Carta 4 - Marina (23.09.2014)

Marina,

Eu sempre escrevo pra ti, mas nunca mando minhas cartas. Na verdade, eu nem lembro mesmo se teu nome é esse – Marina – mas gosto de como ele soa pra mim... água, sereia, ficção pura de mulher volátil. Não me leve a mal, não é uma crítica. É apenas um fato, e eu até admiro isso em ti. Sempre te escrevo quando procuro um interlocutor que não consiga entender nada do que eu digo, e essa é você, Marina, com tua vida quadrada e inútil – um namorado meia boca, cinema-jantar-sexo nos fins de semana e uns planos de ter filhos no futuro. Tudo muito previsível, por isso te desprezo e te preciso.

Leia se quiser, ou amasse esse papel e jogue no lixo, minha parte aqui já estará feita e enviada e, de qualquer forma, isso é apenas uma nota para depois dessa noite: a vida é muito injusta, e quem sou eu para reclamar dela. Existe uma tristeza fina e talvez até fingida nos meus atos, e minhas vivências são as vivências dos outros. Hoje lembrei que existe algo chamado carinho, e um carinho despretensioso mesmo, só isso, carinho sincero. Eu errei em passar três longos anos com raiva. Foi uma solução temporariamente, sim, mas, Marina, meu amigo foi despejado hoje sem aviso prévio e a Martina perdeu o emprego e cá estou eu, aqui, as dez e meia da noite, à uma hora de casa – se eu não perder o último ônibus, porque estou absolutamente de costas para a parada recebendo o abraço mais sincero que eu precisava e não sabia e uma mão que acaricia meus cabelos como quem queria na verdade passar uma tranquilidade amável e essa sensação de que tá tudo bem, porque nós estamos nessa juntos, e eu não posso explicar mais do que isso. É tudo muito estranho, sabe? Eu olhei pro rosto dele, e ele sorriu, mesmo sem ter ideia de onde passaria essa noite. Aí então eu percebi que tenho os amigos que mereço. Não te preocupa, Marina, não te considero como amiga, então você está livre para viver as futilidades da tua vida.

E o outro? Eu deixei aquele bilhete dentro da mochila dele, um “eu te amo” curto e sem remetente, e fui embora curado. Parti para sempre. Agora não tenho nem dinheiro pra comprar esse bolinho de chocolate que essa hipponga veio me oferecer, mas sabe, tá tudo bem. De verdade. Eu não queria estar em outro lugar.

E, Marina, eu não sei se sonhei ou inventei pra mim mesmo um ponto final, mas gosto de pensar que, numa manhã dessas, eu fui buscar a correspondência e havia apenas um papel amassado com letras miúdas que eu sabia que eram dele, escrito assim, exatamente:

“Antes dele, porém, veio um vento impetuoso e forte, que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos. Mas ele não estava no vento. Depois do vento, houve um terremoto. Mas ele não estava no terremoto. Passando o terremoto, veio o fogo. Mas ele não estava no fogo. Depois do fogo, ouviu-se um murmúrio de uma leve brisa. Ouvindo isso, eu cobri o rosto com o manto.

Sai

E me pus na entrada da gruta.

Entrei na barca e segui. Para o outro lado do mar”

Depois daquela noite, eu consegui pegar o último ônibus, e até pensei em ligar pra ele e pedir desculpas. Mas eu sabia que algo tinha mudado. Então apenas chorei com a cabeça baixa atrás da porta de desembarque.

Eu nunca aprendi a navegar.

Mas prefiro ficar aqui por enquanto. Não posso emprestar dinheiro pro meu amigo, porque estou no negativo desde o mês passado. Ando trabalhando dois turnos, e a Martina vai ter que esperar, só vou ter notícias em outubro. Mas, sabe, acho que a gente é feliz assim. Porque a gente não tem que sentar numa mesa de restaurante e pedir o prato principal discutindo sobre a última exposição do museu de arte contemporânea que de contemporânea não tem nada, nem rir de uma piada sem graça fingindo que estamos nos divertindo e não apenas rezando pro garçom chegar logo e tudo aquilo acabar. A gente pode sentar, assim, no chão mesmo, e reclamar da vida, rindo de verdade. Talvez ele me abrace e passe as mãos pelos meus cabelos de novo. Talvez ela deite no meu colo e quase adormeça. E ele? Ele nunca respondeu mesmo meu bilhete, mesmo depois desse tempo todo, mas eu gosto de imaginar que sim. Eu queria apenas compartilhar esse carinho sincero e talvez um pouco mais com ele, mas, Marina, ele não entende a leveza da vida. Ele é como tu.

Se você receber essa carta e ler, não se zangue, aceite como uma coragem minha,

D.C.