Preta Velha

Ressente Passado ou futuro iniciado?

Negra escrava ou sinhá?

Sinhá por condição ou opção?

Negra escrava por opção ou condição?

Sei que fui criada muito próxima à senzala e de lá trago o gosto por café “acalmado”,peixe seco e pirão, para comer de mão!

Café acalmado era assim feito, numa velha cabaça se punha a água fervendo,juntava-se o pó de café ou sevada misturava-se e deixava que “assentasse”(como decantação).O café (que aroma) acalmava muito rápido, era impressionante!

Lentamente era dividido em cuias (cabaças sem gargalo) pré destinadas . Em volta da fogueira foi me dado muitas vezes. Com a cuia e o café acalmado também vinha o pão de milho, em sua maioria sempre muito duro.

Era mágico....o café acalmado,morno meio amargo pois era adoçado com uma espécie de rapadura, na cuia; eu pegava o pão duro, puro e molhava...adorava esse dejejum que por vezes me era proibido...eu era branca não podia ficar na senzala, meio às cubatas.....

Depois do café o cheiro (chamego) ela era especial, a chamávamos de Puta Vaca(Georgina) era o seu nome de branco, era minha negra,dela eu era buangge.

Sim eu tinha uma negra velha que de mim cuidava, afetivamente a ela me liguei em demasia. Para as negras de lá (amas) as meninas brancas como eu, viram as buanges. Foi assim minha vida branca entres os negros. Eu amava tanto!!!!

Terminava o café e eu ia andar com ela pelo lugar, foi assim que conheci catuites (passarinhos azuis) massango (aqui no Brasil posso dizer que era uma espécie de alpiste) massabála (um tipo de grão avermelhado do qual se fazia o Macau) uma bebida fermentada dos negros, (o macau tinha uma relação com os orixás),soube também da blunga, (bebida fermentada feita de milho com farelo),raízes,folhas,emplastos,etc,etc.

Desses passeios com a minha Puta Vaca, visitei meninos negros que tinham umbigos muito grandes, (hoje eu sei que eram hérnias ou umbigos mal cuidados após o nascimento).

Boa buangge que era eu, lá fazia minhas curas (comprimia esses grandes umbigos com moedas) .Patacos eram assim chamadas essas moedas.Cuidava também de feridas(coisa de mosca) e grandes febres (empaludismo dizia meu velho pai). Por troca ganhava quimbalas com os primeiros grãos colhidos, bezerros , galinhas,ovos,uma infinidade de coisas,sem contar os afilhados. Ainda menina batizei muitas crianças....

Vi pela primeira vez “a xiquiça”, (circuncisão).

Um preto velho, sempre um preto velho,pegava os meninos recém nascidos (negros) os levava a uma pedra e lá deitava a criança numa palha ou xitate (pano),amolava uma catana contra a pedra, posso ouvir ainda o barulho que fazia essa catana. Com a catana amolada e quente ele decepava aquela pele que sobrava à pisa (pênis) do menino que em seguida a envolvia de cinza quente misturada a algumas ervas.

Aquela pele cortada era colocada no colar que ornava o pescoço daquele respeitado preto velho. Haviam muitos pedaços de pele naquele pescoço!

As andanças paravam pela hora do almoço, o que eu fazia também na senzala....

Sempre a carne seca ao sol,carne de ólongo (veado) e o pirão pra comer de mão....

A tarde era para pegar passarinhos.

Não podíamos fazer arapucas, tínhamos que pegá-los com “visgo”!

Não sei ao certo como se fazia o visgo, sei sim que os negrinhos com quem eu andava,pegavam o “leite” de uma árvore que se chamava mirangoleira. Esse leite ou látex era batido com dois paus que virava uma pasta que a mascavamos continuadamente sem engolir a saliva (não sei porquê), tínhamos que cuspir e eu cuspia e mascava....

Esse chiclete que virava essa goma era colado nos ramos das árvores, onde os passarinho pousavam e ficavam colados e nós os recolhíamos.....

Que horror...eu tinha um viveiro com centenas de pássaros de todas as espécies e tipos....Eu tinha e amava....

À noite, depois do banho, acendiam-se as lâmpadas abastecidas pelos geradores a petróleo e eu novamente dava um jeito de fugir para a senzala.

O jantar imitava o almoço, agora havia blunga e Macau além de muitos batuques nos tambores e danças ao redor das fogueiras.

As fogueiras eram lindas, as v árias nuances de vermelho e alaranjado misturada às fagulhas e aromas dos paus queimados eram instigantes. Ali a fantasia não tinha

limite, pra mim menina!

Tudo ao redor daquelas fogueiras era lindo! Era mágico! Meus pais não entendiam o meu amor por aquela vida, por aqueles hábitos.....

Ficava ali, olhando os que dançavam, os que batucavam,os que só fumavam,os que de cócoras olhavam o lume (fogo)....

Lembro-me que o lume diminuía lentamente, muitos dos negros já ébrios pelo macau e blunga iam para suas cubatas e eu a miúda branca,meio aqueles negros sempre adormecia nos braços seguros de minha Georgina,a minha Puta Vaca.

No dia seguinte eu sempre acordava no meu colchão de palha de milho e penas que fazia barulho quando me mexia, além de estar sempre com meu nariz preto cheio de fuligem da fogueira, com a minha negra velha ao pés da minha cama quando ainda terminava a madrugada pois queria com ela ir tomar o novo café e tudo recomeçar.

Foi assim que fui menina!

Foi assim que aprendi a sonhar!

É mais ou menos assim que gostaria de terminar minha melhor idade....

Ontem me lembrei muito dela...minha Puta Vaca!

Nucha Tavares

Nucha Tavares
Enviado por Nucha Tavares em 13/07/2012
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