Carta para Vinícius de Moraes e para o meu Vinícius

Dia de inverno ensolarado. Trabalhando na função de revisora numa editora especializada em Psicoterapia nas Perdizes, bairro nobre de São Paulo, entra a dona Luzia. Simpática, de olhar profundo e muito correta, a senhora do cafezinho se senta e me diz, com olhar sério: “morreu aquele poeta, o Vinícius de Moraes”. Também arregalei os olhos e – me lembro – olhei de um lado para outro de maneira impensada. Parece que, de repente, não mais que de repente, eu estava procurando vida, sabor e poesia com a sensação de “e agora?” Que sentimento estranho e inesperado: não ter mais Vinícius de Moraes! No dia seguinte o jornal pendurado na banca anunciava: “morreu a poesia brasileira”.

Há exatos trinta anos o poetinha, como gostava de ser chamado, partiu, quem sabe fazendo valer ainda mais a arte do encontro, mas um encontro com aquele Eterno que brilha, que pulsa, ilumina e leva a transcender e depois nos devolve ao convívio, mas que o poeta não acreditava mesmo.

Acredito que ninguém tenha vivido a poesia de forma mais intensa e interessante que ele. Vinícius de Moraes foi completo! Apaixonado e crítico, presente e eterno, foi o poeta que me ajudou a sentir o gosto pelo amor literal, a acompanhar o doce batido da Bossa Nova e a beleza em cada canto da vida. Com ele aprendi a doçura do perdão, a beleza do prazer e do viver intenso. Aprendi a humanidade e o valor do infinito no ter filhos através do “poema enjoadinho”: “Que coisa louca . Que coisa linda que os filhos são!”

Aprendi a vivenciar o amor profundamente e muitas vezes citei o “que seja infinito enquanto dure”, acreditando no sentimento profundo de fazer o coração se encher de brilho... e de solidão.

E eu pensava no Vinícius de Moraes. Aquele que, conforme Drummond, teve a vida de poeta. Poeta do amor demais, que ousou viver sob o signo da paixão, que dizia que a ”vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro nessa vida”. Vinícius de Moraes que tanto amou, que tanto coloriu o mundo, que tanto valorizou a amizade, entendendo que um amigo seria um pedaço do céu, foi parte importantíssima da minha construção emocional, da minha visão de mundo. E brincou com as minhas ilusões, com as minhas crenças... ser alegre é melhor que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração...”

Para viver um grande amor é necessário sentir a voz do ”poetinha” muitas vezes ao dia ao longo de uma vida inteira. Sentir a sua presença, atento ao amor para que seja mesmo infinito enquanto durar, que se tenha a ousadia de sempre estar à procura da quietude, na imensidão da vida, na alegria do olhar e de caminhar, como Vinícius caminhou, à procura da essência do sentir, compreendendo que

O amor é o carinho,

É o espinho que não se vê em cada flor.

É a vida quando

Chega sangrando aberta

em pétalas de amor.

Trinta anos sem Vinícius de Moraes... o meu poeta refinado, o poeta do abraço e que soube traduzir a vida na mais legítima arte do encanto. Ele foi a mais completa tradução da sensibilidade, da serenidade e da essência da mais refinada poesia.

... E então resolvemos ter um filho. Seria muito amado, esperado, um bom tempo de planejamento, com conversas, medos e sonhos. O filho seria inteiro, único em identidade e seria sentido na sua forma mais doce. Eu preparando outra pessoa para deixar que o mundo fosse mais bonito, mais cheio de leveza, com sorriso e paixão. E sonhei fazer do meu filho um cidadão de primeira classe. Não nos privilégios, mas no compromisso com a vida, com o apego às coisas belas, às lutas por grandes causas, por justiça e equidade.

