LAURINDA FREIRE DE LIMA (Parte II)

A RIQUEZA DO COTIDIANO VIVIDO

Enquanto o calor cedia lentamente seu espaço para as chuvas do inverno amazônico, Eurídice continuou municiando-nos de informações. Disse que, embora sua avó tivesse pertencido a sociedade de destaque na comunidade fonteboense, e benemérita da paróquia de Nossa Senhora de Guadalupe de Fonte Boa, o que realmente a encantava era poder viver as coisas simples da vida. Para tanto, participar do plantio de praia, ajudar a plantar e colher feijão, milho, mandioca e jerimum, colher frutas no quintal, pupunha, tucumã, cajá, castanha, apuruí, laranja, tangerina, limão, abacaxi e abacate eram atividades por demais prazerosas.

Se hoje o município de Fonte Boa é reconhecido por ser um lugar de fartura, imaginemos como era antes. Entre as riquezas descritas, o pirarucu fresco ou salgado, que fazia parte não somente da dieta local, mas das vendas que seu pai realizava aos comércios de Manaus, continuaram por anos nas memórias de Zulmira. Da água de cacimba, do leite mugido, das carnes de caça, principalmente de cutia, anta, porco do mato (caititus e queixadas), das aves silvestres como mergulhão, pato do mato, mutum, dos peixes, tambaqui, matrinxã, mapará, surubim, tucunaré, bodó, curimatã, branquinha (também conhecida na região por chorona) e tantas outras espécies que habitam os ricos lagos daquele lugar, se misturavam as recordações do achocolatado natural, produzido a partir das sementes de cacau.

Vale acentuar que esse tipo de chocolate era o mesmo utilizado como bebida nas celebrações religiosas entre os Astecas, que usavam com pimenta, resultando no característico sabor picante. Contudo, foram os espanhóis - ao levarem algumas barras para a Europa - os responsáveis por acrescentar pela primeira vez o açúcar nesta bebida. Para Eurídice, esse néctar dos deuses, como chamavam os habitantes do “velho mundo”, possuía na região uma definição mais simples, porém, tão gostoso quanto os preparados no além-mar:

Chamávamos de bastão de chocolate, uma massa endurecida feita a partir das sementes de cacau. Para fazermos a bebida, ralávamos o bastão numa língua seca de pirarucu. Extraído o pó a gente misturava na água fervida e depois adoçada. Era uma delícia.

Na época das tartarugas e demais quelônios surgidos nas alvas areias praianas, a cozinha da casa de Laurinda também concebia pratos típicos, como o picadinho, sarapatel, o assado, o guisado e a farofa no casco. Feijão cozido com toucinho feito no fogão a lenha, igualmente faziam parte da alimentação da família. Na casa dos avós geralmente havia um ou mais convidados para desfrutar do banquete servido. É claro, finalizou a tia querida, como uma boa portuguesa por lá também não havia de faltar o vinho.

Mas os vinhos que costumavam ter a mesa da casa da vovó, além daqueles vindos da terrinha natal dela, comprados nos armazéns de Manaus, eram os vinhos de açaí, o de bacaba e o de patuá.

Em outra ocasião, esboçando um enorme e prazeroso sorriso, foi Naíde, ao se entregar às lembranças oriundas dos relatos de sua mãe, que acrescentou o fato de seus avós viajarem constantemente para Iquitos, no Peru. Não se tinha notícia do porquê? Eurípedes foi quem desvendou o mistério, afirmando que tinham uma propriedade produtiva por lá. Houve também a informação preciosa levantando a hipótese de que um dos filhos do casal haveria se fixado por aquelas paragens. Ambas as circunstâncias talvez justifiquem as constantes idas e vindas ao território peruano, principalmente as viagens ocorridas entre 1914 e 1923, onde o nome de Antônio e Laurinda aparecem com frequência na relação de passageiros da primeira classe dos vapores, São Luiz e Cosmopolita.

Colaborando com outras notícias, Whastinho nos contou ter ouvido de Zulmira algumas histórias sobre as molecadas que Maneco fazia com seu avô Antônio. Também lembrou que todos os netos se referiam aos avós maternos, pela alcunha de “Dindinho” e “Dindinha”. Apesar de alguns lugares o termo se encontrar em desuso, é comum no Nordeste ouvir essas expressões ao se referir sobre os avós. Quanto ao significado, grande parcela dos dicionários traduzem ser “Padrinho ou Madrinha”, na sua forma afetuosa e diminutiva.

Posto isso, apresentamos derradeira estação, cultivada no jardim da saudade, com o objetivo de repousar o tema.

FLORES NO JARDIM DA SAUDADE...

Entre as muitas pregações literárias do padre Fábio de Melo, há uma em que sugere a seguinte reflexão: “o tempo passa e nossas sementes vão ficando pelos caminhos, vão enraizando, tomando suas próprias vidas”.

Tais palavras são oportunas para o fechamento deste capítulo, pois alude de forma simbólica, que os “Freire de Lima”, além de terem espalhado nesse chão as sementes de suas histórias, também deixaram em Fonte Boa fortes lastros que se enraizaram nos caminhos de nossas representações sociais.

Conta-se por lá, que Antônio e Laurinda repousam na cidade dos Mortos, no campo santo do cemitério de São João Batista. Infelizmente, assim como grande parte dos municípios ribeirinhos este lugar não é visto como templo de memória e história social. Nele não há um projeto estrutural, nem registros antigos, nem qualquer ato de preservação. Embora não encontrado suas sepulturas, percebendo, no silêncio do momento, quando a gente olha para o passado deles, e sorri, é porque valeu a pena. Por isso, sempre que visitamos Fonte Boa, depositamos naquele jardim de saudade um buque de flores silvestre em homenagem as suas memórias, para que a vida por lá siga mais florida e perfumada, e suas histórias possam continuar sendo revividas, hoje e sempre.

LINS, Eylan Manoel da Silva. OS PIONEIROS: raízes da Família Lins no Município de Fonte Boa, 2023.

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 03/10/2023
Código do texto: T7899942
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.