CARTAS RUSSAS - PALÁCIO SUBTERRÂNEO

Houlton, abril de 2010

Meu ilustre e garboso Palácio Subterrâneo

Acredito que não te lembres de meus precoces feitos, mas é bem provável que já tenhas ouvido falar a meu respeito por tuas estações e galerias, onde há quase três décadas o Pravda divulgava fartamente todos os detalhes de minha rápida estadia em teu país, poucos anos antes de eu morrer em um grave acidente aéreo durante uma desastrosa aterrissagem no aeroporto regional de Lewiston, em Auburn.

Era verão de 1983 quando rumei para Moscou na companhia de meus pais a fim de encontrar o senhor Yuri Andropov, então Líder de Estado de toda a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Eu contava apenas onze anos de idade, mas já nutria uma enorme desconfiança quanto às intenções dos dirigentes de sua grandiosa nação, temia que uma hecatombe nuclear acontecesse, que a guerra fria esquentasse, que O Dia Seguinte de Jason Robards finalmente saltasse da ficção sensacionalista para uma realidade aterradora.

Se bem me lembro, foi a capa de uma Time que me levou a redigir minha singela carta ao presidente Andropov, onde descrevi com sinceridade meus temores acerca de seu governo, pois me fizeram acreditar que ele planejava dominar o mundo às custas de uma guerra atômica, que o povo soviético era inimigo do povo americano. Eu era apenas uma criança, Sr. Subterrâneo. Pense então com que facilidade deixei-me levar pela estupidez das pessoas ditas maduras e que se achavam no direito de me apontar algozes?

Para minha surpresa e alívio, o senhor Adropov respondeu minha correspondência, onde me comparou à Becky, de Mark Twain, escreveu que me achava tão corajosa e honesta quanto à carismática amiga de Tom Sawyer. Foi nesta mesma carta que ele me fez o inesperado convite para conhecer sua pátria, a fim de que eu constatasse por mim mesma que os soviéticos eram a favor da paz e da amizade entre os povos.

Desembarquei em Moscou em um belo dia de Julho e passei duas semanas memoráveis como hóspede destas pessoas que frequentam todos os dias teus luminosos subsolos de mármore e das quais sinto tantas saudades. Visitei Leningrado e passei a maior parte do tempo no acampamento infantil de Artek, na Península da Criméia. Em meu dormitório havia mais nove meninas com as quais nadei, conversei sobre os maus hábitos dos garotos, aprendi músicas russas e dancei plyaska, com direito a lencinho branco na mão. Sinto saudades de minha boa amiga Natasha Kashirina, caso tivesse certeza absoluta de que ela ainda se encontra com vida e soubesse onde fica seu atual domicílio, esta carta seria endereçada a ela e não a ti. Mas a condição que nos aproxima e nos assemelha, Sr. Subterrâneo, transformou-te em minha segunda opção. Apesar de sepultados, a História nos garantiu vida eterna. Viveremos para sempre, tu e eu. Tu, através de tuas pedras calcárias de muitas e variadas cores, já eu, por meio dos livros. Somos dois vampiros a serem sugados pela fome dos vivos.

Sempre fui fascinada por teu grandioso trabalho e não gostaria de tomar muito de vosso tempo, Sr. Subterrâneo. Afinal, ser o metrô de Moscou provavelmente é um dos empregos mais complicados e cansativos do mundo. Não deve ser tarefa das mais fáceis coordenar nove milhões de passageiros cotidianos, quilômetros e quilômetros de linhas e túneis, dezenas de estações, cuidar de suas suntuosas cavidades e festivos vãos, ornamentados por estátuas, relevos e composições pictóricas monumentais feitas pelas mãos de artistas consagrados. Deves achar que estou a bajular-te e que assim planeio conquistar de vez tua atenção, o que não é de todo uma inverdade. Ao provar que não me dirijo a ti com banalidade, que te respeito com franqueza de espírito, desejo que criemos empatia para que este inusitado encontro entre remetente e destinatário inumados seja o mais franco e afável possível. Aliás, esta é a segunda vez que somos estreitados por uma extravagância da fortuna, mas passamos tão rapidamente um pelo outro naquele dia que sequer nos percebemos. Todavia, um evento singular ocorrido naquela determinada ocasião, de certo, nos marcará pela eternidade.

Estávamos em Moscou, onde eu havia participado de uma conferência, a mesma na qual declarei que os russos eram quase como os americanos – ai, crianças dizem cada coisa embaraçosa! Meus pais estavam tão afeitos à simpatia do povo russo que desistiram do carro oficial e, em uma quarta-feira de sol inócuo e pouco luminoso, decidiram que passearíamos pelo metrô da Terceira Roma.

Adentrar a Estação Mayakovskaya foi como percorrer descalça as páginas de um livro de poesias, tão grandiosa a visão que tive dos mosaicos inspirados em desenhos de Alexander Deineka, onde as cores pareciam dançar ao som das pisadas dos passantes, a marcharem altivos e determinados, como soldados de Stalin. Mas o sonho durou pouquíssimo, acabou por transmudar-se em um hediondo pesadelo pelo gesto tresloucado do senhor Aleksei Peshkov.