Há tempos meu marido e eu havíamos escolhido o nome: Vinícius. Nome melodioso. Cheios de “is”, letra do meio, do equilíbrio, da ponderação. Eu não sabia quando ele chegaria. O menino fez suspense! Ia demorando para aparecer,resolveu ter preguiça para desabrochar e sorrir. Mas chegou, em 1987, pelo tempo do Natal. Muitas vezes olhei para ele enquanto dormia e senti que ele cheirava a Jesus menino. Um menino que traria esperança e que tinha belas mãos. Mãos macias, cheias de linhas e de vigor. Mãos que, hoje, sei que vão aliviar dores físicas e emocionais e devolver alguma alegria a pessoas com saúde debilitada. Mãos de poeta da vida!

Ele seria o meu Vinícius, a extensão do meu encantamento pela vida e pelo sabor do amor profundo e eterno. Porque o amor de mãe para filho é eterno, de raiz, inexplicável. Tão indizível quanto o amor de Deus.

Devagar o meu Vinícius foi sendo pensado, preparado, planejado. Amado antes da hora porque eu ia comprando algumas coisinhas para ele, falando dele, imaginando a carinha risonha e feliz meses antes anunciada a gravidez. Comprei a escovinha de cabelo azul na Sears, em São Paulo e já alimentava uma idéia de como seria criado. Logo resolvemos: terá educação refinada! Vai aprender a cultivar o amor ao próximo, sentindo na alma o doce sabor do respeito. Seria um Vinícius também risonho, amoroso, de sentimento requintado, universal, capaz de fazer jus ao nome do “padrinho-poeta”. Quem sabe, um poeta de uma aprendizagem lenta e forte, abrindo cortinas para um palco imenso, capaz de amar os detalhes, a música, o mar e as montanhas.

O meu filho é o Vinícius Moratta, que canta com prazer algumas músicas da Bossa Nova. Que gosta de “garota de Ipanema” . Canta “eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar...” numa tentativa de extensão do coração do poetinha. O meu Vinícius também escreve sobre o amor, voa alto, um anjo que tem asas nos pés e a cabeça muito voltada para o transcendente. Sonha, sente, pensa. Que viva a vida com a amplidão do poeta maior, marcando espaço e deixando a magnífica herança do amor demais!

“Se eu morrer antes de você, faça-me um favor. Chore o quanto quiser, mas não brigue com Deus por Ele haver me levado. Se não quiser chorar, não chore. Se não conseguir chorar, não se preocupe. Se tiver vontade de rir, ria. Se alguns amigos contarem algum fato a meu respeito, ouça e acrescente sua versão. Se me elogiarem demais, corrija o exagero. Se me criticarem demais, defenda-me. Se me quiserem fazer um santo, só porque morri, mostre que eu tinha um pouco de santo, mas estava longe de ser o santo que me pintam. Se me quiserem fazer um demônio, mostre que eu talvez tivesse um pouco de demônio, mas que a vida inteira eu tentei ser bom e amigo. Se falarem mais de mim do que de Jesus Cristo, chame a atenção deles. Se sentir saudade e quiser falar comigo, fale com Jesus e eu ouvirei. Espero estar com Ele o suficiente para continuar sendo útil a você, lá onde estiver. E se tiver vontade de escrever alguma coisa sobre mim, diga apenas uma frase : ' Foi meu amigo, acreditou em mim e me quis mais perto de Deus !' Aí, então derrame uma lágrima. Eu não estarei presente para enxugá-la, mas não faz mal. Outros amigos farão isso no meu lugar. E, vendo-me bem substituído, irei cuidar de minha nova tarefa no céu. Mas, de vez em quando, dê uma espiadinha na direção de Deus. Você não me verá, mas eu ficaria muito feliz vendo você olhar para Ele. E, quando chegar a sua vez de ir para o Pai, aí, sem nenhum véu a separar a gente, vamos viver, em Deus, a amizade que aqui nos preparou para Ele. Você acredita nessas coisas ? Sim??? Então ore para que nós dois vivamos como quem sabe que vai morrer um dia, e que morramos como quem soube viver direito. Amizade só faz sentido se traz o céu para mais perto da gente, e se inaugura aqui mesmo o seu começo. Eu não vou estranhar o céu . . . Sabe porque ? Porque... Ser seu amigo já é um pedaço dele !”

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 09/07/2010
Reeditado em 22/08/2011
Código do texto: T2367552