Eu não tenho problemas

Há um tempo atrás cheguei a pensar que eu era a pessoa mais desgraçada do mundo e que ninguém sofria mais do que eu. Realmente, foi uma fase bem ruim pra mim, a pior da minha vida, dessa minha vida sem problemas.

Eu não tenho problemas. Problemas tem a menina do poema, que sofreu maus tratos e por isso foi tirada da mãe, que passou por todos os abrigos da cidade depois disso e não foi legal, que caiu nas drogas, que voltou pra casa da mãe e saiu de novo, que foi morar na casa de uma amiga e que agora está há muitos dias no hospital por um problema sério de saúde, decorrente sabe-se lá do quê. Que tem uma vida desgraçada e tem sempre um sorriso e uma bobagem pra falar, ainda que seja deboche ou disfarce pra essa vida desgraçada. No hospital, a mãe está cuidando dela, mas ela quis ver a professora da escola.

A amiga dela também tem problemas. Mora com a mãe e com os irmãos (e com a menina do poema) e é espancada cada vez que a mãe descobre que ela matou aula ou que a encontra bêbada ou drogada. Ela fala que a vida dela é um inferno e que larga as drogas quando quiser. Mas, ela deixa a mãe bater, não reage, não quer bater na mãe.

O menino da quinta série também tem problemas. Assíduo freqüentador da secretaria da escola, os professores não o suportam na sala de aula. Tem doze anos, um corpinho de nada e uma carinha de vítima que quase não me deixam acreditar nas barbaridades que ele faz. A mãe dele não tem cara de vitima, e pra mostrar que não deixa barato o que ele apronta na escola, ela mesma levantou a camisa dele pra mostrar as marcas que ela tinha deixado. Chicoteou o menino com um fio de luz até não sobrar um centímetro quadrado sem dor. As marcas ainda estão lá, vão ficar pra sempre. Mas, ela não sabe por que ele é assim.

O menino da turma da noite também tem problemas. Uma fisionomia que me faria fugir dele se eu não o conhecesse, tem dezesseis anos e o seu primeiro feito foi participar de uma roleta russa onde uma pessoa morreu, quando ainda era uma criança. Depois disso ele já caiu de bêbado e chegou machucado na escola, já parou de beber, já fumou, já parou de fumar, já levou tiro que era pra ele, já foi viciado, já me disse que não era mais e já voltou a ser, já saiu de casa, já trabalhou na obra, já roubou e já foi preso, foi solto por ser menor. Ele não está freqüentando a escola.

A menina que engravidou do padrasto também tem problemas. Ela também não está freqüentando a escola.

E eu estou aqui, preocupada com um projeto de literatura que não quer sair, pensando no projeto de inglês que tenho que terminar, e me desesperando com a iminência das minhas práticas de estágio na faculdade, que vão ter que acontecer a partir do início do ano que vem. Ah, também estou muitíssimo preocupada com sobre o que vou escrever no meu TCC.

Aquele problema que eu tive, sabe? O maior da minha vida? Hoje eu dou risada dele.

Deus, como eu queria que essas crianças um dia pudessem rir de tudo isso...

Natália Cristina de Almeida Souza
Enviado por Natália Cristina de Almeida Souza em 28/11/2009
Reeditado em 23/01/2010
Código do texto: T1949862
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