Carta pra quem amei um dia

É engraçado. Só se passaram dois meses e parece uma eternidade. Não sinto teu cheiro, se é que o sentia. Não vejo nem a sombra dos seus olhos azuis em meus pensamentos. E quando paro para pensar, o que sinto é alívio. É claro que há um quê de despeito, de orgulho ferido e pesar pelo que não foi, ou pelo que foi jogado fora.

Aquele frio medonho, o sono da manhã interrompido pelo seu despertador. As ligações da sua mãe que tanto me irritavam. Seu olhar de desaprovação pela minha bagunça. Eu sentia falta do sol, do calor e do prazer de me sentir em casa. Mas ainda assim eu estava aí, ao seu lado. Meio que torpe, mas estava. E quando me debrucei para me atirar da janela, você me ajudou... e aqui em baixo não há sangue ou restos mortais. Aqui embaixo eu encontrei vida.

Engraçado que tudo o que me vem à mente são pensamentos, lembranças de fatos, de ocorridos, mas nunca, nunca mesmo de sensações, de sentimentos, de suspiros e delírios.

Só consigo me lembrar do quanto eu queria ser a mulher que você desejava. O quanto seria bom se esses sonhos fossem realidade. Nosso apartamento pintado de laranja e roxo, com ervas na sacada. O perfume de flores a nos inebriar quando entrávamos. Os pingüins sobre geladeira, a máquina de lavar cantando pra me acordar dos meus sonhos de princesa. E o que estava por vir. Fins de semana na praia, a casa no sítio no alto da montanha, nossos filhos, o cachorro...

E eu corria... corria atrás dos nossos planos, corria das suas expectativas, corria da angústia de nunca saber qual seria a próxima meta. E corri tanto que, quando vi, já estava longe e bem cansada para voltar.

O que houve é que meu jeito de ser é uma metáfora sem graça para você. Sou simples, sem muitos pensamentos, sem muita sofisticação. Só quero um amor e uma cabana. Ou queria. Queria fazer seu almoço, ouvir música com você, te ler os meus poemas prediletos, amar sua família como amo a minha, fazer dos seus amigos meus amigos, te acolher nos seus maiores medos.

Agora, tudo o que quero é um buraco pra me esconder e ás vezes, dependendo da lua, vou lá fora, danço, ganho beijos e em outras vezes só tenho garras e caninos.

Mas é bem divertido ser assim, pelo menos por enquanto. E sabe, apesar dos pesares, não tenho mágoa, só um pouquinho de tristeza, que logo passa, sem eu nem perceber.

A vida é boa demais pra se perder em lágrimas e pensamentos melancólicos. Aprendi a não dar muita importância aos meus pensamentos, eles são teimosos, repetitivos e imaturos. Deixo-os brincar no quintal da minha alma, até cansarem. Então lhes dou um banho, uma roupa limpa e o que resta é sensatez.

E hoje sei ver com coração leve e serenidade nos olhos que foi o que tinha que ser e acabou quando tinha que acabar. A gente não foi ensinado sobre o fim. Não houve preparo pra perda. Ninguém nos falou da morte. Só nos contaram histórias de fadas e princesas. E nos mostraram imagens de santos e corpos perfeitos.

Mas acabou. E não choro mais pelo fim, nem lamento a minha má sorte. Só sei olhar pra frente e não gosto de voltar atrás. Você fala que é orgulho, eu digo que é criatividade. Detesto repetições, cópias e rascunhos passados a limpo. Pra mim ou é ou não é. Prefiro inventar novas histórias, usando novas fantasias e criando novas máscaras. Velhas roupas não me servem mais e tenho alergia a sentimentos mofados.