Carta Anônima

Houve um tempo, na infância perdida, que o mundo era uma grande bola azul com sonhos para serem buscados. O céu era o doce mistério alimentando a ideia de vida eterna, era nele que morava um Deus que nos protegeria de todos os males. Lembro-me de uma conversa com as outras crianças nas nossas frequentes brincadeiras na rua, acreditávamos que no Japão havia terremotos porque lá não existiam formigas. Então, ficávamos felizes ao encontrarmos tantas formigas em nosso quintal. Naquela época da infância nossos maiores medos eram de fantasmas. Ah, Doce inocência! Tínhamos uma amiga que nos contava casos preferidos. Ela tinha uma avô que morava na roça e era lá que um enorme buraco se abria no chão, nas noites de sextas-feiras 13, e dele saiam gritos horríveis de almas penadas e de galinhas. Eu morria de medo só de ouvir isso, mas daria tudo para poder ver o tal buraco. Eita que essa amiga era uma sortuda por ter esse avô morando na roça!

Lembro-me do meu pior pesadelo, ele sempre se repetia, era pavoroso me descobrir a caminho da escola descalça. No pesadelo eu só percebia que estava descalça quando já estava mais perto da escola e bem longe de casa. É óbvio que nessa época eu jamais imaginaria que havia gente no mundo que andava descalça por não poder comprar um calçado. Eu jamais imaginaria que havia crianças descalças. Tudo que eu entendia como mundo, era a rua que eu brincava e um outro grande e belo que eu veria quando virasse adulta.

Recordo o dia em que enterrei a Fátima no quintal. Ela era a minha única e linda boneca, mas eu precisava saber o que acontecia com as pessoas que morrem. Eu pretendia deixar a Fátima enterrada por um tempo e depois eu iria desenterrá-la e ver o que mudou. Até hoje não achei o lugar, já andei procurando, já cavei, mas nada da Fátima. Outro dia mesmo, eu voltei ao mesmo quintal e lembrei-me que havia um pedreiro contruindo o muro e me observando no dia desse enterro. Pode ser que ele tenha me achado uma garota mimada, que desperdiça dinheiro ao enterrar uma boneca tão linda. Pode ser que ele desenterrou e levou para a filha dele. Ele talvez não tenha descoberto que eu havia perdido meu pai. Talvez se ele soubesse que meu pai havia sido enterrado, teria deixado a Fátima ali, assim eu descobriria o que precisava descobrir naquele momento.

Infância é algo mágico e lindo, deveria ser preservada e ser direito de todos. Décadas mais tarde eu soube por noticiários que nem toda criança tem infância. Assim, o mundo azul passou a ter então gente sem calçados e crianças sem infância. Descobri ainda que aqueles lindos parques de diversões nas cidades são para distrair o povo de seus reais problemas.

Na verdade as coisas que descobri foram muitas, mas prefiro terminar isso aqui com uma frase curtinha: -Que saudades dos fantasmas da minha infância! E é claro que a carta é anônima, desencontrei-me da criança que fui um dia...

Simone Stone
Enviado por Simone Stone em 07/11/2014
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