BELARMINO FERREIRA LINS - O PIONEIRO

"SEU BELINHO"

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte...”.

A frase de Euclides da Cunha, imortalizada no clássico "Os Sertões”, ao celebrar a força e a bravura do povo do agreste, defini, em sua essência, a pessoa que foi Belarmino Ferreira Lins, e tantos outros nordestinos que, como ele, souberam manter acesa a chama vibrante e intensa de suas histórias.

Indubitavelmente, Belinho foi “antes de tudo”, um forte. E quem nos ajudou a reconstruir as primeiras imagens deste ícone familiar foi o professor Eurípedes Lins ao referendar no contexto de vida de seu pai a consagrada epígrafe acima destacada:

Seu avô foi um dos milhares de sertanejos nordestinos que souberam com muita habilidade transformar o medo em esperança, a tristeza em fé, e as dificuldades, que muitas das vezes assolaram aqueles ermos rincões, em força para continuar vivendo e sonhando.

Infelizmente, poucos foram os descendentes que tiveram a oportunidade de conhecê-lo em vida. Isso não quer dizer que, com ele, não se tenha convivido profundamente, pois sua memória sempre esteve presente no cotidiano das incontáveis lembranças familiares.

Sua biografia tem início no sertão do Cariri, na pequena Vila de Milagres, Ceará. Foi lá, aos primeiros raios de sol do dia 29 de setembro de 1887, que Belinho veio ao mundo. Nasceu em casa, numa quinta-feira ensolarada, longe de todos os recursos médico-hospitalares. Até aí tudo bem, porém, ao chegar neste plano existencial o sul do Ceará sofria o epicentro terrível de um surto de varíola que assolava, entre outras, a região daquele vilarejo. Por lá, para se ter ideia, um cronista da época publicou no jornal Cearense, edição de 10/08/1887, que “sobreviver ao evento do parto, por si, era uma enorme conquista, tanto para mãe quanto a criança”.

E como se não bastasse, antes de completar seu primeiro ano de vida, em 1888, o Nordeste veio a sofrer com nova crise climática, um período de estiagem que se estenderia até o ano de 1900. Apesar de não alcançar a mesma proporção gigantesca, aterrorizante e histórica como a da “grande seca” de 1877/1879, essa se destacou na esfera conjuntural da falta de chuvas, fome, conflitos, morte, migrações, e pela esperança no auxílio público que pouco ou quase nada chegava. Ademais, nesse ano, ainda bebê de colo, Belinho ficou órfão de Pai.

Eurípedes, que exerceu a cátedra de História do Brasil no Colégio Senador Lopes Gonçalves, onde se aposentou como Diretor, aproveitou o assunto para esboçar breve exposição sobre esse quadro:

... A seca no Nordeste muito além de suas questões climáticas nos mostra o quanto esse evento ajudou alterar as estruturas da sociedade cearense no seu aspecto político, econômico e social. E sobre ao seu avô Belarmino, eu acredito que, sob a proteção de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, esses acontecimentos foram suas primeiras provações, pois à época sobreviver ao parto e aos primeiros anos de vida convivendo com as constantes epidemias biológicas e sociais que flagelavam e enlutavam as famílias daquela região, tão carentes de atenção do Estado, era sempre visto como uma vitória provida pela intercessão divina de um milagre.

Seu batismo ocorreu no dia 02 de outubro do mesmo ano, na vistosa Matriz de Milagres. Foi lá que recebeu das mãos do Vigário Manoel Rodrigues Lima, o sacramento das águas. Os padrinhos foram o senhor João Clímaco de Araújo Lima e a esposa, dona Izabel de Araújo Lima. João, mais que amigo e correligionário partidário de seu pai, era também o tabelião do Cartório da Comarca local.

A casa era grande e estava sempre bem abastecida, não só com os mantimentos que ocupavam a dispensa, mas de carinho e preceitos. Com o nascimento de Belinho, o clã dos “Albuquerque Lins” (que tomou o nome de Ferreira Lins) cresceu para oito, um número de membros até razoável para a época. Durante o dia a residência vivia cheia de comadres, amigos e partidários do “velho Belo”.

Seu pai Belarmino Ferreira Lins e Mello - cujo nome herdara - foi um homem benquisto e altamente respeitado na cidade. Sua admirável e dedicada mãe, Maria José de Albuquerque Lins, descendia de família há muito estabelecida em Milagres, na região do Crato.

