre os seus pais, irmãos etc. Nem mesmo seus prenomes, ou diferentes sobrenomes, o que bastaria para remeter-nos as suas genealogias mais remotas. Sabe-se, porém, que foi um ser humano incrível, que soube criar bem os filhos e construir uma base familiar sólida. O que talvez jamais tenha imaginado é que seria protagonista de uma história maior do que haveria de viver.

Em sua simplicidade, Dalila reafirmou, que sua “vó Laurinda cultivava flores à frente de casa”, essa, muita das vezes ponto de encontro da sociedade fonteboense, quando por lá ocorriam reuniões políticas, sociais e religiosas. De suas memórias, como se ali algo estivesse se materializando a frente, um faixo de lembranças brilhou. Logo reverberou, que “dindinha” havia sido em Fonte Boa muito conhecida, respeitada, caridosa, e que:

Os conterrâneos tinham por ela muito apreço. Ela era muito conhecida por lá, e muito religiosa. Mãezinha também dizia que o coração de “dindinha” não tinha cercas. Era uma mulher boa e gentil. Ela ajudou muita gente em Fonte Boa.

Quanto à escolarização, não há confirmação sobre o grau que atingiu, ou mesmo se fora feito em casa. Sabe-se ter sido “culta, educada, e que fazia conta como ninguém”. Tia-flor, afirmou que sua avó se assenhorava de uma letra bonita, e gostava de ler jornais, principalmente as sessões dos “romances” impressos às páginas dos noticiosos.

Na contramão dessa exceção não se pode silenciar que o contexto vivido propiciava às mulheres pouquíssimas oportunidades à escolarização. Sobre esse aspecto, Clarice inteirou-nos ter sua avó ajudado algumas comadres a traçar as primeiras letras, ou pelo menos, ensinado a transcrever seus nomes. Ainda que, a vila de Fonte Boa, possuísse algumas cadeiras específicas à escolarização para as meninas, não havia às mulheres casadas a oportunidade de “instrução regular escolar”, uma vez que, a elas dispunha, “exclusivamente”, velar os cuidados do lar e de suas famílias.

Embora a simplicidade de sua alma luzida e bondosa, e de carregar consigo as características de uma vida despojada, sendo esposa de um oficial graduado da Guarda Nacional, comerciante e político respeitado, acreditava ter a “responsabilidade” de sentir-se “bem-vestida”, conforme as tendências dos padrões que traduziam o gosto de uma época. Mas, para que tantas pompas? A resposta, segundo Eurídice, se dava pela obrigação de acompanhar o marido aos eventos, às viagens constantes que faziam, ou quando fossem à igreja. Para isso as roupas se dispunham mais formais, muitas delas espelhadas na cultura europeia, o que traduz tal influência presente não só em Manaus, mas no interior do imensurável vale do Amazonas. Ao final, Eurídice disse, que “vovó foi uma dama da sociedade fonteboense, por isso é provável que suas vestimentas mais solenes tivessem sido adquiridas nas melhores lojas da Capital”.

A idealização da mulher perfeita, maciçamente ancorada na beleza e cultura europeia, efetivamente ocupava o imaginário social da época. Contudo, em casa as roupas usadas no dia a dia eram bem tradicionais, algumas leves, coloridas e adornadas. Apesar das pouquíssimas mulheres imitarem a moda europeia, a maioria se vestia de forma simples, nos moldes de uma classe específica, às vezes híbrida, é verdade. Indiferente de como se trajavam, o importante é destacar a grandeza da essência, a força, a coragem e a sabedoria dessas mulheres amazonenses, como bem fez o jornal O Grêmio, edição de 05/09/1910, cuja exaltação e olhar de sua época, misturada a vários elementos da natureza amazônica, vale a pena transcrever:

A alma da mulher amazonense exulta de prazer, vai como uma alma alegre, cortando o espaço indefinido, lijeira, quando foge da prisão de uma gaiola abjeta, sem ar, libertando-se da escuridão da ignorância vil para se banhar na benfazeja luz vivificante do sol da sabedoria. E essa avezinha tão frájil vai em busca de um novo pozo, longe, numa floresta virgem, de árvores frondosas e verdejantes, iluminadas por um astro de claridade intensíssima, cercada de fontes murmurantes, de águas límpidas, frescas e inspiradoras.

As representações femininas na virada do século XIX centravam-se na imagem de uma mulher “frágil” atuando no papel de boa filha, esposa e mãe dedicada, uma imagem quase santificada muitas das vezes criada e difundida sobre construções simbólicas expressas nos periódicos de grande circulação. Eurídice lembrou que esses jornais também foram responsáveis por ditar e propagar conceitos de idealização da beleza feminina, ancorada principalmente na estética europeia:

Os conterrâneos tinham por ela muito apreço. Ela era muito conhecida por lá, mas não era frágil não. Mas ela, como muitas outras mulheres, seguia sim a moda ditada pelas lojas de Manaus, que vendiam muitos produtos e vestidos importados. Os jornais funcionavam como vitrines que despertavam o interesse dela. Tudo naquela época era de fora. Então, algumas mulheres se vestiam e as vezes se comportavam sim como as de lá da Europa, pelo menos é o que sei.

Com a devida preocupação de cautela ao abordar o tema “mulher”, seu cotidiano, sua função social ou de sua educação, não se pretende correr o risco da estagnação das diferenças. O que buscamos é, somente sinalizar os contextos em torno das questões do sujeito, e não do indivíduo, na perspectiva de alguém que recebe e desenvolve papeis dentro de uma organização social. Para tanto, apresentamos um pouco mais do cotidiano de Laurinda no sentido de observarmos as mudanças ocorridas nos costumes da sociedade fonteboense.

Continua...

LINS, Eylan Manoel da Silva. OS PIONEIROS: raízes da Família Lins no Município de Fonte Boa, 2023.

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 03/10/2023
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