"A Carta! (e a Carapuça)"
(Os personagens do miolo do texto são imaginários, claro, mas ao mesmo tempo são tão reais que chega a assustar)

Mãe, essa aqui é especial. É Só para a senhora. A do jornal eu vou ficar devendo. Mas essa homenagem é só sua – mesmo que eu saiba que a senhora ao ler essa carta, sem dúvida, vai querer dividi-la com a turma. Aí paga meu débito com o jornal. Poxa vida, ainda hoje a senhora me ajudando. Coisa de mãe: presença eterna na vida do filho. Eu sei que era pra ser todo dia. Eu sei. Mas olha só, antes tarde do que nunca. Lembra? Não sei nem contar quantas vezes ouvi isso da senhora mesma: antes tarde do que nunca. É, nem sei quantas vezes...

Olha, tem um moderninho idiota aqui rindo de mim por que estou te chamando de senhora. Dizendo que isso é pra criança, e eu já  com mais de cinqüenta. Vê se pode? Babaca. Agorinha mesmo ele estava aos gritos com a pobre da mãe dele. E a bichinha a vida é atrás do infame, "toma o casaco minino, senão você gripa meu filho..." – E o miserávi só no coice com a pobre. Ele vai ver: Gertrudes já pariu. É um menino também. Até parece com ele. Se parecer também nas atitudes vai ser a conta: lei do retorno. Ou lei da vida. Ele é quem sabe...

Olha mãe, tava aqui pensando o que comprar de lembrança pelo seu dia. Mas é tanta coisa que me vem à cabeça, que quase endoideço. Mas é por que o pensamento era comprar para cada coisa boa que a senhora me fez, um presente em especial. Para cada preocupação comigo estava aqui pensando em compensar tim-tim por tim tim. Mas como me lembrei que isso podia não importar tanto para a senhora, que um belo dum abraço podia falar mais alto, então desisti. E graças a Deus lembrei, porque meu dinheiro jamais daria pra comprar tudo.

Pronto: agora é a outra me aporrinhando aqui por que estou te escrevendo e me justificando por que não comprei seu presente. -  aqui dizendo que isso é coisa de careta; que é coisa de otário. Ela só não acha careta enganar a mãe dela. A pobre nem sabe que a ordinária tempo desses abortou de um, e agora ta prenhe de outro. E o que é pior, fumando maconha o dia todo junto mais o estrume do irmão. Que deixa a pobre da Gertrudes, recém parida, com fome enquanto destrói a aposentadoria da velha com a porcaria da droga.

Taí, era só o que me faltava: tão aqui dizendo que esse negócio de dia das mães é babaquice; que dia das mães é todo dia. Agora eu faço feito um bloco de carnaval que tem aqui: 'quem guenta'? Os dizinfiliz pisam na mãe de dia à noite; xinga, grita; acho que até bate. E agora me saem com essa. Rebanho de satanás. Eles que não mudem não, que quando morrerem vão é queimar no fogo do inferno...

Filhos do cão. Sabe mãe, a senhora sempre soube o sofrimento que dona Crisonilda passa com esses filhos. Mas cá pra nós, eu não entendo como pode uma pessoa sofrer o que sofre uma mulher por nove meses, dando amor, carinho verdadeiro, conversando sozinha alisando a barriga, sonhando com o dia do parto sem se importar com a dor que vai sentir só pra ver a cara da cria - sim mãe: sei que a senhora ao ler esse pedaço vai me censurar, mas é cria mesmo, que não consigo chamar de filho uns bichos desses – e quando saem, vêm uns aleijões da raça humana feito esses dois. E quer saber? Eu me recuso a entender caso alguém queira explicar!!!

- É o quê, cambada??? O problema é dos dois, que querem punir a de vocês...! A minha me batia por que eu merecia... E me deixem escrever minha carta quieto, pode ser?