Belinho costumava dizer, que além de estar sempre bem-vestida, era também uma mulher letrada, que gostava de escrever versos, algo incomum para uma época dominada pelo machismo. Além de tudo tinha o maior orgulho de lembrar a todos, ter sido ela, o seu maior exemplo de vida. Também revelou que fora suas alvas mãos as responsáveis por guiar os primeiros compassar do lápis que o alfabetizou naqueles ermos rincões nordestinos.

Vale sublinhar que o caçulo tinha pouco mais de cinco meses de idade quando seu pai, vítima de um infarto fulminante, retirou-se desse plano espiritual. O desaparecimento do patriarca, ocorrido em 1888, deixou uma lacuna gigantesca no seio familiar, provocando, inclusive, brusca mudança nos modelos sociais e econômicos da família. Com o passar do tempo a vida farta começou a definhar, e na contramão do passado recente, as adversidades – de forma impiedosa – tentaram insidiosamente tomar as rédeas de suas histórias. Porém, Maria José, como é de praxe das mulheres sertanejas, soube enfrentar com parcimônia e galhardia os infortúnios surgidos a sua frente.

O saudoso Magistrado de Contas (Belarmino Filho), que do pai, e do avô, herdara o nome e o gosto pela política, em certa ocasião, debruçado em sua rede atada na varanda de sua casa localizada no Tarumã, com a voz enrouquecida, contribui com este enredo, dizendo:

No entrelaçado das muitas histórias em que papai nos contava, lembro com muita claridade ele dizer que, sua mãe, Maria, foi sua maior heroína, e que seu irmão, Lacordaire, o seu herói, pois na ausência de seu pai foi ele quem ajudou na sua criação, na formação dos muitos valores que o alicerçaram, inclusive, na construção de sua visão de mundo.

De certo que os outros cinco irmãos também lhe doaram um cuidado caro. Entretanto, Lacordaire foi mais que um irmão fraterno, foi um pai amoroso, responsável, zeloso e sempre presente. Foi o braço forte e amigo que refletiu os exemplos virtuosos que o ajudaram a construir seus preceitos morais e éticos. Na terra pátria, assim como seu genitor, seguiu a profissão de comerciante, se tornou homem público, político respeitado e pai de familiar exemplar. A ele coube, com suas irmãs, a imensa responsabilidade de promover a família, uma das mais antigas do nordeste brasileiro.

Mas ter crescido sem o pai não quer dizer que sua infância ocorreu sobre o manto fúnebre do luto eterno, como provavelmente “teria vivido a sua mãezinha”. Sem dúvida que a falta da figura paterna amornava os sentimentos com um vazio. Mesmo assim a infância e juventude foram intensamente vivenciadas.

Dessa maneira, amparado e bem cuidado, “Belinho” começou a deslumbrar a vida que o mundo ia descortinando a sua frente. Por anos manteve a juvenil lembrança de quando corria pela casa e a mãe o chamava atenção. Relembrou em repetidas histórias o saudoso pote d’água onde saciava a sede, a cozinha de chão batido, os quadros enfileirados na parede da “sala grande”, a velha arca” revestida de couro, com as letras BL timbradas na lateral, do qual significado se tratava das iniciais do nome de seu pai.

As memórias reconstruídas por cada um dos filhos traziam histórias interessantes. Uma delas dizia que, na mesa da cozinha da casa, em Milagres, repousava o bule de café, cujo cheiro forte da bebida se misturava com as músicas dos poetas retirantes. Ao longo do dia, enquanto menino, o tempo era dividido entre os estudos, as brincadeiras e os deveres domésticos. Depois do jantar, quando as galinhas se empoleiravam, pedia a benção da mãe e dos irmãos, para depois se recolher a mais uma noite morna de sono.

Certo dia, Clarice, manifestando seus pensamentos, como um reflexo surgido de um retrovisor, ao sabor dos passos de uma criança nos ajudou remontar esse momento. Com clareza de detalhes reviveu épocas vivenciadas por seu “paizinho”. Em uma delas dizia que, em Milagres, somente depois de cumprir “as obrigações de casa e dos estudos”, é que recebia autorização para ir brincar no imenso quintal, que de tão grande se confundia com todo o Cariri.

Relatou, dentre os muitos elementos que o encantava, haver um em especial, a festa do Reisado, que ocorria no fim de ano. Sendo assim, no decorrer das entrevistas procuramos colher alguns registros das cantorias sertanejas do evento por ele vivenciado. Porém, sem sucesso, lembramos quando residíamos em Fortaleza, entre os anos de 1977 e 1978, uma música de reisado entoada por diversas pessoas que, após deixarem a missa em procissão pelas ruas, saiam batendo de casa em casa para pedir esmola aos pobres. A cantiga popular muito viva em minhas memórias, assim ressoa seu canto: “Meu senhor, dono de casa/ abre a porta acende a luz/ venho aqui pedir esmola/ pelo nome de Jesus” ...

