" MESTRES DA SOBREVIVENCIA"
Dema !
                  O texto que você me enviou sobre a vida nos anos sessenta, aguçou-me a recordar do meu passado. De fato nossa vida era bem diferente, existia solidariedade entre o povo. No texto, o autor frisa que apesar da falta de tecnologia e do rigor na fiscalização das coisas, as pessoas viviam bem e dificilmente se ouvia falar sobre morte de alguém que comeu isso ou aquilo. Lembrei -me muito da minha infância aí em Valparaizo. Quando eu escutava os gritos de porco sendo matado por algum vizinho, minha boca enchia de água; eu corria para juntar gravetos e reforçar o fogo quase apagando no fogão a lenha construído no saibo puro, e não demorava muito a vizinha gritava:
--- O Maria! Truxi um pedacim di porcu pru cê, muié. Mais num arrepara nãu sô, cu porquim era tãu miudicu miudicu, qui num dá nem pra módis botá nu buracu du denti.
Mal a vizinha saia com a vasilha retribuída com qualquer coisa e , acrescentada da palavra “Deus lhe pague” (pois antigamente não era nosso costume receber e não retribuir) e (somente não retribuíamos com sal) a carninha já estava sendo assada na chapa ,e muitas vezes temperada só no sal; enquanto nos lambíamos os beiços sentados no chão forrado com saco de estopa, e esperando ansiosos nosso pedaço escolhido rigorosamente pela mãe. Os ossos nos chupávamos, tal qual porco quando com fome, chupa cana. 
Falando em carne, uma vez saiu um boato ai , mais ou menos em 1955, que carne de boi fazia mal para os homens, deixava o cara broxa. Muitos açougues fecharam as portas; havia homem que já pré-broxava, então nem passava perto de açougue.(não lembro-me de ter visto o Nego se esquivando dos açougues).Como não vendiam as carnes, os açougueiros para não estragá-las , davam enormes pedaços para os“ miseráveis” e eu incluído nesta categoria, embora com certa repugnância, enchia a pequena pança. Engordei muitos quilos naqueles dias - pena que durou pouco tempo. Deus supre nossas necessidades!
Mais tarde fiquei sabendo que tal pretexto era um complô de fazendeiros  para forçar o Juscelino aumentar o preço da carne. Numa outra ocasião, o objeto de desejo estava tão caro , e nem osso os açougueiros mais davam , cachorros estavam caquéticos tal qual socó; os mais miseráveis, então passava perto das casas dos ricos, para sentir o cheiro da danada- chegavam em casa, tomava água do pote e, estavam alimentado. Eu que sabido era, aproveitava para ir na serraria enfrente o campo de futebol Vieira Leite, cujo dono era o pai da Olga e da Bolinha, Sr Martinelli. Ali por perto tinha uma senhora que soltava ciúmes até pelas ventas; era eu chegar na serraria , ela me chamava num canto e dava a ordem:
---Vá correndo no bar perto da rodoviária, ali no MILECEM , ou por perto da pensão S.Judas Tadeu, e vê se meu marido esta conversando com alguma mulher; não deixa ele te ver.
Eu rápido como uma flecha, checava o ambiente, e quando chegava, dava o relatório da pesquisa, certamente meu prato já estava feito. Nesta crise que assolava muitas panelas, muita gente tornou-se mestre em economia; a Zéfa do Embarcador foi uma delas. Com um quilo de costela de vaca,( a mais barata) dava para se comer uma semana. No primeiro dia comia-se as muxibas , as pelancas e os sebos fritos com cebola , pimenta e salada de cuentro com limão;(essa salada aguça a fome) após dois dias,comia-se a metade da carne boa (cozida para não gastar óleo); depois de mais dois dias, uma senhora sopa de mandioca com a metade dos ossos ; esperava-se mais outros dias (para não repugnar-se), a outro metade da carne e logo após , deliciava-se um suculento caldo de feijão colhido no quintal, “agostiado” com o restante dos ossos defumado sobre o vapor do fogão a lenha.
Quando tudo parecia ajeitado em seus devidos lugares, os mestres em economia, tiveram que adaptar-se em suas culinárias; perto da fazenda onde o Kitamura plantava algodão, caiu um raio “abençoado” ; e como conseqüência disto,morreram eletrecutado vários bois. O fazendeiro, generoso que era, não quis fazer muito sabão em sua fazenda e colocando as carnes dos animais num caminhão, saiu nos “arribalde” distribuindo à população, uma carne escura ,quase preta. Na realidade a gente sentia um certo receio de comê-la, mas diante da oferta ....
Um dia cheguei em casa exausto , com um saco de cebolas nas costas; cebolas das boas, sô. Minha mãe já descascando algumas, perguntou-me onde eu as havia achado ; eu mais que depressa ,diz que foi seu Rosalvo (dono de uma mercearia perto do cemitério) quem as tinha me dado. Comemos cebolas quase um mês; até hoje minha mãe não sabe que as tais boas cebolas, foram jogadas e catadas por mim na estrada que ligava Alto Pimenta a Valpáraizo, ( perto da antiga Diquis) .
Diz o ditado que “ quem come a carne deve roer também os ossos”, mas enquanto muitos comiam a carne, nem os ossos sobravam pra mim; as vezes eu encontrava algum “ fii di Deus"  e no matadouro ai perto da Agro Vila, me ajeitava uns bons ossos e pés de boi.
Quando o homem do matadouro, estava quase pra me mandar "prus quintu"  ,  com tantos pedidos, eu revezava, ia ao açougue e vice-versa.
Lembro-me até hoje minha frase costumeira dita ao açougueiro, que trabalhava perto da antiga casa São João:
--- Minha mãi mando u sinhô mandá uns ossus préla fazê sopa. O senhor, ajeitava uns ossos jogados no chão,( mais raspados que “subacu” de moça quando sai da depilação), colocava-os no meu picuá e eu saia pra casa morro abaixo ,às carreira imitando cavalos em disparada..Gente! uma sopinha feita no capricho, com uns ossinhos de costela, uns pedacinhos de vassorinha , um pouquinho de cuentro, umas gotinhas de pimenta, e retemperada com uma baita fome...Meu Deus! Até cachorro de pobre ,come. Uma vez eu ia passando perto de um bueiro próximo a casa da dona Rita (mãe do Formiga) quando avistei umas bolinhas pretas parecendo café em grão. Eu tinha apenas uns 6 anos de idade, lá pelos idos de 1955; e como eu era muito “criativo”, juntei vários montes ;coloquei num saquinho e deixei escondido no bueiro. Minha mãe tinha ido buscar café ( ninguém falava roubar café, era buscar) ,(“buscava-o ” à tardinha pois os fiscais das fazendas, trabalhavam também de dia e, cansados , somente a noite, iam patrulhar o cafezal) e quando chegou já noitinha , mandou que eu torrasse o café. Enquanto ela acendia o fogo , eu dei uma escapadinha até o bueiro e trazendo o “café” que eu tinha achado, coloquei no torrador sem que ela visse. Como a falta das coisas em casa era demais, no meu entender de criança, este meu gesto, certamente aumentaria a porção trazida pela minha mãe Depois de uns quinze dias, minha mãe novamente mandou-me torrar outro café; eu para alegrá-la, e mostrar serviços, mostrei a ela outra porção que havia juntado, sugerindo que os colocasse no torrador, tal qual eu fizera antes. Tomei uma surra que até hoje me dói o rabo! 
O tal café era bostinha de cabrito, seca
Não me recordo de ter ficado doente. 
                                                                                                     Roosevelt