Nunca tinha visto alguém morrer. Nunca. Eu, que apenas temia a possibilidade de uma desgraça nuclear, jamais havia imaginado que a morte de um único homem poderia ser tão ou mais terrível aos olhos de uma criança que o fenecer de toda a Humanidade. Os amigos do senhor Andropov que nos acompanhavam durante nossa turística investida nos disseram que ele bebera Stolichnaya demais e caíra nos trilhos. Acreditei nesta versão durante os anos que me sobraram de vida e por muitos outros que se seguiram à minha morte. Mas, sabe, Sr. Subterrâneo, o Cemitério de Houton não abriga apenas meninas impúberes que se tornaram célebres em nações estrangeiras, mas também filósofos, poetisas, ladrões, atrizes, historiadores, cantoras, políticos, bêbados, soldados, atletas, bailarinas, psicanalistas, enfim, terei treze anos para sempre, mas já aprendi mais do mundo que muitos catedráticos pomposos que arrotam sofismas como quem distribui bons-dias. Estou a escrever de minha sepultura, e esta se encontra rodeada por uma miniatura de toda cultura e natureza humana, onde quase todos os dias nos chega um debutante com as mais frescas notícias acerca deste mundo de vivos que, impelidos por razões tão ridículas quanto ignóbeis, não param de lotar os cemitérios com mais e mais mortos. E foi justamente um recém-chegado, Sr. Subterrâneo, um jovem estudante com pouco mais de dezessete anos chamado Samuel Clemens, que me levou a escrever esta carta.

Samuel fazia intercâmbio cultural em Moscou e faleceu no último mês de março, morto por uma explosão que ocorreu em uma de tuas estações, a Lubyanka. Falou-nos que o atentado havia sido executado por mulheres-bomba, duas insurgentes do Cáucaso, e que outro artefato fora detonado na Park Kultury. Ainda treme com tanto desgoverno, o pobrezinho, que mal se afigura a um morto. Encontra-se tão confuso que parece não ter certeza de nada além da forte explosão. Balbucia freneticamente, horas a fio, como quem tenta ordenar as próprias ideias. Foi como se o mundo se desfizesse em poeira e assassinato, o abalo, o estrondo, duas mulheres, foram duas mulheres do Cáucaso, assim disseram os homens que me necropsiaram, não sei, não sei, mulheres não fazem isso, pessoa alguma deveria fazer coisas assim.

Escrevo-te, Sr. Subterrâneo, para dizer o quanto lamento, não só pela sorte de meu compatriota, mas de todo o povo russo. Escrevo-te para dizer que hoje compreendo que Aleksei Peshkov não era um bêbado, mas um inconformado. E quem o matou não foi a vodca, foi a estupidez de nossos governantes e sua guerra de brinquedo, tão fria e dura, capaz de fazer trincar os ânimos, de saquear da caixa craniana a sanidade de um homem. Meu país alimentou de mimos bélicos os fundamentalistas islâmicos que hoje se voltaram contra ele, o teu matou de fome o próprio povo que amargou a falta do trigo devorado pela terra radioativa de Chernobyl. Que infeliz ironia, Sr. Subterrâneo, a tragédia nuclear que eu tanto receava que batesse à porta de minha casa, acabou por vitimar teu povo e não o meu.

Sabe, tenho pena das mulheres que mataram Samuel Clemens. Eu me tornei famosa porque escrevi uma carta a um líder de estado soviético que jamais cheguei a encontrar de verdade, nos falamos apenas por telefone, nada mais. Intitularam-me a mais jovem embaixadora dos Estados Unidos, fui recebida com rosas, tapete vermelho e limusine ao retornar ao Maine, viajei ao Japão e participei com honras de um simpósio infantil em Kobe, entrevistei George McGovern e o pastor Jesse Jackson, contracenei com o gentil e charmoso Robert Wagner. Morri com meu pai em um acidente aéreo. Isto não me torna melhor que aquelas mulheres que te feriram por dentro, Sr. Subterrâneo. Elas serão lembradas como assassinas terríveis e desalmadas, o que não é verdade, é preciso que se acredite possuir uma alma para que se mate como se não a tivesse. Eu morri quando ainda esperava muito da vida. Elas, quando perceberam que não valeria à pena esperar.

Em Dezembro de 1990, chegou-nos aqui um repórter muito simpático e falante, morto na Guerra do Golfo. No final de setembro de 2001, tivemos que acolher uma contadora que trabalhava na torre sul do World Trade Center e que muito sofria por não ter sido uma boa mãe para suas yorkshires, Grace Kelly e Evita Perón. No primeiro dia do ano de 2005 gêmeos idênticos fãs de Star Wars e ativistas do Green Peace, dois irmãos que lutaram na guerra do Iraque por vontade do avô republicano, engrossaram a densidade demográfica de nossa pequena ilha mortuária. Já a Grande Recessão nos trouxe em 2008 um senhor arrogante e pouco cortês que havia dado um tiro na própria cabeça diante do Lehman Brothers, seu neto de três anos de idade estava com ele. E há poucos dias, nos chegou Samuel Clemens e seus comoventes e verdes e desnorteados olhos.

Há morte demais a vagar pelos subterrâneos da razão humana. Creio eu que até os vivos, de alguma forma, já se encontram mortos. Misérias são fabricadas em grande escala e exportadas para os quatro cantos do mundo, onde são recebidas pelos menos afortunados como presentes entregues pelas mãos douradas de deuses astronautas.

Há alguns anos, amedrontava-me a ideia de estar morta. Penso hoje o quanto me assombraria a possibilidade de voltar a viver neste mundo.

Perdoe-me por ter chamado o Sr. Aleksei Peshkov de bêbado. E se encontrá-lo em um de seus túneis a assobiar canções de Lioudmila Zykina, diga-lhe que sou uma tola, que não há diferença alguma entre russos e americanos ou entre americanos e russos ou entre russos e russos ou entre americanos e americanos. Afinal, pessoas são apenas pessoas.

De subterrâneo para subterrâneo,

Samantha Smith

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 23/07/2012
Reeditado em 14/01/2013
Código do texto: T3792439
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