Em seu olhar de menino o mundo lá fora estava sempre colorido e perfumado com as flores primaveris do agreste. Naquele lugar, seus sonhos e brincadeiras tomavam vida. As encantarias sobressaídas das tradições locais lhe carimbavam o direito de subir nas árvores e colher suas frutas, sentir o cheiro da terra, ver as estrelas cadentes, caçar jumento e fugir da Caboclinha, terrível e temida caipora das matas.

Conforme ilustrou Dalila, sua “mãezinha” costumava dizer que, o “seu Belinho” – como carinhosamente o chamava – tinha essa mania de ficar relembrando os idos da infância. Isso ocorria principalmente quando ele tocava o seu “precioso clarinete”, geralmente, após o jantar dos finais de semana. Seu pai também costumava falar do orgulho de ter sido uma das muitas crianças do sertão que pôde um dia gozar da mesma liberdade usufruída pelos camaleões, calangos e bacuraus da caatinga de sua terra; esses, por diversas vezes companheiros de suas peripécias.

A propósito, um fragmento contido na música “Coração do Agreste”, de Aldir Blanc e Moacyr Silva, interpretada especialmente pela cantora Fafá de Belém, bem traduz os momentos em que o patriarca, abrindo os laços da infância, costumava rememorar sua história de vida. Diz a canção:

Regressar é reunir dois lados / a dor do dia de partir / com seus fios enredados na alegria de sentir. [...] Rio, voltei no curso / revi o meu percurso / me pedir no Leste. E a alma renasceu / com flores de algodão / no coração do agreste...

Alberto, imbuído deste mesmo sentimento, foi quem primeiro contribuiu trazendo algumas informações sobre os estudos regulares de seu genitor:

Papai foi alfabetizado em casa, lá na terra dele, no Ceará. Depois fez seus estudos em uma pequena escola local administrada pela Igreja Católica de Milagres. Ele dizia que a educação era rígida, e mais rígida ainda eram as práticas dos padres-professores que os corrigiam com a velha palmatória. Bem sei como isso funcionava, pois na minha época também fui vítima dessa famigerada.

Sentado numa cadeira de embalo disposta no pátio da sua casa estabelecida no centenário bairro de Educandos, o saudoso tio lembrou-se de outras peculiaridades em que seu pai, à beira de memoráveis prozas, costumava trazer aos familiares:

Mas o que ele gostava mesmo, e sentia muita saudade, era de quando ainda menino chegava da escola e sentia o cheiro do feijão cozido na panela de barro, feito no fogão a lenha, cuja guarnição na hora do almoço, estava sempre acompanhada do cuscuz que sua mãe fazia.

Maneco observou, que apesar das muitas atribulações vivenciadas por seu genitor, sua imaginação de criança superava as adversidades das quais ousavam rachar o solo daquele chão, que mesmo distante, seguia batendo fortemente em seu coração.

Os lampejos da infância de Belinho, visto por um caleidoscópio simétrico, acabaram se entrelaçando no girar dos reflexos das luzes que humanizaram sua história. O infortúnio de ter crescido sem a figura paterna, e as duras dificuldades, foram se misturando geometricamente com a prazerosa afetividade familiar e as muitas alegrias vividas no belo lugar que o viu crescer.

De certo a História enquanto ciência, não se constrói por intermédio do olhar de um caleidoscópio ou microscópio. Contudo, lançando mão da proposta traçada pela historiadora Mary Del Priore, usamos os termos para torná-la mais interessante, e porque não dizer, poética. Já a forma com que foi criada a representação social do homem sertanejo, e do próprio sertão ainda perdurar na contemporaneidade da imaginação do brasileiro, como os processos de atraso, violência e seca, é importante frisar, que havia sim essas peculiaridades, muitas das vezes destacadas pelo ponto de vista da elite que representava o flagelo e a desigualdade social imposta por eles. Por outro lado, podemos notar a grandiosidade das belezas naturais e socioculturais da região, que devem ser destacados na mesma, ou maior proporção.

Enfim, assim passaram-se, no embalo do tempo, algumas rodas de estações.

Continua...

LINS, Eylan Manoel da Silva. OS PIONEIROS: raízes da Família Lins no Município de Fonte Boa, 2023.

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 05/10/2023
Código do texto: T7901775
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