Eu hein... estão aqui dizendo que eles apanharam muito e que eu também, e agora fico nessa viajem... Esquecem que pé de galinha não mata pinto. Como a senhora muito dizia, né não? Prova disso é que aqui firme e forte. Eles que se entendam depois com Deus, o mau-trato com a mãe deles...

Se é o outro da rua de baixo, na noite passada, chamando a mãe de intrometida, gritou que ela não se atrevesse mais. E saiu dizendo que se a pobre se metesse na vida dele com os amigos – e a senhora bem sabe que tipo de amigos ? -, que ia meter a mão na cara da criatura. E sabe porquê isso? Adivinha?! Por a mãe ter ido pedir um emprego pro seo Zaquinqueu, pro bicho ter uma ocupação e parar de andar com a turma dele, aprontando e apanhando da polícia. Agora entenda esse morotó de gente...

Falando em morotó, sabe os de dona Fininha? Aquela que ganhou esse apelido porque deixa de comer pra dá aos pistiados dela? Que até deixa de comprar os remédios pros ordinários irem pro show da banda-besta que eles tanto gostam toda vez que vêem tocar aqui na cidade... Pois é, hoje cedo passaram aqui na janela xingando a pobre toda só por que pro show de hoje ela disse que não tem dinheiro. Eu não sei como Deus ainda consegue amar uns estrumes desses, mãe. Misericórdia...

Mas a senhora  pensando que dos raça ruim só esses que tem aprontado com as pobres das mães? Hã, hã. Lembra dos metidinhos da rua de cima? Aqueles que dona Grunchenca vendeu a casa e foi morar de aluguel, pra pagar a faculdade dele e dela? Pois é, tão os dois formados. E bem formados. Montaram até uma rede de escritórios, juntos. Estão atuando na área que a mãe sugeriu. E a senhora bem sabe que só foram estudar naquele curso por causa da visão futurista de mercado que dona Grunchenca tinha. E mais, por causa da insistência dela. Olha mãe,  fazendo fofoca nem tão pouco  com inveja - a senhora bem sabe que não sou disso. Mas compraram uma chácara luxuosíssima, cada um, carros importados, abriram agora uma filial em São Paulo, e tão falando em ir até pro exterior. - É, nada mal, né não?

Mas sabe onde mora dona Grunchenca, hoje? Meteram a mulher num asilo de velhos, minha mãe. A senhora acredita numa coisa dessas? É de arrepiar. E pode se arrepiar mais se quiser, que ainda piora. Por que pelo que dizem no asilo, nenhum dos dois visita a pobre o ano todo. Mas em dezembro lá chegam os cara-de-pau, dizendo feliz natal. - Sai pra lá satanás...!!!

Quer saber, mãezinha? Vou deixar essas mutações pra lá, que a conta quem vai prestar, na vida, e na morte, é cada um deles.

Vou deixar a vida de quelé, e cuidar do que me cabe, né não?

Então, minha mãe, eu sei que não está aqui, mas dá pra imaginar que quando a senhora ler essa carta, vai perceber que seu filho continua agoniado pra compensar o bem que a senhora me fez me dando a vida. Não é aproveitando que é dia das mães, nem é com presente insignificante que eu conseguiria pagar esse debito. Eu sei. Fiquei aleijado, a senhora viu; depois não deu tempo pra quase nada: a senhora não esperou, também sei. Mas sobre o antes eu também sei que podia ter feito melhor do que fiz. Por isso quero lhe dizer, maezinha, que se arrependimento matasse, essa hora eu estaria aí, abraçadinho à senhora, lhe beijando e pedindo perdão nesse que então seria não só o seu, mas o nosso túmulo.

Meu arrependimento. Esse é o único presente que agora me cabe lhe dar. Feliz, e eterno Dia das Mães, dona Terezinha!

Antonio Franco Nogueira
Enviado por Antonio Franco Nogueira em 10/05/2013
Reeditado em 27/04/2017
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