Belarmino Ferreira Lins (PARTE II)

- O DESPERTAR DA MOCIDADE NO SERTÃO DO CARIRI

A invenção da adolescência, surgida na esteira das transformações econômicas e sociais pelas quais passou o mundo no século XIX, manifestou-se pelo prolongamento da dependência familiar e a formação para o trabalho. Em sua compreensão atual, sabe-se que, a adolescência é uma fase de amadurecimento, de transição no desenvolvimento físico e psicológico em que o ser humano deixa de ser criança e entra na idade adulta.

Em Milagres, a mocidade de Belarmino despertara sobre o seu olhar de menino. Com o tempo, foi se descortinando das vendas do mundo, percebendo que as responsabilidades com a família e com o lugar onde vivia estavam aumentando gradativamente, fazendo desabrochar suas novas concepções de vida. As crônicas do tempo registraram essa fase envoltas a desafios e provações que pareciam se agigantar a sua frente. Na mesa do jantar disposta na cozinha de casa, habitualmente relembrava a luta incessante dos conterrâneos para sobreviver diante da penúria dos enormes períodos de secas, que insistiam, depois de uma breve pausa, promover violentas estiagens na região. Contudo, fazia questão de desmistificar aos filhos e amigos, essa “coisa” de que, naqueles idos, o Nordeste era somente “a seca” e outras lamúrias históricas descritas. A propósito, havia uma beleza imensurável centrada especialmente no povo nordestino, na natureza local, na fartura quando vinha à chuva, na radiante cultura, e no mar do litoral, que décadas depois ajudou a transformar o Ceará.

O padre, detentor de enorme poder e influência na vila, vez outra ia à sua casa para desfrutar do almoço e receber o óbolo, que sua mãe fazia questão de ofertar à Igreja. As mulheres com o véu na cabeça, os sermões, o sino dobrando, e a hora da saída para desfrutar da liberdade de brincar na praça, sempre foram latentes nas reminiscências do jovem protagonista, bem como os quadros sacros enfeitando o lar da família, as quermesses e as muitas tradições populares que costumava apreciar. As feridas causadas por essa irreparável perda custaram a sarar. Mas, como a vida é dinâmica, houve o dia em que as cicatrizes começaram a revelar a hora de seguir em frente rumo a uma nova história.

João Guimarães Rosas, no entrelaçado das muitas páginas de seu vasto romance, “Grande Sertão: Veredas”, em momentos distintos escreveu: “o sertão está em toda parte”, “está dentro da gente”, “... é do tamanho do mundo”. Sem dúvida, esse foi o sentimento que Belinho carregou consigo durante toda sua vida, afeição ao lugar que pode testemunhar o desabrochar e as experiências de sua adolescência, do raiar dos primeiros anos de sua maioridade; de seus primeiros sentimentos de homem feito.

As memórias, constantemente reconstruídas a partir de múltiplas vozes, revelaram a vivência nos estudos, as obrigações de trabalho, os relacionamentos familiares, as amizades, a primeira paixão e as muitas lágrimas de saudade. Porém, buscando mais informações sobre essa fase, recordo de uma sexta-feira de abril de 2005, banhada por uma tarde quente de verão amazônico, eu e Maneco, sentados à sala de estar da casa de Dalila – guardiã de nossa história. Era mais uma das muitas visitas com o objetivo de buscar informações sobre nossas raízes. Nesse dia, muito emocionada, esclareceu que, seu “paizinho”, já “moçoilo”, por lá, aprendeu uma lição de vida tão grandiosa que jurou colocar em prática em sua vida, assim como retransmiti-la e fazer germinar no seio de sua família enquanto vida tivesse. Ela se referia às correntes de auxílio mútuo que sua avó havia estabelecido no seio familiar como forma de união perene. Sempre que algum membro estivesse passando por dificuldades, todos os outros irmãos teriam que se dispor da “obrigação fraternal” de ajudar o menos favorecido. O propósito era fortalecer os laços de união, para “juntos e mais fortes” poderem lutar contra as agruras que, de forma birrenta, teimavam se avizinhar daquele lar. E foi assim, com muito esforço e determinação, que conseguiram superar as barreiras encerradas a frente. Essa união, reproduzida em sua essência a partir da casa edificada em Fonte Boa, nada mais é que, um imenso legado afetuoso e moral deixado por Belarmino e Zulmira a seus familiares.

Maneco, que guardava muitas narrativas, colaborando com o repertório, assomou que, em Milagres, a família de seu pai mantinha na fazenda um pequeno plantel, que ajudava a prover os alimentos necessários: carne seca, leite de cabra, mandioca, macaxeira, batata-doce, jerimum, milho, feijão, amendoim, caju, ananá, rapadura e outros produtos. O peixe, apesar de raro, também faziam parte da subsistência. O emprego e a geração de renda eram providos principalmente pelos apaziguados dos coronéis locais. A vida era difícil, ainda assim, mesmo que omissos, tanto o Império quanto o Estado Republicano, em suas respectivas conjunturas, vez outra “tentaram” efetivar ações para amenizar as dores surgidas dos efeitos naturais e políticos da região. Muito discurso, pouca ação, como é nos dias de hoje.

Eurídice, num dedo de prosa ocorrido em sua casa no bairro da Praça 14 de Janeiro, enriqueceu o trabalho fornecendo preciosos dados sobre a vivaz juventude de seu “paizinho”. Naquela manhã de sábado ensolarado, depois de tomarmos um suco de laranja e darmos várias risadas, suas lembranças - algumas alegres, outras nem tanto - começaram a se revelar de forma mais intensa. Disse-nos, que a religiosidade e a fé de seu “paizinho” foram construídas muito cedo dentro da “rígida cultura católica daqueles tempos”. E, aos domingos, ele frequentava obrigatoriamente a missa, tendo inclusive de pedir a benção do padre e beijar-lhe a mão. Mas do que verdadeiramente gostava era do tempo que dispunha depois da missa para ficar na praça, em frente à Matriz. Lá, tinha a oportunidade de se encontrar com os amigos e cortejar as meninas da cidade, quer dizer, uma menina em especial: a filha de um “certo” coronel local, ferrenho opositor político, e dos ideais republicanos naquele lugar.

Sendo o espaço e o tempo elementos históricos complexos, nota-se, no último relato, a proposta de duas grandes discussões. Neste caso, apenas a reflexão do contexto ao qual os fatos ocorreram: a relação de poder da Igreja Católica junto à sociedade, e as conjunturas políticas do coronelismo e das oligarquias que puniam os relacionamentos entre as famílias.

A parte disso, o que se ver no íntimo dessa história, é o carinho e o amor sempre presentes, a fé arraigada em suas concepções existenciais, e a forte base da educação doméstica, qualidades importantes na construção de valores fundamentais, que ajudaram Belarmino e seus irmãos, a se revestirem da coragem necessária para a construção de atitudes, que os levariam a um futuro promissor e mais digno. Assim decorreu o tempo, como bem diz o poeta Thiago de Mello, em sua “Cantiga quase de Roda”: Na roda do mundo / lá vai o menino /rodando e cantando / seu canto de infância...

Continua...

LINS, Eylan Manoel da Silva. OS PIONEIROS: raízes da Família Lins no Município de Fonte Boa, 2023

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 05/10/2023
Código do texto: T7901789
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