CARTAS DA GUERRA Nº 4 - PARTE INTEGRANTE DO ROTEIRO DE FÚRIA E REDENÇÃO
Benjamim,
Perdi a noção do tempo, já não coloco data nas cartas porque não sei me situar no tempo. Perdi também a noção do que é certo ou errado, perdi as emoções. Meu espírito está angustiado, reajo como um animal. Assim como os demais, só conto com meus instintos mais primitivos buscando neles a esperança de continuar vivo. É só o que impor-ta, sobreviver.
Essa é uma longa carta, a maior de todas. Os fatos que vou narrar me voltam à mente como um caleidoscópio, movimentos e pensamentos num cenário de horror.Recebemos ordens para combater, numa manhã que não me lembro o dia. Quando nossas tropas defrontavam Monte Castelo, os alemães contra atacaram e expulsaram os americanos de Monte Belvedere, que fica na mesma região, e comenta-se que fizeram muitos prisioneiros. Com esse ataque o nosso flanco esquerdo corria perigo. Deslocamo-nos por um terreno escarpado e escorregadio, pois choveu quase a noite toda. O barulho da artilharia inimiga nos fere os ouvidos. Francisco treme a cada disparo dos canhões germânicos.
Depois das sete da manhã, os batalhões ultrapassaram a base de partida. Fomos colhidos logo pela barragem dos morteiros inimigos, colamos ao chão. Não passou meia hora e a 4º Companhia foi hostilizada pelos fogos das metralhadoras alemãs, ficaram retidos na baixada.Nosso comandante, vendo a difícil situação do outro batalhão, pôs em ação a reserva de ataque, soldados descansados e bem alimentados, se é que se pode chamar aquela ração de animal de alimento. De onde estávamos, vimos de olhos esbugalhados, o batalhao I/lº R.I. transpor a primeira zona da barragem inimiga e se lançar para a parte mais alta do morro, buscando tomar as posições alemãs. Alguns soldados conseguiram se aproximar da encosta, mas não os vimos voltar. A resposta foi brutal e instantânea, e eles abriram fogo contra nosso batalhão, que foi obrigado a recuar. Não tivemos nem como recolher nossos mortos, ficaram caídos, ensanguentados no topo do morro. Vimos, impotentes, a face da morte, da morte mais horrenda. Tre-mi, meu coração disparou, agarrei meu fuzil com mais força, numa tentativa inútil de lhes mandar minha energia, meu ódio. Francisco vomitou.
Às três horas da tarde, já escurecia e a neve ameaçava cair. O General deu a operação por encerrada, ordenando que os batalhões voltassem à posição de partida. Voltamos cansados e famintos, mas em completa ordem, marchando valentemente apesar do fogo inimigo estourar nos nossos ouvidos. O lº batalhão de saúde passou por nós, tentando recolher os feridos, enfermeiros com suas padiolas que logo voltariam ensanguentados, carregadas de gritos de dor e desespero, companheiros com as pernas arrancadas e olhos irados. Mas os mortos ficaram lá. Vi também alemães feridos, gritando por socorro, mãos se levantando no solo, colorindo a neve com o rubro do seu sangue. A dor é igual em qualquer homem, alemão ou não. Fomos derrotados nessa primeira batalha porque agimos de modo isolado, precisamos atacar juntos toda a região de Monte Castelo e cercá-los lá.
Quando puder, volto a escrever.
Rafael.
OBS: Parte integrante do roteiro "Fúria e Redenção", escrito por José Donizetti Morbidelli, uma adaptação da obra homônima de Ditinha Lima.
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JDM