Carta a uma amiga perfeita

Amiga (pelo menos da minha parte)

Ficámos amigas há algum tempo, talvez por termos gostado da personalidade uma da outra. Gosto de todo o estilo de pessoas, simples e complexas, simpáticas ou tímidas, amáveis ou distantes, e de vez em quando, há pessoas que se destacam das outras por parecerem muito melhores que a maioria.

És sem dúvida uma dessas pessoas que se destaca pela inteligência, pela cultura muito acima da média, pelo civismo e tantas outras qualidades que seria inútil referir agora. Não há nada que não saibas, não há nada que te escape, tens opinião sobre absolutamente tudo. Não há dúvidas que admiro todas estas tuas qualidades.

A verdade é que não há pessoas perfeitas. O teu reverso da medalha é que tanta informação e tanta inteligência também não te tornam mais feliz. O mundo e as pessoas fazem-te infeliz porque não obedecem a uma realidade que esculpiste a régua e a esquadro, milimetricamente perfeita. Crias expectativas acerca das pessoas que não correspondem porque não são simplesmente como tu. Ficas à espera que reajam como tu queres e quando não o fazem, esfrias até arranjar maneira de cortar com elas. Chegas inclusive a criar confusões e conflitos por onde passas porque exiges aos outros que encaixem na tua realidade perfeita e, evidentemente, a maioria não cabe dentro.

Connosco foi assim. Criaste muitas expectativas comigo, quiseste que eu fosse como um alter-ego, mas não deu. Sou muito diferente de ti, muito menos informada, menos culta, menos controlada. Não duvido que sejas muito melhor que eu na maioria das coisas. Sou o que sou e venho de onde venho. Sou uma filha de emigrantes que viveu num bairro social muitos anos e que teve uma educação pública generalista e não tenho vergonha nenhuma de o assumir. Ver como as pessoas carenciadas vivem tornou-me muito mais tolerante relativamente ao mundo e às pessoas. Tive amigos que se meteram na droga, amigas que engravidaram aos 16 anos, amigos da minha idade que já morreram há anos por se meterem em rixas ou por doenças graves, convivi com pessoas que dizem palavrões palavra sim palavra não e todas essas pessoas contribuíram a mulher que sou hoje.

O mundo não é perfeito. As pessoas sentem-se cada vez mais infelizes e sós. As pessoas têm os seus imensos defeitos devido a infâncias complicadas e por causa de todos os problemas por que passam. Se tivesses convivido com essas pessoas, talvez fosses mais tolerante com as imperfeições de todos nós. E mais ainda, talvez fosses mais feliz se fosses capaz de viver cada dia que passa sem regra nem esquadro, sem rede nem expectativas. Viver acreditando na esperança de cada novo dia…

Sei que não vais ler esta carta porque cortaste comigo ainda hoje não sei bem porquê. Fiquei com pena, pois sei que tu és quem mais sofre. Um dia, talvez te lembres de mim e se quiseres voltar a conviver comigo, é só dizeres…

Que o próximo ano te dê muitos dias novos de esperança…

Marsha
Enviado por Marsha em 30/03/2010
Código do texto: T2167645
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