O Justiceiro é uma ilha

Eu tenho me indagado sobre o seu perfil onde declara que detesta injustiças e assim dá a entender que tem a especial qualidade da honestidade a toda prova. Eu bem que gostaria de ter assim tanta certeza de minha noção de justiça e de minha honestidade.

É verdade que sei que estou entre aqueles que o Mestre de Nazaré colocou entre os bem-aventurados que têm sede e fome de justiça. Mas também choro e desejo ser consolada. Choro inclusive por mim mesma, pelos meus vacilos, pelas incontáveis vezes em que pisei na bola e feri pessoas que amo ou deveria amar. Lamento minhas incertezas e sobretudo o perigo de agir nas sombras, já que não alcanço definir com todos os contornos e detalhes o que é certo ou errado. Eis aí o tal discernimento que, acredito, nossa inteligência só alcança with a little help from Holy Ghost, não basta apenas os amigos. E essa é a tal consolação, a de saber que em meio a meus tropeços no escuro está lá o Bem Amado a velar por mim. Essas coisas ridículas da fé deísta, infantilidades para alguns, esperança e serenidade para os crentes.

De maneira que não me considero auto-suficente e iluminada a ponto de definir o que seja "as" injustiças que mereçam minha repulsa. Primeiramente porque, em nossa realidade material, o que é bom para mim pode ser ruim para outros. Exatamente por isso é que temos os conflitos sociais e políticos e necessitamos de árbitros para intermediar o entendimento, quando se tem a felicidade de chegar a algum. Ao observar a dinâmica do mundo natural, percebe-se claramente que trata-se de um encadeamento de eventos ruins para uns, ótimos para os outros. A gazela abatida pela leoa se deu mal, foi ruim para ela, bom para a cria da fera e a própria fera que a caçou e quem sabe melhor ainda para as hienas, que tiraram vantagem sem muito esforço. E por aí vai. Enquanto estivermos cá neste mundo das sombras, como o definia Platão, é melhor ser prudente e andar com uma lanterninha que vem a ser a nossa desconfiança de nós mesmos e de nossos julgamentos inflexíveis e definitivos. O exame em meio à penumbra de nossos juízos deve começar em nosso íntimo.

Já dizia minha mãe, que se fazia de boba mas tinha uma sabedoria que até hoje me alimenta - ainda que tivesse lá seus defeitos que a gente vê melhor no escuro de nosso própio porão; uma sabedoria bem popular e simples: "você tá como o sujo falando do mal lavado, é melhor olhar primeiro para seu rabo". E ela levava tão a sério essa coisa de consciência que, apesar de não saber pedir desculpas, sempre tinha um gesto delicado para sinalizar que, finalmente, havia percebido que estava mais mal lavada que a sujeira que repreendera. E ela chorava. E eu a amei. E sigo amando-a em meio a meus conflitos e especialmente quando adentro meu porão assustador. Mas logo o medo é dissipado, pois ao chegar até minha miserável imperfeição é possível vislumbrar a perfeição misteriosa da junção tanto dos porões de cada qual como do mosaico em fusão da beleza de todas as dádivas de bondade e talentos concedidos a cada um. É possível então vislumbrar o brilho misterioso, aquele do amor que dissipa qualquer temor, como ainda ecoa a palavra nas epístolas apostólicas.

No entanto não desejo aqui fazer a apologia do relativismo manifestada naquela afirmação batida e duvidosa de que "cada um tem sua verdade". Por mais difícil que seja alcançar a verdade absoluta, vale o esforço. Passamos a vida inteira atrás da felicidade que se reveste da verdade perseguida e muitas vezes perdida de vista. É evidente que temos inteligência e hoje bastante apurada em tecnologias e métodos para descobrir quem matou alguém, quem roubou e outros atos nefastos. Houve um crime, bem, alguém o praticou. O julgamento temeroso está em dizer "aquela ali nunca vai mudar, vai ser sempre uma egoísta centrada em si mesma" ou coisa que o valha. Neste ponto crítico fecham-se as portas para que o objeto da sentença possa se defender, para que se expresse e eu não tenho visto diálogo sem resultados de conciliação e entendimento.

Portanto, a complexidade da realidade das relações entre as pessoas é cruelmente reduzida na afirmação de "detestar" injustiças. Pois quem é que define com irretocável clareza o que seja a tal injustiça? Depois há a inconveniência do detestar, que ao se cristalizar pode revelar-se como intolerância e ressentimento. Além do que é possível que degenere ainda em uma auto-imagem inflada e, de quebra, alguma soberba desapercebida. E o mais lamentável, pode estilhaçar a comunhão entre as pessoas e encerrar o justiceiro no mais irremediável isolamento; uma ilha de perfeição cercada por um oceano de imperfeitos.