Carta (de) para um trabalhador

Brasil, 01 de maio de 2000.

Seu João,

Como vai? Há quanto tempo não nos vemos? Escrevo para lhe contar uma história que vi há poucas horas. Como sei que é do seu interesse, aí vai:

Entra na condução aquele homem humilde. Boné, bermuda, camisa regata e chinela surrada, mostrando os calos de quem já havia andado muito, já naquela manhã. Então ele começa com o discurso que muitos já ouviram pelos coletivos das cidades:

“Bom dia pessoal, eu podia tá roubando, tá matando, tá traficando. Mas eu tô vendendo estes chicletes. São 5 por R$1,00 ou a unidade por R$0,25. Ajude pra eu podê ajudá minha familha”.

Dona Rita,

O cidadão ía recolhendo a quantia das vendas aos passageiros, ou os chicletes de quem não havia comprado. Um senhor, aparentando seus 50 anos, de terno preto e cabelos penteados ao gel, com uma maleta de couro de crocodilo australiano, assim como os sapatos, retira do bolso um cartão e diz: “Veja os de 5 por 1. Débito, por favor”.

Seu Jorge,

O autônomo ficou na hora sem reação. Após uns 30s, falou que só trabalhava com “dinheiro vivo”. O passageiro, revoltado, reclama: “Ora, mas isso é um insulto! Você me oferta um produto e não se atualiza nas formas de venda? E eu aqui querendo te ajudar! É por isso que você está na merda!”, disse com todo o ar de superioridade que um paletó à sociedade impõe.

“Veja bem, meu senhor, eu tô trabalhando pra sobreviver. Não carece dessa violência pro meu lado”, responde o vendedor.

Seu Bento,

Foi quando o homem da pasta de crocodilo grita: “Vá à merda! Você e seus chicletes! Eu não preciso disso. E saiba que ando de ônibus apenas porque sou um cidadão consciente. Que se preocupa com o meio ambiente. Meu importado está na garagem. E você? Aí, distribuindo chicletes a motoristas para entrar no coletivo. Pergunto: ‘Que educação você teve? Sabe ao menos ler e escrever, infeliz?’”

Dona Fátima,

É nessa hora que o vendedor começa o real discurso:

Vendedor – “Meu senhor, quando criança, meu pai sempre dizia: ‘Estude direito’. Nunca fui de ter luxo. Nada me veio de mão beijada. Às duras penas consegui o que tenho. E sempre ouvia de meu pai: ‘Estude direito’. E mesmo passando necessidade, eu, de madrugada, lia, lia e re-lia. E lá vinha meu pai: ‘Estude direito’”

Seu Antônio,

Continua o vendedor: “Eu tive que me virar para completar os antigos primeiro e segundo graus. Estudava muito. E sempre vinha meu pai: ‘Estude direito’”.

“Eu realmente não entendia. Eu sempre fui o melhor aluno. Minha média sempre foi acima da média. E nunca ouvia um elogio do meu pai. Era sempre ‘Estude direito!’”

Dona Nazaré,

Então ele fala: “Não sei se não entendia direito por ser esquerdo. Ou se deveria, talvez, ser um tanto surdo. Ou se eu realmente não estudava direito. Só sei que falei para mim mesmo: ‘Se não sei estudar direito, então vou trabalhar direito’”.

Seu Pedro,

O vendedor conta que: “Já vendi picolé, já lavei carro, já fui varredor de ruas, já fui garçom, manobrista, chapista, malabarista e até tentei ser trompetista, mas não levo jeito para música”.

Dona Graça,

Continuando: “Eu gosto mesmo é de trabalhar com o pesado. Deleito-me em saber que à noite, eu tenho o meu trocado para o pão nosso de cada dia. Sem ter que depender dos outros.”

Seu Sebastião,

Ele diz: “Às vezes sinto dores? Sinto. Algumas outras só resta chorar. Mas sei que o que é meu é meu. Não me foi dado nem doado.”

“Tem dias que não tenho o do gás. Outros não tem o do fósforo. Às vezes não tem nem o combustível nem o fogo. Mas não me falta o do feijão. Quando fica escasso, bota-se água. Na falta... Vão-se a(à)s lágrimas”.

Dona das Dores,

Assim ele falou para todo mundo ouvir: “Tenho meu barraco. E sabe por que senhor? Porque já vendi muito plástico e papel. Sempre arranjo o dos livros, porque até hoje eu considero uma desculpa furada dizerem que literatura é coisa de bacana. É só guardar o do funk, do brega, do forró e o da música clássica; e se preferir, mais o da cevada, então você vai comprando de um a um e construindo sua bancada.”

Seu Francisco,

Disse ele: “Sabe meu senhor, o senhor me manda à merda. Já eu, pegarei todo este esterco, vou tratá-lo e transformarei em adubo. Venderei a alguém que tenha um jardim. Lá, serão plantadas roseiras. Elas têm beleza, apesar dos espinhos. É como a vida”

“De vez enquando sou mandado à merda. Às vezes é tão sutil, que não sai com palavras. Outras são assim. Bem transparentes. O senhor ao menos foi sincero, apesar da ignorância. Uma virtude no meio de um vício. Vai entender. Mas tome aqui os seus 5 chicletes. Não vou cobrar”

Dona Nazaré,

O passageiro do paletó, blazer, terno, ou tanto faz, pergunta: “Mas por quê?”

E o homem responde: “Porque o senhor me mostra mais uma vez o que às vezes eu tento esquecer que passo no meu cotidiano. Não sei quanto aos outros. Mas é o meu cotidiano. E só a minha educação para superar a falta da sua”

Seu Galvão,

E até hoje, disse o vendedor, cujo pai já falecera, pergunta à mãe: “Por que o pai sempre me mandava estudar direito? Eu não estudava direito?”, questiona ele.

E ela sorri e responde:

“Esquece isso, meu filho. O importante é você ser feliz. Faça o que você já faz: trabalhe direito e seja você mesmo”.

Dona Aparecida,

Então ele sorri e chega a emocionar os passageiros ao dizer: “Ah, quando escuto isso, meu senhor, eu pego minha caixa de chicletes e saio às ruas com a maior vontade. E vejo que melhor do que estudar direito, é trabalhar direito”.

Seu José,

Foi assim que o empreendedor do comércio autônomo saiu do ônibus e se despediu: “Obrigado pessoal. Tenhão um bom dia”, desse jeito mesmo.

E ao descer do coletivo enquanto esperava a próxima condução – o semáforo ainda fechado – olhou umas palavras grafadas no vidro de um carro. Pediu à mulher ao lado que as lesse para ele:

“Deus abre portas aonde não existe nem paredes”, um dito popular?

Dona Maria,

Eu não sei. A senhora sabe? Ou só Deus?

Abraços,

Ass.

Delano Almeida
Enviado por Delano Almeida em 01/06/2011
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